segunda-feira, 26 de junho de 2023

Três diamantes pretos no meio de cristais ou a atemporalidade da luta pela igualdade aos olhos da Maya Ângela?

Não são os prémios que dão valor aos livros.

São os livros que dão valor aos prémios.

Venho pensando neste exercício de apresentação de livros e do alcance que devemos dar a ele. Olho para mim nesta actividade e não sinto mais nada senão a responsabilidade. Quando recebo um convite desta natureza pairam em mim algumas perguntas: Quem eu sou? De quem é o livro? Quem serão as pessoas que me irão escutar? E por que razão o livro deve ser apresentado? Sinceramente (e por agora), só tenho respostas para a primeira e a última (quem eu sou e o por que razão o livro deve ser apresentado?)

Quanto a esta primeira pergunta, apenas sei que não sou um influencer com poder de vos fazer comprar o livro à força, como quem diz “se ele falou tão bem do livro, deve ser bom”. Não, não sou…felizmente! Imaginem se eu fosse uma dessas entidades com o nome já firmado no âmbito académico, cultural ou político. Estaria aqui numa espécie de saia justa. Teria de escolher entre falar bem do livro, com o risco de comprometer a minha imagem se o livro for mau; ou ter de ser sincero relativamente aos aspectos negativos do livro para salvaguardar a minha honra, e ser tomado como incoerente tanto pela editora, quanto pela autora, pela natureza desta actividade. Mais adiante retomamos o sentido desta incoerência a que me refiro.

Morrer: um imperativo altruísta e existencial em “a morte e o cavaleiro real” de Wole Soyinka

É comum que um autor fique perturbado com a leitura que se faz do seu livro. Não seria difícil citar 10 exemplos em que tal aconteceu. Vezes há em que tudo termina entre os botões do autor e sabe-se da sua perturbação pelos corredores, cafés e bares. Noutras vezes (não poucas) os escritores usam redes sociais ou colunas de jornais para manifestar o seu desencanto com a leitura de um certo crítico (ou aspirante ao ofício). Vemos, em alguns livros, uma tendência subtil do escritor deixar pistas que norteiem o exercício de leitura que, a priori, é alheio a si e é matéria de outros poderes. Neste caso, o do leitor. As epígrafes, os preâmbulos, as notas de autor e outras “manobras” paratextuais são recurso preferencial dos autores para enviarem recados ao leitor antes, durante e após a leitura da obra. Haverá, certamente, quem se interesse em aprofundar esta matéria.

Vem isto a propósito de uma nota que Wole Soyinka deixa em “a morte e o cavaleiro real”, uma peça originalmente publicada com o título “Death and the King’s Horseman”, traduzida para português por Sandra Tamele e publicada pela Ethale Publishing, em Moçambique.

Os nossos poetas vivem lacrados em torres de marfim

É difícil reflectir sobre qualquer coisa que não nos remeta aos acontecimentos que determinam os tópicos conversacionais nos últimos dias: a partida de Azagaia, as marchas em sua homenagem dentro e fora do país, as manifestações autorizadas por uns e interditas por “ordens superiores”, a violência bárbara a que se recorreu para tal interdição e os “cancelamentos” que são promovidos contra entidades públicas que têm vozes cujo clamor pode muito bem dar eco aos anseios do povo.

A minha preocupação surge em meio a este último tópico: cancelamentos. Em abono da verdade, os argumentos iniciais para esta atitude constituíam uma aporia por misturarem alhos e bugalhos: empatia, escolhas individuais, disponibilidade, agendas, etc. Só depois da triste acção da polícia é que o cancelamento passou a ter um sustento mais assertivo: o humanismo, independentemente da agenda, da disponibilidade e das escolhas individuais. Só a empatia é prevalece. Touché!

sexta-feira, 9 de junho de 2023

Texto dramático: características, estrutura externa e interna

O termo drama (do grego drân = agir) faz referência ao facto de, nestes textos, as pessoas serem representadas em acção, (Aristóteles, 384-322 a. C) apud Garcia (2010, p. 117).

Partindo deste pressuposto, Santos (2015, p. 22) admite que falar de “género” dramático é, até certo ponto, falar de “género” teatral.

