Gosta de Zaida
Chongo. Nunca entendi, mas tenho suspeitas. Só uma é partilhável neste espaço:
a metáfora com que construía as suas músicas. Autênticas pirâmides egípcias:
firmes e perenes. Outras suspeitas, já partilhei com ele próprio. Quem quiser
saber, pode me convidar para um talk show
num café, bar ou lounge desta cidade com muitas acácias sem que seja de acácias
como a outra que dista a duzentos e pouco quilómetros.
Desse gosto e de
outros, evidentemente, bebeu a imagem. Tem com ela uma relação religiosa no seu
labor enquanto escritor. Querendo, pode estabelecer uma escola sobre isso.
Entre a vontade e o preparo, garantia a façanha.
Sim. Conheço-o já lá vai quase uma década. Mas se os anos fossem contados pelos litros de líquidos misturados com lúpulo, estaríamos a uns tantos…quase 50, para ser mais humilde. Qual é a fórmula para tecer a camaradagem? Arte? Sangue? Tempo? Latitudes? Quotidiano? Gostos? Desgostos? Não sei. O certo é que já foram várias as vivências, tanto quanto o são os litros.
Pronto.
Deixemos. Não é sobre isso que aqui estamos, tela a tela. É sobre rap. Dizemos
que temos uma conversa por levar sobre as perspectivas de fazer arte, mas tal
fica sempre adiado, porque o rap sempre define o curso dos papos. Este foi mais
um. A diferença entre este e os outros tantos é que este foi gravado e servirá
de amostra.
Além destas bobagens, podíamos encetar uma conversa sóbria e longa sobre “o silêncio da pele” (2019), “o osso da água” (2020), “barca oblonga” (2022) e um belíssimo romance que tive a honra de ler e sugerir vírgulas e reticências já lá vão uns 3 anos. Mas não foi desta. Se tal acontecer, farei uma gravação sem prévio aviso.
Q1.
Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?
Otildo Justino Guido: Comecei a escutar o rap por volta de 2008. Nesta altura
comecei a desenvolver uma relação muito afetuosa com o rap porque foi através
de um grupo de amigos com quem me sentava em algum lugar da Vila de Inharrime e
escutávamos várias músicas. A coisa foi fluindo por aí…íamos trocando
referências. Aquilo que interessava a um partilhava com outro assim fazíamos
uma corrente de amizade feita por este género musical.
Q2.
EM: Que rappers tem escutado?
OJG: Vários tem sido os rappers que têm cruzado a minha vida
nesta relação de amor com este género musical. Ao citar aqui os nomes, posso
cair no erro de não me lembrar de alguns, porque cada tempo tem as suas
nuances, tem os seus rappers, tem as suas artes, tem as suas vibes…
Fui descobrindo…fui conhecendo, mas há aqueles que sempre levo no coração e
que são fáceis de aqui dizer, mas não todos. Por exemplo, no rap que nos chega
de Moçambique, este país que é nosso, gosto muito do Flash, do Lagacy, Duas
Caras, Xitiku Ni Mbaula, Azagaia, Iveth, Rage…prontos, são vários.
Depois vamos para Angola, onde conhecemos o MCK, o Kid Mc, o Fly Squad,
Força Suprema (Prodígio, NGA, Masta, Monsta)…esses todos têm ocupado espaço e,
portanto, tem dito boas que coisas que nos interessam muito. Depois fomos
conhecendo alguns rappers de Portugal: o Sam The Kid, o Valete, Mundo Segundo,
Boss Ac, Regula, Allen Halloween…
Mais tarde fomos espreitando as américas: o Nas, o Dr. Dree, Jay Z, MOP, 50
Cent, Eminem, Kendrick Lamar, Rick Ross, Snoop Dog, 2 Pac, DMX, Fat Joe,
Notorious BIG…são vários rappers que não iam caber numa única linha.
Em suma é isto: escuto sempre rappers de Moçambique, de Angola, de Portugal
e dos EUA. Fui esquecendo-me de alguns que agora me vêem em mente, porque são
vários…contudo, a lusofonia ocupa mais espaço porque podia incluir também os
brasileiros. Ainda na lista dos moçambicanos, não posso deixar de fora o Allan
que é um rapper que tem sabido explorar muito bem o que ele sabe fazer de
melhor que é contar histórias com palavras; que é introduzir todo o seu fôlego
na criação das suas músicas. Tem lançado pouco, mas o que lança é muito bom.
Q3.
EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
OJG: Sinto-me incapaz de fazer um top 5 de rappers no geral.
