“nunca a justiça foi tão ínvia e a verdade uma porção de pó”
Escrevi um texto há dias. Uma provocação de bom gosto
para quem se expõe ao contraditório para repensar as suas crenças, atitudes e
escolhas. “Os nossos poetas vivem
lacrados em torres de marfim” era o título da provocação cujo interesse não
era outra coisa, senão um convite ao debate sobre o nosso labor enquanto
poetas/escritores deste tempo e desta parte do Índico.
Em “Ágora” de Samuel Pimenta encontrei a materialidade da
minha utopia no exercício da escrita: uma construção imagética primorosa e um
efeito de sentido que nos deleita e desassossega. Ler este trabalho e não olhar
para o horizonte e questionar-se sobre o sentido da vida, do mundo, dos nossos
credos ou a ausência deles é um exercício impossível.
“Ágora”, termo pelo qual Samuel Pimenta intitulou este conjunto de poemas, é uma referência à “praça das antigas cidades gregas, na qual se fazia o mercado e onde se reuniam, muitas vezes, as assembleias do povo.” A leitura deste conjunto de textos reenvia-nos para a certeza de que o título não foi resultado de um acaso ou do interesse no efeito fónico da palavra, mas daquilo que ela significa.
Por ter sido um espaço de cidadania nas antigas cidades
gregas, o livro apropria-se deste sentido simbólico para definir a sua proposta
estética e expressiva em todo o tecido textual que o constitui. O
questionamento, a reflexão sobre o eu, os outros, o tempo e espaços em que
habitamos faz justiça às palavras que Samuel Pimenta proferiu quando recebeu,
por este livro, o Prémio Literário Glória de Sant’Anna (2016): “Glória de Sant’Anna é uma das minhas
mestras, recebi a notícia com alguma emoção. Ainda mais por este livro, claramente
interventivo e questionador desta era escura que nos querem impor”,
revelou.
Perceber esta consciência sobre o seu labor poético em “Ágora”,
depois de me ter remetido a uma série de reflexões que o livro sugere,
tornou-se inevitável não me recordar das palavras de Roland Barthes segundo as
quais “a literatura é uma forma de
questionamento, uma maneira de desafiar as verdades estabelecidas e de explorar
novos caminhos.”
Ao ouvir as suas palavras e associá-las ao que nos revela
Barthes neste pensamento pode transmitir uma ideia injusta sobre o livro no
sentido de concebe-lo como mosaico panfletário. Definitivamente, não é! Entre o
já aludido questionamento e a reflexão que dele advém, há uma construção
imagética que se evidencia e serve-se de elementos sensoriais para criar um
modo único de trabalhar a palavra através da representação figurativa que se
apropria de elementos da natureza, sobretudo, o mar. Desencadeia-se por aqui,
talvez, a relação de mestre-discípulo com Glória de Sant’Anna.
Ler na página 19 “as
casas da cidade estão despovoadas de gente e não mais voltará o humano para as
habitar”; ou na página 27 “a
verticalidade não se mede na lonjura do que se ergue ao alto mas na vigília de
cada passo/ Nobres são os que se curvam em liberdade/ aventurados os que
crescem por dentro/ de entre todas as vidas há sempre alguém que se santifica/
há sempre alguém que se ergue um pouco mais”; ou mais adiante na página 28 “nunca a justiça foi tão ínvia e a verdade
uma porção de pó” é uma espécie de amostra de tudo quanto disse até esta
parte, excepto a presença do mar no seu exercício estético que, eventualmente,
possa ser uma janela de leitura dialógica com o que já se sabe sobre a escrita
de Glória de Sant’Anna.
Este exercício estético cujo material imagético encontra
elementos preferenciais no mar é mais evidente na terceira parte do livro
intitulada “Cais”. Nas duas primeiras, “Pólis”
e “Acrópole”, respectivamente, revela-se esta veleidade crítica com forte carga
satírica numa escrita permeada por aforismos e referências que nos remetem à
Grécia antiga, facto que me é revelado a partir do título “Ágora”, tal como
referi, e pelos títulos das partes pelos quais o livro é dividido.
Ao ler o texto “Pólis” na página 13 este facto torna-se
mais evidente: “abandonaram-te os deuses
e as pitonisas./ Emergem turvos os fumos dos oráculos./ Que silêncio este que
te inquieta/ esta surdez viva de quem perdeu a visão.”
Depois desta densa reflexão sobre esta “era escura que nos querem impor”, em
“Cais” surge um elemento que ainda não se vislumbrava ao longo do livro: a
esperança. O texto “Europa reencontra o
Touro” é revelador deste aspecto. Nele podemos ler: “Esperei na praia para ouvir-te/ e numa concha regressaste ao meu
reinado./ Corrompi todas as luzes durante o exílio/ e esqueci como o amor se
pronuncia./ Já não peço a fuga mas o resgate.”
Esta alusão a elementos como “Touro” e a apropriação figurativa do que eles representam não é um caso isolado deste texto, mas permeia toda obra à semelhança de realidades da mitologia grega que desencadeiam isotopias temáticas que fazem do texto um universo crítico, estético e enciclopédico.
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