Há, contudo, necessidade de dissipar equívocos tal como alerta Diegues (2010, p. 22) cit. em Santos (2015, p. 23) ao afirmar que:

Não devemos ser radicais quando se trata de delimitar uma fronteira entre o texto dramático e a representação teatral. A união entre ambos parece óbvia, podendo um originar o outro, mas a sua separação também sobressai, na medida em que subsistem cada um por si só: pode-se assistir a uma peça de teatro sem conhecimento do texto de origem, da mesma forma que se pode ler um texto dramático sem que se tenha assistido à sua representação.

O drama surge, portanto, associado ao modo dramático, compondo juntamente com o lírico e o narrativo os “modos fundacionais da literatura”.

Epopeia: características, estrutura externa e interna

 

O que é epopeia?

A termo epopeia provem da palavra grega “epopoiía” que também deriva de “épos” também pertencente ao grego e significa “versos” e, portanto, “o gênero épico é a narrativa em versos que apresenta um episódio heroico da história de um povo. A epopeia nasceu no Ocidente com Homero, poeta grego que viveu entre os séculos IX e VIII a.C. e escreveu dois poemas que constituíram os primeiros modelos épicos: a Ilíada e a Odisséia.” Cavalcanti (2012, p. 235)

Para Figueiredo & Belo (1999, p. 111) “a epopeia é uma narração, em estilo grandioso, das façanhas heroicas de um povo, caracterizadas por uma acção una e simultaneamente variada, em que intervêm seres sobrenaturais.”

quinta-feira, 27 de abril de 2023

Ágora: um exercício de cidadania e de contemplação

“nunca a justiça foi tão ínvia e a verdade uma porção de pó”

Escrevi um texto há dias. Uma provocação de bom gosto para quem se expõe ao contraditório para repensar as suas crenças, atitudes e escolhas. “Os nossos poetas vivem lacrados em torres de marfim” era o título da provocação cujo interesse não era outra coisa, senão um convite ao debate sobre o nosso labor enquanto poetas/escritores deste tempo e desta parte do Índico.

Em “Ágora” de Samuel Pimenta encontrei a materialidade da minha utopia no exercício da escrita: uma construção imagética primorosa e um efeito de sentido que nos deleita e desassossega. Ler este trabalho e não olhar para o horizonte e questionar-se sobre o sentido da vida, do mundo, dos nossos credos ou a ausência deles é um exercício impossível.

“Ágora”, termo pelo qual Samuel Pimenta intitulou este conjunto de poemas, é uma referência à “praça das antigas cidades gregas, na qual se fazia o mercado e onde se reuniam, muitas vezes, as assembleias do povo.” A leitura deste conjunto de textos reenvia-nos para a certeza de que o título não foi resultado de um acaso ou do interesse no efeito fónico da palavra, mas daquilo que ela significa.

sábado, 22 de abril de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Nelson Lineu

“eu tenho raízes criadas pelo rap por ver a sociedade com os seus problemas e querer abordar isso, mas sempre numa perspectiva daquilo que a literatura exige”

Tenho cá uma vaga impressão de já termos privado algum diálogo face-a-face, há uma dúzia de anos. Se tal tiver acontecido, a maior possibilidade aponta para os tempos em que o Movimento Literário Kupaluxa e a Associação Cultural Xitende encontravam na poesia uma forma de criar alguma irmandade na Casa Provincial de Cultura, em Gaza. É mesmo uma impressão, mas esses são outros quinhentos que em nada servem para nortear o curso desta nossa conversa.

Falando em curso, já lá houve algum curso numa conversa entre poetas que têm uma vivência com o rap? Nunca. Os poetas não fazem cursos. Mas a faculdade inteira. (risos) “Tasaver”: são heranças do rap.

Nem com ele, nem com os demais participantes destas conversas partilhei as minhas vivências com o rap (ou a ausência delas). Não era o objectivo destas coisas. Havendo possibilidade, vejo-me sentado algures com ele e outros numa mesa redonda. Um dia, não muito distante, realizamos a façanha.

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Matilde Chabana

“Olhando para o Azagaia, consigo encontrar a voz inacabada de José Craveirinha.”

Livros. O que me dão além de rostos, mentes, visões, experiências, mundos e viagens cada vez que interajo com pessoas com quem partilho o amor pela arte de escrever?

