Batemos maningue papo na sua última estadia em Xai-Xai a propósito do lançamento do seu mais recente livro em co-autoria com Otildo Guido (outro bro cuja conversa irei partilhar em breve) “Barca Oblonga” (2022). Num desses papos que tivemos num desses bares da cidade, partilhei este intento de me aventurar em conversas tais com os meus sobre as suspeitas que tenho sobre a sua relação com o rap. Essa foi sempre a primeira premissa. Esta coisa de o rap influenciar na escrita é ainda uma hipótese que estou disposto a falsear: assim reza a ética na pesquisa. As coisas devem fluir numa certa direcção, mas sem imposições. Foi neste mesmo desiderato que seguiu a conversa. Desta vez não foi no bar. Além da vista embaciada, a língua aos arrastos, declarações efusivas de fraternidade…os bares têm outros efeitos. Por isso fizemos assim, tal como nos lê: tela a tela. Podíamos ter conversado sobre a sua escrita, o seu livro “Âncora no Ventre do Tempo” (2021) ou sobre o seu labor no blog “tenacidade das palavras” como forma de degustar este amor que nutrimos pela blogosfera. Mas fica para breve.
Q1.
Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?
Fernando Absalão Chaúque: É difícil precisar o momento ou o ano em que comecei a
escutar rap, porque acho que desde a infância estive sempre envolvido em alguns
ambientes em que havia amantes do rap. Mas presumo que os anos 2008/2009 sejam
determinantes. Escutei-o em casa, em Manhiça, e, principalmente, na escola
secundária através do envolvimento com amigos e colegas com quem criava
sessões, ao intervalo, de audição do bom rap que cada um tinha no celular.
Q2.
EM: Que rappers tem escutado?
FAC: Escuto mais os rappers do underground. Os rappers que
fazer o chamado rap consciente. Que usam o rap como ferramenta para contestar.
Falo de rappers como Azagaia, o Flash, entre outros. Refiro-me também a outros
rappers norte-americanos como Sean Price, Jay Z, entre tantos que não me vêem
em mente agora. Falando, também, do rap tuga, posso mencionar Valete, Sam The
Kid e Kid Mc. Há, entretanto, momentos em que me ponho a escutar os do mainstream para perceber as novas
tendências do que se está a fazer.
Q3.
EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
FAC: É muito difícil para mim fazer o top 5 porque há tantos
rappers que eu admiro. Por vezes, fazer um top 5 é criar rótulos. O primeiro
que eu colocaria, é o rapper americano Nas, digo isso porque foi uma das
primeiras pessoas que eu escutei conscientemente, apesar de que nos tempos não
percebia nada em termos de linguagem, mas ele serviu-me de fonte de inspiração
no rap. É alguém que escutei muito e ainda escuto. Apesar de a indústria
musical norte-americana ter sofrido muitas metamorfoses, ele mantem-se firme no
que quer fazer. Não faz o que o mundo quer ouvir, mas faz o que ele quer dentro
dos seus ideais.
Em segundo lugar, eu colocaria o Fuse (rapper português). É um rapper que
eu admiro devido à sua capacidade de labor com a palavra. As músicas dele são
intensas, com uma carga poética muito profunda e eu acho que, até certo ponto,
as músicas dele já não são exactamente músicas mas são livros em áudio ou uma
outra coisa que não consigo dizer agora. Em terceiro lugar, colo Azagaia por
tudo que toda gente sabe: a garra que ele tem, a forma como ele olha para a
música. Tem-na como um instrumento para servir o povo moçambicano, para servir
a todo ser humano no sentido de contestar, dizer o que só se diz nos bastidores,
etc.
Em quarto lugar, eu coloco o Flash. A razão desta escolha prende-se com a
consistência apesar das transformações que a indústria musical tem sofrido.
Por fim, coloco Duas Caras, porque é um rapper que eu admiro bastante. Ele
sempre fez boa música apesar de ter sofrido críticas devido à nova vibe em que
ele engrenou, mas eu o admiro muito pela capacidade que tem de ir atrás do que
quer. Ele sempre disse que precisava de rentabilizar a música: fez pandza,
agora manteve-se no rap, fez o nome e tem procurado fazer o que as pessoas
querem ouvir.
Q4.
EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?