Para mim existem muitas variáveis que acho que não seria justo comparar, por
exemplo, um rapper que canta em português e um rapper que canta em inglês. São
muitas variáveis que precisam de uma equivalência que eu não conseguiria
estabelecer. Portanto, se me permite, vou fazer um top 5 da lusofonia/dos
países falantes da língua portuguesa.
Em primeiro lugar, Allen Halloween. Coloco-o nesta posição pelas seguintes
razões: é um rapper com muita simplicidade. Ele conseguiu trazer aquilo que é o
cerne da escrita, a representatividade do povo, a vida gangster, as ruas não só
de Portugal, mas do mundo em geral…todo país se revê nisto de alguém que está à
beira da cova e quer sair disto mas não consegue. O Allen Halloween, com o seu
jeito gangster conseguiu trazer isto de um jeito muito simples, sem com isto
banalizar a escrita. E esta é a coisa mais difícil na escrita: ser simples, mas
profundo.
Na segunda posição coloco Mundo Segundo. Ele é oposto de tudo que eu falei
do Allen Halloween. E é por esta razão que está a ocupar esta posição. Ele traz
o incomum. O trabalho com a linguagem. Quando ele fala, por exemplo, de
assuntos sociais, ele não precisa de banalizar esses assuntos. Ele busca da
mais profunda forma e cultiva a palavra para poder expressar esta coisa com um
certo ritmo, com um certo estilo, com uma certa harmonia que nos agrada os
ouvidos.
Na terceira posição vou colocar o Kid Mc. Este angolano, esta voz
incorrigível…é um rapper que, acima de tudo, confronta os assuntos do
quotidiano, políticos, assuntos que afectam vários países para não dizer todos
países africanos. Ele coloca dentro da música este espaço de reflexão desses
assuntos com uma certa dicção, uma certa calmaria que agrada a todos e depois
tem uma certa tonalidade…a sua voz vai subindo, vai descendo e ele não perde o fôlego
e vai tecendo estes paradigmas sociais, políticos e económicos de vários países
africanos.
Em quarto lugar temos o Flash, este moçambicano que traz uma outra forma de
fazer rap do que nós estamos habituados dentro do nosso círculo de rappers.
Esta é a coisa que o destaca. Temos vários rappers pelo país e, na verdade, em
termos de poesia e de rap, este é o país que mais faz bem. Ao nível da
lusofonia está no mesmo nível de robustez com Portugal. Portanto, o Flash sai
dos eixos por onde passa toda gente e desdobra a palavra. Ele sai do comum, sai
da caixa e não diz as coisas como toda gente diz, porque o rap é assim…é uma
forma de intervenção. Ele vai fazendo esta intervenção de um outro jeito, de
uma outra forma irreverente na própria construção. Uma outra forma
misteriosa…temos de estar neste processo de busca pelo conteúdo, de busca pela
compreensão do que ele diz e isto destaca-lhe dos restantes rappers que estão
aqui dentro do nosso país. E, também, o flow, a dicção, a harmonia com que ele
manipula a instrumental…
Na minha quinta posição vem o Sam The Kid. É um rapper fenomenal que seria
um erro não coloca-lo nesta lista, porque ele, por si, é uma escola. Ele
introduz fórmulas dentro da sua escrita que precisam de ser decifradas. A sua
escrita é uma equação de palavras que precisa de ser calculada, compreendida e
decifrada. Ele tem um jeito muito único de subir na instrumental e dizer as
coisas e por aí em diante.
Se me permitires como bacela, vou deixar aqui o Valete. Ele está no mesmo
nível de escrita que os outros top 5, mas não os posso colocar todos tal já
havia dito: são vários. E, se eu coloco o Valete, coloco automaticamente o
Azagaia. É impossível dissociar o Valete do Azagaia. Há quem diga que o Valete
é o Azagaia de Moçambique e o Azagaia é o Valete de Portugal. O que o Valete
busca é um rap consciente, um rap “académico”, um rap didáctico e isto também o
leva a um certo patamar. O Azagaia faz esta intervenção, sobretudo, política e
já vem fazendo isto mesmo quando isso custava caro aos artistas, mas ele se
manteve firme com este género apesar das perseguições que teve. Ele usa este
estilo musical para o bem da sociedade e, realmente, coloca o povo no poder.
Q4.
EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?
OJG: Já escrevi e já gravei várias músicas neste género
musical desde quando comecei a gostar disto. Fiz parte de dois grupos musicais
que faziam rap. Fui continuando a gravar mesmo quando estes grupos se
desfizeram e até hoje o faço quando recebo um convite para o efeito.
Q5.
EM: Quando e como começou a escrever textos literários?