É daquelas perguntas que os jornalistas/apresentadores de televisão não fazem nos seus talkshows. É curioso. Quem sabe, a partir daqui, se abra um expediente para uma interpelação nesse sentido.

“Sabes, a Matilde Chabana acaba de sair. Estávamos aqui num papo e achamos que se pudessem encontrar, mas ela teve de sair às pressas porque está para orientar um evento”. Disse-me um amigo, num desses sábados em sua casa. É sempre assim neste universo, este conhece aquele que conhece o outro e aos poucos constitui-se uma família de viajantes no mundo do verbo.

Não passou muito tempo, lá vinha outro: “estamos a pensar a fazer uma apresentação do livro da Matilde em Xai-Xai, e tu terás a dupla função de representar a Editora Kulera e apresentar o livro ao público leitor”. Não respondi, porque resposta melhor não haveria senão arregaçar as mangas. Sim, estive em vantagem: antes do “bom dia, como está” eu já tinha mais informação sobre a minha interlocutora através do seu livro. “O Perfume do Pecado” é o título e saiu pela Kulera em 2021. Fiz considerações sobre ele que em nada roçam o rap. A despeito do seu labor profissional e militância pela palavra dita e escrita que será tema de conversa noutro dia, ocorreu-me interagir com ela sobre esta matéria para melhor conviver com uma pulga que, na altura, se instalou por detrás da orelha.

É isto e mais alguma coisa que norteiam estas conversas: pulgas e outras coisas por detrás da orelha, que me fazem querer perceber mais e descortinar o “será” que nos sitia cada vez que lemos um livro ou intentamos uma conversa num desses corredores da palavra.

sexta-feira, 7 de abril de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Otildo Justino Guido

“já senti como se estivesse, de uma ou de outra forma, em diálogo com a música. Este diálogo não é só discursivo, material mas também rítmico. Uma espécie de escrever ao ritmo de alguma música, sentir a respiração dos instrumentais e poder escrever”

Gosta de Zaida Chongo. Nunca entendi, mas tenho suspeitas. Só uma é partilhável neste espaço: a metáfora com que construía as suas músicas. Autênticas pirâmides egípcias: firmes e perenes. Outras suspeitas, já partilhei com ele próprio. Quem quiser saber, pode me convidar para um talk show num café, bar ou lounge desta cidade com muitas acácias sem que seja de acácias como a outra que dista a duzentos e pouco quilómetros.

Desse gosto e de outros, evidentemente, bebeu a imagem. Tem com ela uma relação religiosa no seu labor enquanto escritor. Querendo, pode estabelecer uma escola sobre isso. Entre a vontade e o preparo, garantia a façanha.

Sim. Conheço-o já lá vai quase uma década. Mas se os anos fossem contados pelos litros de líquidos misturados com lúpulo, estaríamos a uns tantos…quase 50, para ser mais humilde. Qual é a fórmula para tecer a camaradagem? Arte? Sangue? Tempo? Latitudes? Quotidiano? Gostos? Desgostos? Não sei. O certo é que já foram várias as vivências, tanto quanto o são os litros.

quinta-feira, 6 de abril de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Daúde Amade

“embora tivesse sempre como fonte de inspiração o exercício de leitura no seu todo, nalguns momentos eu me sentia arrastado, ainda que de forma involuntária, a visitar algumas ideias de um rapper”

Uma das coisas que será dita nos próximos tempos é a ausência, nos periódicos da praça, de críticos literários com entusiasmo para este ofício. Há dias falava-se desta necessidade e eu pensei cá para mim: quem, das pessoas que conheço, cairia tão bem nesse papel? Daúde Amade foi um dos primeiros nomes. Outra coisa que será dita em tais tempos, é que apesar desse vazio, os jovens de hoje encontraram outros canais para fazer valer a sua voz, do ponto de vista de crítica literária. Alguém já prestou a devida atenção para os blogues, revistas e outros meios digitais que pululam neste país e dizem coisas interessantes, cada um a seu modo, jeito e génio? Pronto. Falamos disso noutro dia.