FAC: Já gravei muita coisa. Comecei a gravar em 2011, mas comecei
a escrever letras de rap em 2009. Já tive um grupo de hiphop com amigos em
Manhiça. Foi um grupo de que se falou muito nos tempos, fazíamos rap
underground. Tenho, inclusive, algumas faixas nossas gravadas. Actualmente
tenho gravado uma e outra coisa, mas estou mais virado para a literatura.
Q5.
EM: Quando e como começou a escrever textos literários?
FAC: Eu comecei a escrever textos literários em 2013, num
momento em que já não tinha tempo para ir ao estúdio para gravar com os meus
amigos. Assim, decidi que ao invés de ficar a escrever letras, tinha de fazer
outra coisa que me deixasse conectado com a palavra. Comecei pela poesia e, na
verdade, só começo a escrever poesia porque passei pela escola do rap. A
caminhada toda que tive desde 2008/2009 a escutar, depois começar a escrever
foi muito importante porque foi através do rap que eu aprendi. Eu tive um
senhor que quando comecei a escrever letras, disse-me que se quisesse ser um
bom rapper underground, a primeira coisa que devia conhecer é a palavra. E,
sendo assim, ofereceu-me um dicionário e disse “aqui podes encontrar as palavras que tu queres para fazeres as tuas
letras, é só ires aqui e vasculhar…vais encontrar as palavras certas para as
tuas letras”. Outra coisa que me disse foi que eu tinha de ler muita
poesia, textos narrativos…deu exemplo das músicas de Valete em que se narra uma
história…enfim, deu-me uma visão do que é isso de ser rapper, storyteller, do
lirismo ou do liricismo como se diz. Segui essas dicas e comecei a escrever
poesia usando a bagagem que eu já tinha. Daí fui ambicionando outros géneros.
Q6.
EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo rap na sua produção literária?
FAC: Várias vezes tive essa sensação de estar a escrever um
texto e parecer que estou a dialogar com uma música através de uma frase ou um
verso. Há casos, também, de pontos conscientes em que eu tenho uma ideia de um
texto em mente e lembro-me que há uma música que dialoga com essa ideia. Acabo
por pensar num verso desse tal rapper e adequá-lo como se fosse uma paráfrase.
Há muita interferência do rap no que escrevo, principalmente nas músicas que me
marcaram nesta trajectória toda. Por exemplo, há dias publiquei um texto
intitulado “melhor governo do mundo”
que comecei a escreve-lo por causa desta coisa da TSU, etc. Quando terminei, li
várias vezes e ocorreu-me que o que escrevi no texto é o que Kid Mc diz na
música “o que querem que eu cante”.
Mesmo assim, publiquei o texto porque achei conveniente que o publicasse mesmo
sabendo que há essa coisa. Quando o fiz, o meu amigo Albert Dalela, também
escritor, disse “esse teu texto
lembrou-me - o que querem que eu cante - de Kid Mc.”
Com isso quero dizer que por vezes esta interferência do rap ocorre de forma
consciente ou inconsciente.
Q7.
EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
FAC: Escutar rap contribui muito para a minha produção
literária, porque, tal como já referi, aprendo muito com o trabalho que os
rappers têm com a palavra e no sentido de perceber o ângulo em que posso
abordar um certo assunto num texto. Os rappers têm essa capacidade de ter um
problema social em destaque num texto, mas sem desmanchar tudo no primeiro
verso. A ideia de condensação da matéria. O rapper pode fazer uma música de 5
minutos a falar de uma determinada coisa, mas vai deixando ficar a sua mensagem
nas entrelinhas. Muitas vezes é o que romancistas fazem ao escrever um livro de
300 páginas por exemplo, mas deixando ficar a ideia que se pretende abordar no
livro a conta-gotas.
Q8.
EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
FAC: Esta última questão é um pouco dilemática, porque o rap
que se tem feito ultimamente tem muito pouco de literário. São poucos rappers
que conseguem trazer uma música consciente. Há mais rappers virados para o mainstream. Entretanto, há os que se
mantêm nesta linha de trazer o literário nas suas músicas. Por exemplo, quando
olhamos para algumas músicas de Azagaia, algumas músicas de Flash e de outros
rappers como Sick Brain, encontramos algumas referências que eles fazem a nomes
como Mia Couto, Craveirinha, Paulina Chiziane, etc. e isso é muito bom.
Ainda sobre este paralelismo entre o rap e a literatura, temos a Iveth com “surge et ambula, mulher: tu és mais que isso”, também faz uma referência ao texto de Rui de Noronha que também tem uma intertextualidade com o “Surge et ambula” de Antero de Quental.
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