OJG: Eu já escrevia letras de música e ficava com muitas
delas em casa. Algumas delas não gravava por várias razões, uma delas era por
falta de dinheiro para pagar no estúdio (risos). Por outro lado porque não
podia importunar o produtor com novas músicas enquanto ele estivesse a
masterizar outras. Portanto, era um momento em que me dedicava muito a
escrever, a escutar e a gravar. Esta foi a minha brincadeira de infância.
Outros brincavam com carrinhos, outros com futebol e eu brincava com rap. Neste
processo de escrever e guardar, alguns amigos diziam que algumas letras tinham
alguma coisa que pudéssemos equiparar com o poema. Não só a métrica, mas o
próprio conteúdo. Daí eu percebi que podia levar aquilo para um outro sentido
de trabalho, para uma outra direcção. Foi assim que entro para o universo
literário. Isto ocorre por volta dos anos 2012/2013 e fui me dedicando
seriamente que até hoje sou cultor deste género literário que é a poesia e vou
aperfeiçoando ao longo do tempo. É inalcançável, eu sei, mas é um processo duro
e que estou até agora aprendendo, falhando, acertando, pensando, apagando e por
aí em diante…
Q6.
EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo rap na sua produção literária?
OJG: Neste processo de escrita de um texto poético, eu já
senti como se estivesse, de uma ou de outra forma, em diálogo com a música.
Este diálogo não é só discursivo, material mas também rítmico. Uma espécie de
escrever ao ritmo de alguma música, sentir a respiração dos instrumentais e
poder escrever. Mas também já senti que estivesse a dialogar com alguma matéria
que os rappers vão abordando e que também me interessa abordar a mesma linha,
porque neste processo de escrita, de canto e de outras artes compartilhamos o
mesmo espaço e experimentamos aquilo que os outros experimentam e as artes se
apoiam a esses utensílios para poderem se autoconstruírem. Por isso várias
vezes já senti este diálogo constante entre o que escrevo e o rap.
Q7.
EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
OJG: É afirmativo. O facto de eu escutar rap contribui, de
certa forma, na minha produção literária. Eu digo de certa forma porque o rap é
uma arte e carrega algumas características próprias. O rap que eu fui escutando
desde a minha génese neste processo de construção de textos literários, foi
sempre o rap underground. E isto possibilitou-me olhar o mundo de um jeito
interventivo. Se formos aí a ver os meus primeiros textos, pode se verificar
este cunho social…esta força humana interventiva e isto fui aprendendo com o
rap. E esta forma de dizer as coisas de um jeito espontâneo sem medo e
respeitando também este espaço dos textos literários, sobretudo a poesia, como
um lugar de vozes onde não só cabe quem o faz mas os outros que escutam, porque
o rap assim como a poesia tem este poder de emprestar a fala do povo para
construir uma arte e dizer “não” mas o “não” não ser do artista, mas
representar o povo. Então, esta representatividade que as artes têm, sobretudo
a poesia que escrevo, foi inspirada pelo hiphop.
Q8.
EM: Que paralelos pode traçar acerca do RAP e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
OJG: Eu não sei se sou a pessoa certa para poder fazer esta
linha de análise, este paralelismo entre o rap e a produção literária. Mas o
que tenho a dizer é o seguinte: há uma produção massiva de textos literários.
Mas nesta produção há aquilo que é bom e o que não é bom. Ficando aqui o tempo
por julgar aquilo que é literariamente funcional e não funcional, porque é tudo
uma questão de contextos.
Verifica-se, também, dois prismas: o primeiro é uma situação em que rappers
vão citando obras literárias de escritores consagrados (Mia Couto, Paulina
Chiziane, etc.), isto mostra uma certa aproximação entre o rap e a literatura.
Mesmo que seja só por citar uma obra literária, isto mostra que há este afecto,
este acarinhamento por esta obra.
O que resta saber é se há leitura ou não. Nota-se, também, casos em que
alguns rappers vão escrevendo livros. Verificamos recentemente o Allen
Halloween que escreveu um livro que reunia algumas letras musicais do seu
percurso e verificamos rappers de outros quadrantes que foram escrevendo
livros. Isto mostra que há este interesse que é de génese e que não se pode
dissociar o rap da produção literária.
Estes são dois caminhos que se cruzam, que se unem e que, de certa forma,
todos ganham o espaço da intervenção, porque tanto o rap assim como a
literatura têm esta missão de fazer uma intervenção social e “política”. Há,
contudo, alguns aspectos estéticos que são ressaltados no seu processo da
construção. Repare que tenho estado em Inharrime e em Xai-Xai, onde eu vivo
agora, e o meu círculo de amizades é composto por músicos e escritores. Os
assuntos que são discutidos à mesa são os mesmos tanto com uns assim como com
os outros, o que revela esta irmandade existente entre a literatura e a música,
no seu todo, e o rap, em particular.
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