Nunca privamos uma conversa “mano a mano”, mas as tecnologias operam estes feitos de as pessoas interagirem de forma tão cordial sem que se tenham visto uma única vez sequer. Mas estas coisas de crítica, ensaios, recensões ou qualquer coisa que valha ficam para outros quinhentos. Hoje o papo é rap. Só rap. Depois desta conversa, poderão surgir outras possibilidades de explorar a relação que a sua escrita tem com o rap, muito além do que ele próprio diz ao longo desta conversa.

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Fernando Absalão Chaúque

escutar rap contribui muito para a minha produção literária, porque, tal como já referi, aprendo muito com o trabalho que os rappers têm com a palavra e no sentido de perceber o ângulo em que posso abordar um certo assunto num texto

Batemos maningue papo na sua última estadia em Xai-Xai a propósito do lançamento do seu mais recente livro em co-autoria com Otildo Guido (outro bro cuja conversa irei partilhar em breve) “Barca Oblonga” (2022). Num desses papos que tivemos num desses bares da cidade, partilhei este intento de me aventurar em conversas tais com os meus sobre as suspeitas que tenho sobre a sua relação com o rap. Essa foi sempre a primeira premissa. Esta coisa de o rap influenciar na escrita é ainda uma hipótese que estou disposto a falsear: assim reza a ética na pesquisa. As coisas devem fluir numa certa direcção, mas sem imposições. Foi neste mesmo desiderato que seguiu a conversa. Desta vez não foi no bar. Além da vista embaciada, a língua aos arrastos, declarações efusivas de fraternidade…os bares têm outros efeitos. Por isso fizemos assim, tal como nos lê: tela a tela. Podíamos ter conversado sobre a sua escrita, o seu livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021) ou sobre o seu labor no blog “tenacidade das palavras” como forma de degustar este amor que nutrimos pela blogosfera. Mas fica para breve.

quinta-feira, 23 de março de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Ernestino Maute

“se a literatura termina só no deleite, eu acho que alguma coisa está aí a falhar”

Ainda estava a nutrir um luto que transcende espaços e tempos do rap nacional. What? Foi a primeira palavra que redigi quando soube do infortúnio através de uma plataforma virtual: foi a minha forma de traduzir o choque.

Neste canto do hemisfério, quando alguém parte, a vida pára: sem festas, sem ruídos, sem coitos, etc. Para mim, estas conversas são uma festa. Nas festas gera-se ruídos. Os ruídos que desta festa podem advir incitam coitos. Destes, a fecundação das almas, quer gostem ou não de rap. É inevitável. Conduzi as conversas entre Janeiro e Fevereiro últimos, longe de imaginar que o nosso tópico conversacional passaria a ter um novo marco: 9 de Março.

No início achei que estivesse a conversar com amigos/colegas escritores que gostam de rap. Debalde. Estes tipos são pensadores. No caso deste, foi fácil perceber: ali sentado, na sua, no meio de umas tantas pessoas que estavam ávidas em acompanhar as incidências do sexto festival internacional de poesia (em Xai-Xai), aparentemente aéreo mas atento ao que se estava a tratar e quieto. Quem não o conhecia não poderia adivinhar a desenvoltura do papo que desenvolve. É coisa dos poetas e pensadores. Gostam de ler. Não só os livros, mas os ambientes em que se encontram, sobretudo quando lhes são algo novo. “É o Ernestino Maute”? Perguntei. 

sexta-feira, 10 de março de 2023

Princípios fundamentais da poética

A poética é uma disciplina clássica do discurso que se ocupa do estudo da poesia e de todos aspectos a ela relacionados. Esta percepção é também partilhada por Garcia (2010) ao afirmar que a poética dedica-se “ao estudo geral da poesia, nos seus aspectos estéticos e filosóficos, bem como o estudo formal dos poemas.” (p. 37)

Contudo, Hansen (1994, p. 59) cit. em Souza (2009) assevera que “a poética transcende a ideia de receituário retórico de poesia, passando a designar a investigação sistemática da natureza e funções da literatura, nomeando a disciplina nuclear dos estudos literários contemporâneos.”

