1. Considerações iniciais
A partir da segunda década do século XXI, regista-se, no mercado livresco
moçambicano, a publicação de várias obras de autores moçambicanos jovens,
muitos deles estreantes embora já tivessem publicado textos em antologias e
periódicos nacionais e estrangeiros.
Tal geração de escritores, nascida entre os anos 80 e 90, publica os seus
primeiros livros neste período caracterizado por uma massificação de editoras
independentes, de associações e festivais literários, de periódicos
electrónicos (sites, blogs, vlogs, revistas, fanzines, etc.) que, estando à
margem dos canais “oficiais”, marcam a pauta literária deste tempo tal como
acentua a Professora Fátima Mendonça em texto publicado no jornal O País, dia
05 de Setembro de 2017, nos seguintes termos:
São uma geração das novas tecnologias, aberta a um mundo em que as fronteiras se tornam porosas, que conscientemente aproveita as vantagens dos caminhos abertos pela Internet, no Facebook, nos blogs em todo esse aparato tecnológico que integra soluções culturais para o nosso presente e que no caso de países como Moçambique em que existe uma hipertrofia dos grandes centros urbanos, permite colmatar as assimetrias existentes.
Do ponto de vista de periodização literária, pouco ou nada se pode
dissertar a este respeito, mas, como fenómeno social e literário, há que
registar algumas interseções quer sociais, quer biográficas e, até certo ponto,
de natureza estilístico-discursiva entre estes autores.
Diante de tantos aspectos em comum, regista-se o facto de,
independentemente das suas origens (Norte, Centro ou Sul de Moçambique), muitos
deles serem entusiastas do movimento de cultura urbana _ hip-hop _ sendo que
alguns deles foram fazedores de uma das manifestações artísticas deste
movimento: o rap.
A este respeito cabe fazer menção à constatação da Professora Ana Mafalda
Leite em “Poéticas Ecléticas,
Moçambicanas Poéticas do Século XXI”, Pinheiro & Leite (2018, p. 77),
ao referir que “a desarticulação das
utopias [no fazer poético desta geração] é organizada numa espécie de exterioridade observadora, narrativo-confessional,
eclética, às vezes orquestrada pelos sons do rap e da poesia musical”. A
despeito do que a autora diz a respeito da tendência temático-ideológica desta
geração de autores, a nós cabe o valor da assunção da presença do rap neste
exercício, ainda que, neste caso, seja numa perspectiva rítmica e, quiçá,
cénica.
Neste contexto, considerando a incipiente circulação do livro que grassa em
Moçambique e o facto de muitos deles terem tido acesso à leitura de autores
nacionais (e não só) na juventude e por via dos manuais escolares, há razões
para cogitar a possibilidade de haver relações interdiscursivas e estilísticas
na abordagem literária deste grupo de autores com o movimento Hip-Hop (Rap) se
tomarmos como verdadeira a assunção de que “todo
discurso é um diálogo com outras vozes e perspectivas presentes na cultura”,
Bakhtin (2006). De facto, se todos, senão boa parte deles, tiveram o que chamaríamos de
acesso tardio ao livro, num contexto em que recebiam do rap todo manancial de
referências temático-ideológicas (e até estilísticas) de onde viria a conclusão
bastante comum em leituras críticas dos textos desta geração (?) em que
comumente se lê:
A obra deste autor faz-me pensar na obra de Eduardo White
e de José Craveirinha que, passando pela metaficção literária, são autores cuja
temática se centrou na busca de identidade ou de formação de uma consciência
nacionalista, a partir da poesia lírica, sem, necessariamente, serem autores de
poesia panfletária. Jona Laisse (2020)[2]
Uma poesia narrativa, herdeira em termos temáticos, de
uma vertente craveirínhica pelo seu cariz de denúncia, e incisivo pendor
crítico. Curiosamente quase toda a poesia de Faife se rege por uma figura
