quinta-feira, 27 de abril de 2023

Ágora: um exercício de cidadania e de contemplação

“nunca a justiça foi tão ínvia e a verdade uma porção de pó”

Escrevi um texto há dias. Uma provocação de bom gosto para quem se expõe ao contraditório para repensar as suas crenças, atitudes e escolhas. “Os nossos poetas vivem lacrados em torres de marfim” era o título da provocação cujo interesse não era outra coisa, senão um convite ao debate sobre o nosso labor enquanto poetas/escritores deste tempo e desta parte do Índico.

Em “Ágora” de Samuel Pimenta encontrei a materialidade da minha utopia no exercício da escrita: uma construção imagética primorosa e um efeito de sentido que nos deleita e desassossega. Ler este trabalho e não olhar para o horizonte e questionar-se sobre o sentido da vida, do mundo, dos nossos credos ou a ausência deles é um exercício impossível.

“Ágora”, termo pelo qual Samuel Pimenta intitulou este conjunto de poemas, é uma referência à “praça das antigas cidades gregas, na qual se fazia o mercado e onde se reuniam, muitas vezes, as assembleias do povo.” A leitura deste conjunto de textos reenvia-nos para a certeza de que o título não foi resultado de um acaso ou do interesse no efeito fónico da palavra, mas daquilo que ela significa.

Por ter sido um espaço de cidadania nas antigas cidades gregas, o livro apropria-se deste sentido simbólico para definir a sua proposta estética e expressiva em todo o tecido textual que o constitui. O questionamento, a reflexão sobre o eu, os outros, o tempo e espaços em que habitamos faz justiça às palavras que Samuel Pimenta proferiu quando recebeu, por este livro, o Prémio Literário Glória de Sant’Anna (2016): “Glória de Sant’Anna é uma das minhas mestras, recebi a notícia com alguma emoção. Ainda mais por este livro, claramente interventivo e questionador desta era escura que nos querem impor”, revelou.

Perceber esta consciência sobre o seu labor poético em “Ágora”, depois de me ter remetido a uma série de reflexões que o livro sugere, tornou-se inevitável não me recordar das palavras de Roland Barthes segundo as quais “a literatura é uma forma de questionamento, uma maneira de desafiar as verdades estabelecidas e de explorar novos caminhos.”

Ao ouvir as suas palavras e associá-las ao que nos revela Barthes neste pensamento pode transmitir uma ideia injusta sobre o livro no sentido de concebe-lo como mosaico panfletário. Definitivamente, não é! Entre o já aludido questionamento e a reflexão que dele advém, há uma construção imagética que se evidencia e serve-se de elementos sensoriais para criar um modo único de trabalhar a palavra através da representação figurativa que se apropria de elementos da natureza, sobretudo, o mar. Desencadeia-se por aqui, talvez, a relação de mestre-discípulo com Glória de Sant’Anna.

Ler na página 19 “as casas da cidade estão despovoadas de gente e não mais voltará o humano para as habitar”; ou na página 27 “a verticalidade não se mede na lonjura do que se ergue ao alto mas na vigília de cada passo/ Nobres são os que se curvam em liberdade/ aventurados os que crescem por dentro/ de entre todas as vidas há sempre alguém que se santifica/ há sempre alguém que se ergue um pouco mais”; ou mais adiante na página 28 “nunca a justiça foi tão ínvia e a verdade uma porção de pó” é uma espécie de amostra de tudo quanto disse até esta parte, excepto a presença do mar no seu exercício estético que, eventualmente, possa ser uma janela de leitura dialógica com o que já se sabe sobre a escrita de Glória de Sant’Anna.

Este exercício estético cujo material imagético encontra elementos preferenciais no mar é mais evidente na terceira parte do livro intitulada Cais”. Nas duas primeiras, “Pólis e “Acrópole”, respectivamente, revela-se esta veleidade crítica com forte carga satírica numa escrita permeada por aforismos e referências que nos remetem à Grécia antiga, facto que me é revelado a partir do título “Ágora”, tal como referi, e pelos títulos das partes pelos quais o livro é dividido.

Ao ler o texto “Pólis” na página 13 este facto torna-se mais evidente: “abandonaram-te os deuses e as pitonisas./ Emergem turvos os fumos dos oráculos./ Que silêncio este que te inquieta/ esta surdez viva de quem perdeu a visão.”

Depois desta densa reflexão sobre esta “era escura que nos querem impor”, em “Cais” surge um elemento que ainda não se vislumbrava ao longo do livro: a esperança. O texto “Europa reencontra o Touro” é revelador deste aspecto. Nele podemos ler: “Esperei na praia para ouvir-te/ e numa concha regressaste ao meu reinado./ Corrompi todas as luzes durante o exílio/ e esqueci como o amor se pronuncia./ Já não peço a fuga mas o resgate.”

Esta alusão a elementos como “Touro” e a apropriação figurativa do que eles representam não é um caso isolado deste texto, mas permeia toda obra à semelhança de realidades da mitologia grega que desencadeiam isotopias temáticas que fazem do texto um universo crítico, estético e enciclopédico.

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