Ainda de acordo com o autor (op. cit.), a Poética significará um entendimento específico de certo autor, época ou género literário, deduzível pelas obras por meio de análise, de onde podem surgir expressões como poética de José Craveirinha, poética do modernismo, poética do neo-realismo, etc.

terça-feira, 7 de março de 2023

A problemática do ensino-aprendizagem da Língua Portuguesa no ensino primário em Moçambique: origem e perspectivas

A legislação moçambicana legitima o Português como língua de comunicação oficial, língua de instrução e de prestígio, estatuto que já ostentava desde o período colonial. A sua escolha como Língua Oficial e de Unidade Nacional foi uma decisão política tomada pela Frente de Libertação de Moçambique (Frelimo), ainda no período da luta armada pela independência de Moçambique. Neste período, as comunicações internas no seio da Frelimo eram difundidas em Português por se considerar que, apesar do contexto histórico a ela inerente, serviria de instrumento de unificação de um povo multiétnico e multilingue.

quinta-feira, 2 de março de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Alerto Bia

"de alguma forma, acabo fazendo uso das ferramentas que encontramos no rap na minha própria produção literária"

Já tinha lido o nome em 2014 quando co-organizava uma antologia que publicou poesia feita em Gaza e Niassa. Só em 2021 associei o nome ao rosto. Foi numa feira do livro, em Inharrime. Disse que me queria ler em livro, passei-lhe um dos últimos exemplares que levava comigo. Ainda irei procurar outro fórum para saber da impressão que terá tido daquelas coisas que lá andam. Hoje o papo é outro.

Ando, há já algum tempo, com esta ideia de seguir as pegadas da interdiscursividade que se inscreve entre o rap e a literatura feita nestes dias. Incluí-lo neste experimento era inevitável. Primeiro, pela vivência em Niassa, onde se deu parte da sua amizade com as letras e, segundo, pelo seu afecto com o rap. Não foi difícil perceber isso durante a viagem que fizemos de Inharrime a Quissico. Estávamos ali com Celso Muianga, Almeida Cumbane e Emílio Cossa. Com este último deu para dialogar sobre rap que passava pelo rádio do carro. Com os dois primeiros, só a natureza à beira do asfalto virava tema de conversa e outras tantas coisas. Mas nada de rap.

Demorei perceber, mas não precisava de tanto. Dois minutos de conversa seriam necessários. Mas, cá entre nós, ter mais do que isso é um labor. O homem é de poucas palavras. Deve ser pelo facto de haver, na sua escrita, sinais claros de uma genica para haicais. Se nunca o considerou, devia pensar seriamente nisso.

Nunca o disse a ele. Talvez o pudesse dizer se esta conversa tivesse ocorrido nas imediações do rio Inharrime com um aroma de lúpulo à mistura. Esse era o plano. Mas não deu. Fiz outras viagens sentado numa esteira em Xai-Xai e com um telemóvel à mão. Não foi desta, mas em breve iremos conversar sobre os seus escritos dispersos em antologias e periódicos pelo mundo afora e, sobretudo, reunidos em “Sonhar é Ressuscitar” (2016); “Sombras Cálidas” (2017), “O Desassossego por Dentro” (2021) e “O Ardina de Sapatos Gastos” (2022).  

sábado, 25 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Mélio Tinga

“Acho que a literatura e, sobretudo, a prosa, minha disciplina de trabalho na literatura, é também feita observando o ritmo. A vida só faz sentido porque existe ritmo.”

Diz ter uma relação íntima com o ritmo e sente que a poesia é uma sombra que de si não desgruda mesmo na escuridão. Poético e profundo, não é? A escrita tem este efeito em nós: passamos a vida em exercícios catárticos que dispensam as idas aos psicólogos. A escrita é o nosso consultório. Basta ler a sua frase curta e comedida para perceber que há sinceridade nas suas palavras. Vês: nem sempre “o poeta é um fingidor”. Tem, também, episódios de franqueza. Embora sejam raros, este é um deles.