retórica, muito usada pelo autor de Xigubo, a hipálage. Leite
(2019)[3]
Nesta ordem de ideias e por via de uma amostragem combinada (estratificada e de julgamento), seleccionamos 14 escritores num universo de mais 50[4], nomeadamente: (1) Albert Dalela (https://rectasletras.blogspot.com/2023/02/caminhos-da-interdiscursividade_10.html?m=1); (2) Alerto Bia (https://rectasletras.blogspot.com/2023/03/caminhos-da-interdiscursividade.html?m=1); (3) Álvaro Taruma (https://rectasletras.blogspot.com/2023/01/caminhos-da-interdiscursividade.html?m=1); (4) Daúde Amade (https://rectasletras.blogspot.com/2023/04/caminhos-da-interdiscursividade_6.html?m=1); (5) Deusa d’Africa (https://rectasletras.blogspot.com/2023/02/caminhos-da-interdiscursividade.html?m=1); (6)Ernestino Maute (https://rectasletras.blogspot.com/2023/03/caminhos-da-interdiscursividade_23.html?m=1); (7) Fernando Absalão (https://rectasletras.blogspot.com/2023/04/caminhos-da-interdiscursividade.html?m=1); (8) Jaime Munguambe (https://rectasletras.blogspot.com/2023/02/caminhos-da-interdiscursividade_18.html?m=1); (9) Japone Arijuane (https://rectasletras.blogspot.com/2023/02/caminhos-da-interdiscursividade_8.html?m=1) (10) Matilde Chabana (https://rectasletras.blogspot.com/2023/04/caminhos-da-interdiscursividade_22.html?m=1); (11) Mélio Tinga (https://rectasletras.blogspot.com/2023/02/caminhos-da-interdiscursividade_25.html?m=1); (12) Nelson Lineu( https://rectasletras.blogspot.com/2023/04/caminhos-da-interdiscursividade_77.html?m=1); (13) Otildo Guido (https://rectasletras.blogspot.com/2023/04/caminhos-da-interdiscursividade_7.html?m=1); (14) Zaiby Manasse (https://rectasletras.blogspot.com/2023/03/caminhos-da-interdiscursividade.html?m=1).
Q1: Quando e como começou a escutar rap?
Objectivo: Obter
o marco temporal e espacial em que o entrevistado entrou em contacto com o
género musical.
Q2: Que rappers tem escutado?
Objectivo: Situar
o universo de preferências do entrevistado.
Q3: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
Objectivo: Compreender
a razão por detrás das preferências do entrevistado.
Q4: Já escreveu/gravou algum material neste género?
Objectivo: Compreender
o nível de envolvimento do entrevistado com o género musical.
Q5: Quando e como começou a escrever textos literários?
Objectivo: Obter o marco temporal e espacial em que o entrevistado
entrou em contacto com a literatura.
Q6: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo rap na sua produção literária?
Objectivo: Extrair,
do entrevistado, ilações sobre a forma como ele concebe o seu labor criativo do
ponto de vista temático-ideológico.
Q7: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
Objectivo: Extrair,
do entrevistado, ilações sobre a forma como ele concebe o seu labor criativo do
ponto de vista estilístico.
Q8: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
Objectivo: Permitir que o entrevistado faça uma intropecção sobre questões estilísticas e temático-ideológicas que emanam materialidades discursivas com as quais convive.
Diagnóstico de possíveis influências estilísticas e/ou temático-ideológicas
Para o diagnóstico a que nos propusemos no domínio do
presente estudo, recorremos a três critérios, nomeadamente: (1) grau de
incidência dos nexos discursivos em função das preferências dos escritores relativamente a um rapper específico (Cf.
G1); (2) grau de incidência dos nexos discursivos em função das preferências do estilo rítmico e
temático-ideológico do Rap (Cf. G2); e (3) grau de incidência dos nexos
discursivos em função do país de origem
dos produtos verbais escutados (Cf. G3).
Com a aplicação destes critérios, foi possível encontrar
intersecções nas respostas fornecidas pelos entrevistados e, a partir disso,
extrair padrões de leitura que possam nortear pesquisas posteriores.
