Como é sabido, tal como a escrita, a
narrativa da oralidade não é um sistema fechado de signos. Assim, poder
compreender o sentido de uma escolha que o contador efectua é ser capaz de
visualizar as hipóteses de permuta em cada contexto.
E, esta leitura contextualizada é
deveras importante sobretudo quando se trata de literatura oral no seu todo,
devido ao facto de esta servir de reservatório dos valores culturais dos povos.
É esta a razão que nos faz concordar com a ideia de que a versão da fábula “a cigarra e a formiga”, patente no livro do aluno da 5ª
classe do SNE, do ponto de vista ideológico “não
pode encontrar acolhimento no universo
cultural e antropológico” no seio de comunidades tipicamente moçambicanas,
em particular, e africanas, em geral. (ROSARIO: 2004, p. 2)
Senão vejamos: na referida fábula, a
formiga simboliza o sacrifício, o trabalho, a sensatez que é aplaudida por
desdobrar-se durante o verão para que se possa prevenir dos maus tempos
trazidos pelo inverno. Por outro lado, nos é trazida a cigarra que simboliza o
deleite, a preguiça e a insensatez que tendo se divertido (cantado) durante o
verão enquanto a formiga trabalhava, sofre durante o inverno e vive pedindo
ajuda que lhe é negada mediante uma humilhação por parte da formiga. O que,
numa análise descontextualizada (para o contexto africano/moçambicano) remete à
interpretação de que a formiga é digna de apoteóticos aplausos e à cigarra
resta apenas a penalização por ter gasto tempo com futilidades.
No entanto, aplicando os modelos: ascendente
e descendente, que são tipicamente usados na análise de narrativas orais, esta
narrativa enquadrar-se-ia no modelo em espelho que é quando existe, na mesma narrativa, a possibilidade de conceder,
conforme os actos praticados por cada personagem (num mínimo de duas
personagens) que tiveram as mesmas oportunidades, um prémio ou um castigo.
Portanto, esta leitura (a do castigo da cigarra que canta/faz arte) só é
aceitável se tivermos em conta que esta narrativa fora produzida num
determinado tempo (século XVII) e espaço (Europa) ideologicamente dominado por
ideias racionalistas e até certo ponto segregacionistas cuja visão fora sentenciada,
mais tarde e com uma nova tónica, por Leopold Sédar Senghor (1906-2001) ao
afirmar que “a emoção é africana e a razão Helénica”.
Antes de mais, urge afirmar que “A
cigarra e a formiga” é uma das fábulas atribuídas a Esopo e recontada por Jean de La Fontaine (um poeta e fabulista francês considerado o pai da fábula moderna) e traduzida
para o português pelo poeta e tradutor Manuel Maria Barbosa du Bocage.
Não
querendo, porém, concordar com a ideia racionalista a que fizemos referência
acima, analisando a fábula nesta vertente percebe-se que a leitura ascendente
dos actos da formiga, ou seja, a atribuição do prémio à formiga como protótipo
de trabalhadora e sensata, cujos actos são fruto dum exercício racional e, em
contrapartida, a leitura descendente dos actos da cigarra como protótipo de
preguiçosa, insensata cujas “futilidades” são produto da emoção, remete-nos ao
estabelecimento de simbologias mais objectivas e tratando-se de uma fábula que
é um género cuja característica
distintiva é a forte presença do animal ou de objectos inanimados
personificados, representando as qualidades e os sentimentos dos homens com um
propósito moralizante, diríamos que a formiga
representa o branco (helénico) no tempo e espaço em que esta narrativa fora
produzida que dava maior primazia à razão (ao exercício intelectual) visão que
fora, também, sentenciada pelo racionalismo de René Decartes (1596-1650) que,
numa sentença silogística, sublinha a superioridade da razão em detrimento da
emoção (penso, logo existo/cogito ergo
sum) e, neste contexto, a cigarra representa o negro (africano) cuja
“vocação” fora relegada à emoção (tida como futilidade).
Embora haja que considerar o inegável
facto de que “não se postula, pura e
simplesmente, uma relação de estreita fidelidade, especular, entre um texto
literário e um determinado contexto empírico,” satisfaz, também, a ideia defendida por NOA (1998: 29) apud CEZERILO (2010:
65) em reflexão sobre os preceitos da Literatura Colonial, segundo a qual, “por estar ligada a um contexto histórico
determinado, a Literatura colonial interage com a História que a enquadra,
fazendo-a ressoar, com maior ou menor impacto, em cada um dos seus textos.”
Nesta linha de ideias, tudo leva à
conclusão de que “o texto literário
constrói um mundo fictício, através do qual modeliza o mundo extraliterário
transformando-o, portanto, numa referencialidade mediatizada.”(CEZERILO:
2010, p. 65)
De facto, aplicando o modelo/critério temático-antropológico
notamos que esta fábula enquadra-se no tipo de narrativa que se serve de pessoas
e/ou animais através do comportamento dos quais se pretende abordar questões
ligadas aos costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os
cumpridores e castigando os transgressores. É nesta senda que se nota de forma
clarividente que o texto em análise não responde a um dos elementos
importantíssimos da textualidade que é a situacionalidade.
Visto que, premiando a formiga e castigando a cigarra contrapõe-se, de alguma forma, aquilo que é a realidade sócio-cultural duma sociedade em que o
trabalho representado pela formiga e o canto (exercício estético) representado
pela cigarra, são actividades híbridas e, até certo ponto homogéneas, se formos
observar de forma atenta o que acontece nas actividades diárias da sociedade de
que os alunos beneficiários do texto em causa fazem parte.
É respondendo a esta realidade híbrida entre
o trabalho e o exercício estético que MACHADO (1995: 5) recria a sentença
segregacionista de Decartes (penso, logo existo), donde resulta: “penso, danço, canto, logo
existo".
Sem comentários:
Enviar um comentário