Voltando à intimidade que priva com o ritmo, fico aqui pensando: qual deve ser a cadência da sua vida? Não é ao acaso que me surge a dúvida. Mélio Tinga tem com a escrita um envolvimento múltiplo que não me cabe descrever, basta pensar no número de vezes em que o seu nome aparece na ficha técnica dos livros editados nos últimos 10 anos. Entre o design, a coordenação editorial e a escrita há uma alma que não sossega porque deve dançar o groove, o funk, o pandza e outros ritmos ditados por essas actividades que alimentam a (nossa) literatura. Só este entusiasmo tripartido seria suficiente para uma conversa de dias e noites, mas não foi desta vez. Acabaríamos por abordar uma questão adormecida sobre a possibilidade de transferir estas coisas escritas neste canal para um periódico com perfil, linha editorial e génese peculiares. Mas há quem diga por aí que boas intenções não morrem, adormecem. E, nesse processo (o da dormência), amadurecem. Deve ser por isso que estamos nesta conversa tela a tela conversando sobre possíveis intercessões entre o rap e a sua escrita.

sábado, 18 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Jaime Munguambe

"Comecei a escrever quando dentro de mim senti o sol a gravitar no céu do meu coração, quando descobri que as palavras não eram apenas uma mera conexão de vogais e consoantes."

“Somos sempre guiados pela balança do prazer”, ele diz. Talvez estivesse nutrido de visões a meu respeito relativamente ao sentimento que me habita neste exercício de conversar com ele sobre o rap e a sua escrita.

Não sei com que idade terá escrito “As Idades do Vento” (2016), um livro de poesia com o qual se estreia nestas coisas de publicar livros. Penso nisto alguns dias depois de termos encetado esta conversa: serão as idades do vento equiparáveis às idades da sua convivência com o rap? [deixo isto para uma conversa futura…]

Os poetas não se cruzam uma vez: seria mau agouro. E, cá entre nós, já estamos há quase dez anos a viver maus agouros na Pérola em resultado de um escrutínio com resultados esmagadores e retumbantes, como sempre. Basta!

Tem uma concepção peculiar sobre a poesia que, aliás, não é só sua. Grassa no nosso tempo. Mas, igualmente, esta é outra coisa sobre a qual nos iremos deter num desses dias numa conversa que não seja “tela a tela”. Antes que prossiga, permitam-me só um comentário: a Silicon Valley é o Egipto dos novos tempos: quantas viagens teria feito para conduzir estas conversas se não tivesse em mãos um brinquedo pensado e manufaturado em Silicon Valley ou numa das suas réplicas pelo mundo afora?

sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Albert Dalela

“trago sempre o hiphop na minha escrita e gostaria de carregar isso sempre comigo: faz parte da minha identidade”

Yo! Não se precisa de muito para identificar um rapper ou entusiasta deste género musical. Há tiques e bordões inconfundíveis, tasaver. (risos)

Quando fazia o inventário dos escritores com quem devia intentar estas conversas, já tinha em mente as minhas suspeitas. Mas, no caso de Albert Dalela, tinha mais certezas que suspeitas: ninguém desenvolve tamanho entusiasmo pelo rap sem que isso impacte na sua vida. E, se a escrita é a modelização das nossas vidas com maior ou menor grau de transparência, há, por consequência, tal impacto nesse exercício.

Fiz esta leitura durante a sexta edição do Festival Internacional de Poesia que realizamos entre Julho e Agosto de 2022, em Xai-Xai. Contudo, nunca podia imaginar que partilhávamos o mesmo seguidismo por uns e outros fazedores de rap. Esta conversa serviu-me como exame de disciplina nestas coisas de conversar com os outros. Consolidei o acto de evitar interromper o interlocutor para dizer “eu também”. Mas é mesmo isso: se gostas de rap, há muitos “eu também” que te poderão ocorrer enquanto lês. É inevitável.

quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Japone Arijuane

"o rap teve uma influência na minha vida: como eu vivo, como eu me dirijo às coisas, como eu converso, como eu me visto, a minha visão sobre a vida…o rap tem essa influência. O rap foi cristalizando o meu carácter. Mas quando é para escrever, não!"

Há geografias na alma que só a poesia pode percorrer. Os poetas, quais geógrafos cientes da sua tarefa de desvendar esses percursos, fazem-no com um à vontade de impressionar. Este é o caso de Japone Arijuane.

Estudos há que revelam as limitações do discurso oral diante do escrito e, também, revelam as suas valências. Mas, depois desta conversa, sou movido a acreditar que o corpus de análise que resultou nestas conclusões não incluíra os poetas.

