Reagindo a certas afirmações durante o lançamento de um
livro em Xai-Xai, um amigo achou urgente escrever e enviar-me um artigo
intitulado: “será a escrita a única via de libertação do homem e a imagem
audiovisual sua morte?”…
É verdade que houve um apelo expresso ao “escovismo”, mas, inicio a minha
intervenção aplaudindo a pertinência e actualidade do debate que se levanta. Não
pretendo fazer mais que um singelo comentário em torno deste assunto que,
sinceramente, exige mais do que posso oferecer intelectualmente. Mas, enfim: cada um dá o que tem para oferecer!
Noto que o autor do artigo assume uma postura imparcial
devido ao caracter questionador que adopta, o que é de louvar. Contudo, a
partir da tonalidade das questões e das frases que delas (as questões) se
avizinham pela anterioridade ou pela posterioridade, foi-me possível rastrear o
âmbito das perguntas e a posição de quem as coloca, o que é também de
louvar…afinal, houve apelo ao “escovismo”
mas não ao “auto-escovismo”…por isso,
fico-lhe muito grato… (risos)
Ora, se existe uma postura assumida no artigo, a mesma
pode ser destrinçada em duas partes que passo a citar:
Há
necessidade de a escrita, e sobretudo a poesia, reinventar-se através da
imagem;
A
imagem enquanto realidade semiótica não pode ser recriminada pelo grau de obscenidade
porque a escrita também opera o mesmo tipo de “cócegas” na imaginação;
Verdade ou mentira, a poesia tem uma certa apetência/predisposição
em casar com a imagem, não necessariamente como uma tímida assunção do seu fim
em razão do eclodir da imagem nos últimos séculos, e sim como algo
intrínseco a ela numa relação de “cara e
coroa”. Introduzi este parágrafo com o clássico “verdade ou mentira” por as duas possibilidades serem aceitáveis: a
verdade do que foi dito encontra-se na poesia do português Cesário Verde “o poeta que pintava quadros com letras”
o exemplo disso é o poema “Num bairro
moderno”. Por outro lado, a mentira da proposição supracitada poderia ser
encontrada na poesia surrealista por parecer vedada naquele tipo de poesia a construção duma
imagem (objectivamente reconhecível) ainda que seja a retalho.
Portanto, assumir-se um casamento entre a escrita, a
poesia particularmente, e a imagem no estilo “duas metades da laranja encontram-se e unem-se harmoniosamente”
tal como sugere o autor do artigo é uma possibilidade que exige uma boa e
atenciosa perícia por parte do emissor e, também, do receptor (tomando como
base o esquema de comunicação de Jackobson), tendo em conta que são realidades
semióticas autónomas e autossuficientes que devem ser conscientizadas da
relação de interdependência que se estabelece entre elas a partir do momento em
que se unem, facto que, cá entre nós, não é de fácil trato mesmo entre humanos,
daí os frequentes divórcios…enfim, são outras conversas.
Ora, em relação à recriminação do grau de “obscenidade” da
imagem em detrimento do da escrita (conforme o autor do artigo parece
contestar), quero crer que o dilema tenha cariz estético que moral, embora seja
no último que todos os argumentos tendem para “ilegitimar” a exibição pública de certas imagens.
Uma grande luz para esta reflexão nos é trazida por Milan
Kundera em “A Insustentável Leveza do
Ser” ao discutir a noção estético-moral de conceito “merda” (no mais
literal sentido do termo) em que afirma que “a
merda é um problema teológico mais penoso que o mal.” (AILS: 233)
Segundo o autor, no mundo católico (e isto estende-se à
todo pensamento cristão, senão religioso em geral) seria uma heresia assumir a
ideia de um Deus com um intestino grosso e toda a cadeia de órgãos e
funcionalidades a ele proporcionais. Embora seja dito que Ele fez o homem à sua
imagem e, forçando essa ideia para o sentido fisionómico (o que prefiro
acreditar que não que não seja o caso), estaríamos expostos a uma série de
heresias, tal como ilustra Kundera ao retratar um episódio da sua infância nos
seguintes termos: “quando era garoto e
folheava o Antigo Testamento para crianças, ilustrado com gravuras de Gustave
Doré, via nele o Bom Deus em cima de uma nuvem. Era um velho senhor, tinha
olhos, um nariz, uma longa barba, e eu dizia a mim mesmo que, como tinha boca,
devia comer. Se comia, devia ter intestinos. Mas essa ideia logo me assustava,
porque, apesar de pertencer a uma família pouco católica, sentia o que havia de
sacrílego nessa idéia dos intestinos do Bom Deus.” (AILS: 233)
Nota-se aqui que a intenção comunicativa da imagem (a
gravura de Gustave Doré) não é a que o menino Kundera extraiu, o que quer dizer
que tal como na escrita, a liberdade criadora se faz sentir na imagem. E, já
agora, respondendo à pergunta que dá título ao artigo diria: a escrita não é a
única via de libertação do homem, a imagem também o é.
Concluindo, perante este dilema que insisto em afirmar que
seja de carácter estético, Kundera coloca-nos duas possibilidades: “ou a merda é aceitável (e, nesse caso, não
precisamos nos trancar no banheiro), ou Deus nos criou de maneira inadmissível.”
(AILS: 235)
Este recorte que faço da percepção de “merda” na óptica
de Kundera parece deslocado e desproporcional ao problema que se nos coloca, todavia,
aceitemos que neste caso discute-se toda e qualquer propriedade fisionómica que
por motivações estéticas mantemo-la escondida do mundo (mesmo sabendo que dela(s)
todo o ser humano dispõe) e, caso alguém tome a decisão de expô-la ao mundo
seja por via da imagem (como é frequente) ou por via da escrita, surge o choque.
Do ponto de vista literário e isto estende-se a toda
manifestação comunicativa, este ou aquele caminho (dos que foram acima
colocados por Kundera) poderá ser seguido em consonância com o ideal estético
de cada sociedade. Ora, está mais do que claro que a primeira possibilidade
precisaria de uma revolução estrondosa em todo mundo (execepto em sociedades
primitivas) por estar muito generalizada a ideia de que existem coisas que
devem ser feitas e mostradas em público e outras que pura e simplesmente não
entram nesse desiderato de publicidade e exposição.
A segunda possibilidade abre espaço para posturas mais
social e antropologicamente aceitáveis consoante as sociedades, mas tudo no
domínio do ideal estético dessa mesma sociedade. Se fomos criados de maneira
inadmissível, ou escondemos essa condição ou, por outra via, assumimos a nossa
condição de inadmissibilidade mediante o bom senso e bom gosto que caracteriza
qualquer ideal estético que uma sociedade assume.
E, esta assunção de um ideal estético por parte de uma
determinada sociedade é intrinsecamente influenciada pela realidade política
vivida nessa tal sociedade. Fazendo minhas as palavras do autor que me
acompanha neste comentário, Milan Kundera, diria que “numa sociedade em que coexistem várias correntes políticas e em que
suas influências se anulam ou se limitam mutuamente, é possível escapar da
inquisição do kitsch/ideal estético;
o indivíduo pode proteger sua originalidade e o artista pode criar obras inesperadas
(AILS: 239). E isto explica a nossa “indignação” (em meio a família e a menores,
por ex.) perante a exposição da mais íntima intimidade por parte do cinema
brasileiro e norte-americano porque “nos
lugares em que um só partido detém todo o poder, somos envolvidos sem
escapatória pelo reino do kitsch/ideal estético totalitário” (no sentido em que tudo que está
fora do ideal estético é banido da vida).
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