Os gráficos abaixo são indicadores destes padrões. Com a
aplicação do primeiro critério, nota-se, por exemplo, 92.80% de incidência
relativamente à menção do rapper Azagaia no imaginário discursivo dos
escritores entrevistados.
No domínio do segundo critério, nota-se que o universo de
referências dos escritores entrevistados incide no Underground, na ordem de 74%
dos escritores entrevistados.
Relativamente ao último critério, é evidente que
Moçambique e Portugal representam os expoentes geográficos do universo de referências
destes escritores, consubstanciando 39% e 30%, respectivamente.
1. Critério:
grau de incidência dos nexos discursivos em função das preferências dos
escritores relativamente a um rapper específico
2. Critério:
grau de incidência dos nexos discursivos em função das preferências do estilo
rítmico e temático-ideológico do Rap
1.1.1. Critério:
grau de incidência dos nexos discursivos em função do país de origem dos
produtos verbais escutados
1.
Considerações finais
Com base nos dados extraídos, podemos inferir que há uma
evidente influência do hip-hop no imaginário literário e, sobretudo, pessoal
dos escritores entrevistados, cabendo, no entanto, a verificação material dessa
hipótese à análise das suas obras. Sendo oriundos de contextos sociais e
geográficos diversos, os autores partilham as mesmas vicissitudes na relação
com o rap, tendo a infância e a adolescência como o marco temporal desse
convívio.
Do ponto de vista de representações cognitivas do mundo, este
facto não pode ser ignorado, se considerarmos que a literatura é um espaço de
ficcionalização dessas representações. Por via disso, é inevitável que o Rap
tenha tido uma influência nesse sentido.
Embora os escritores divirjam relativamente à assunção da
influência do rap no seu exercício, tal não pode servir de base para conclusões
a respeito da influência do rap na sua produção literária específica. Esse
exercício consistirá na leitura e análise dos seus textos, com base em algumas
pistas identificadas no presente estudo. Por isso, esta abordagem exploratória
dá-nos (outros) horizontes de leitura dos textos produzidos por esta nova
geração de autores e abre espaço para novas pesquisas que possam incidir nas
seguintes perspectivas:
1.
Análise
da influência das motivações estéticas e temático-ideológicas do rap na
produção literária desta “geração”;
2.
Avaliação
da influência de um rapper num certo grupo de autores;
3.
Estudo
de relações estético-temáticas entre um rapper e uma geração de autores que
consomem a sua música e o tem como modelo estético;
4.
Análise
de técnicas de enunciação típicas do rap e que são usadas na escrita literária;
5.
Falseamento
de leituras anteriores que defendem uma eventual influência da poesia de
combate na geração actual de escritores;
Aspectos a considerar:
1.
A
concepção do autor sobre as suas perspectivas estéticas ou temático-ideológicas
não podem servir de base para análise, senão os rappers que ele escuta com
frequência;
2.
Não
só os rappers mencionados pelo autor devem servir de base para análises
dialógicas com o rap; em razão da instabilidade que emana este fluxo dialógico
e a forma instantânea com que os dados foram recolhidos;
Limitações:
1.
Indisponibilidade
de algumas obras desta geração de escritores devido à fraca circulação do livro
em Moçambique;
2.
Falta
de regularidade na publicação de livros devido a dificuldades editorias, o que
dificulta o seguimento dos traços identitários dos autores.
[1] Excerto de um artigo científico. A
partilha nesta plataforma visa a divulgação e o debate de ideias em contextos
não académicos.
[2] Em Jornal O Pais, 11 de Setembro de
2020
[3] Em Pinheiro, V. R. & Leite, A. M.
(2018). Cânone(s) e Invisibilidades Literárias em Angola e Moçambique. João
Pessoa: Editora UFPB;
[4] Atente-se ao facto de não termos tido
nenhuma estatística nesse sentido, daí que este número surge por via de uma
estimativa aleatória decorrente do contacto (virtual e presencial) que privamos
que estes escritores.
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