Faço este intróito algo deslocado para esclarecer aos mais incautos que esta conversa foi oral e espontânea. A profundidade com que as palavras foram ditas resulta, talvez, do que disse no primeiro período deste texto: há geografias na alma que só a poesia pode percorrer.

quinta-feira, 2 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Deusa d’África

“nunca parei para criar um diálogo entre o rap e a minha escrita, mas quem quiser se dedicar a esta análise, pode facilmente encontrar”

Cruzamos caminhos na Casa Provincial de Cultura, em Xai-Xai, já lá passam 12 invernos. Um amigo meu serviu de elo. Quanta nostalgia! “Tempo, tempo, tempo: quero te fazer um pedido!”

Cedeu-me uma cadeira e disse “seja bem-vindo ao comando operativo”. Nem imaginava que por estes dias esse conceito teria outras nuances. (risos)

Entre recitais, festivais, colaborações em antologias e outras coisas, forjou-se uma irmandade de letras e de vivências. Nestas bandas de onde vos falo, não se consegue uma regularidade e verticalidade no labor com as letras e cultura sem um comando à altura. Irónico, não é? Numa província com um machismo enraizado na medula óssea, tem-se uma fêmea a fazer revolução, ladeada por um exército de machos.

Não será preciso dizer a ninguém no curso desta vida líquida que ainda que seja apressada a leitura do fenómeno literário destes tempos, dissertar sobre ele e não mencionar o nome de Deusa d’África é descrever Paris, até a exaustão, sem mencionar a Torre Eiffel.

terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Zaiby Manasse

quando me perguntaram o que lia para começar a escrever, respondi que não lia nada e que escutava rap”

Quando soube que era médico, ocorreu-me uma curiosidade natural: como devem parecer as anotações que resultaram na sua cada vez mais crescente obra? É legítimo que tal dúvida me tenha ocorrido: foi sempre estranha a relação dos médicos com a caligrafia.

Fiquei mais sossegado quando passei a saber que a vida o dera outro ofício com o qual dá vida às cores que, por sua vez, colorem a vida dos que adquirem os seus quadros. Não são da linha do velho Malangatana. Ele serve-se de outras técnicas. Mas sobre isso falaremos noutro dia, não é?

Condeno a minha disciplina no rumo desta conversa porque em nenhum momento pensara em questionar em que momento o homem escreve. Sim, Zaiby Manasse é médico, artista plástico, escritor e rapper. É uma voz não tão nova no cenário literário moçambicano. Publicou poesia [O Mel do Meu Passado Presente (2013); Desvaneios Ensanguentados pela Globalização (2014)] mas é a prosa [Caneta do Balcão 1 (2020/2022), primeira e segunda edição, respectivamente; O Entroncamento (2021/2022), primeira e segunda edição, respectivamente] que o coloca nos holofotes. Se ainda não o li, a culpa é do seu editor com quem tenho privado já lá vão alguns invernos. Pronto. Está feita a denúncia. Em breve terei toda a sua bibliografia, inda que já tenha esgotado os exemplares. Pois é, este é outro talento do Manasse. Pelo menos esta façanha, o editor teve a bondade de me segredar.

sexta-feira, 27 de janeiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Álvaro Taruma


“nunca senti que estivesse a dialogar com o universo rap, mas através dele tive ferramentas essenciais para me definir na escrita”

Falar da produção literária, ou poética (para ser mais específico), em Moçambique, a partir da primeira década do século XXI até esta parte e não mencionar o nome de Álvaro Taruma é como intentar dançar balé por cima de uma bola de pilates.

É, sem sombra de dúvidas, uma voz que se evidencia nestes tempos em que a produção literária moçambicana conhece uma azáfama editorial que não me parece que tenha sido registada noutros momentos. Mas esse não é o motivo desta nossa conversa: não precisamos de proclamar a tigresa do tigre senão deixá-lo na selva e assistir.

Estamos nesta conversa por causa de uma suspeita. Daquelas que precisam de uma sentada para que se deixe tudo em pratos limpos. Fizemos a nossa sentada do mesmo modo com que, agora, você nos lê: à distância. Afinal, já se disse e muito bem: as tecnologias não formam murros mas pontes.