sábado, 22 de abril de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Nelson Lineu

“eu tenho raízes criadas pelo rap por ver a sociedade com os seus problemas e querer abordar isso, mas sempre numa perspectiva daquilo que a literatura exige”

Tenho cá uma vaga impressão de já termos privado algum diálogo face-a-face, há uma dúzia de anos. Se tal tiver acontecido, a maior possibilidade aponta para os tempos em que o Movimento Literário Kupaluxa e a Associação Cultural Xitende encontravam na poesia uma forma de criar alguma irmandade na Casa Provincial de Cultura, em Gaza. É mesmo uma impressão, mas esses são outros quinhentos que em nada servem para nortear o curso desta nossa conversa.

Falando em curso, já lá houve algum curso numa conversa entre poetas que têm uma vivência com o rap? Nunca. Os poetas não fazem cursos. Mas a faculdade inteira. (risos) “Tasaver”: são heranças do rap.

Nem com ele, nem com os demais participantes destas conversas partilhei as minhas vivências com o rap (ou a ausência delas). Não era o objectivo destas coisas. Havendo possibilidade, vejo-me sentado algures com ele e outros numa mesa redonda. Um dia, não muito distante, realizamos a façanha.

Pelas perpectivas que tem da música (e não só), tinha material ideológico suficiente para ser um grande músico. Se não o é, outras circunstâncias definiram o curso da narrativa. Seria redundante dizer nestas linhas o que ele é como poeta. A quem não conhece o seu pendor, os meus sentimentos. Distração maior sobre a literatura dos nossos tempos não há. Já agora, há uma nova ordem que devemos dar aos nossos cursos de letras. Estamos sempre a ler os mesmos elefantes brancos. Acrescer novos nomes, é urgente.

Publicou “Cada um em mim” (poesia-2014); “Asas da Água” (poesia-2019); “O passo certo no caminho errado” (crónicas-2021) e a genica do homem para a coisa literária é vasta. Disse-me, durante a conversa, que anda metido em roteiros para telenovelas. Deu a sua mão à “Maida” e à “(A) Infiltrada” que passam numa das nossas estações televisivas. No meu lar, estas duas telenovelas desencadeiam unanimidades na já costumeira guerra de canais. Neste caso, há concordância. Toda gente quer.

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Nelson Lineu: Esta questão é como quando perguntam “quanto tempo ficaste para produzir um livro”. Eu não acho que haja um momento específico para escrever um livro. Há um conjunto de experiências, tanto de vida como de leitura que depois fazem com que o texto nasça. Portanto, eu não me lembro muito bem de quando comecei a escutar rap. A única coisa que te posso dizer é quando é que este estilo começou a se fazer sentir na minha vida, por isso julgo que tenha sido no intervalo de 1994 a 1995. Tinha uma ligação muito forte com a música, não necessariamente o rap. Eu e um grupo de amigos cultivamos essa ligação em Quelimane. Na altura havia lá um bar denominado Sinakura e era normal que as pessoas tivessem uma espécie de banda, embora sem um material convencional. No entanto, tocávamos todo tipo de música, estava lá o rap, o rock, o reggae, as kizombas/passada…mas, no fundo, não eram músicas totalmente originais. Eram músicas de alguns cantores, que nós adaptávamos à nossa realidade. 

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

NL: O primeiro rapper que me marcou no verdadeiro sentido foi General D, depois seguiu-se, quase na mesma altura, os Black Company, o Boss Ac, o Gabriel o Pensador, o MV Bill, os Racionais MCs, Emicida, Valete, Sam The Kid…

Aqui em Moçambique gosto muito do Rage, Duas Caras, Azagaia…enfim, se fores a ver, todos esses que eu mencionei estão ligados a um rap mais consciente, mas, em algum momento, escutava o que nós chamamos de bounce, simplesmente só para sentir a vibe, mas não é o meu foco.

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

NL: Eu começaria por General D por ter sido um dos primeiros rappers que me marcaram. Depois Valete, porque me marca muito, Gabriel o Pensador, Duas Caras…olha são tantos, mas vou mencionar um que não tem tanta expressividade no nosso país como eu acho que merecia: o Rage.

Repare que eu já fazia rap há muito tempo e quando saio de Quelimane para Maputo para estudar no Instituto Industrial (curso de Construção de Estradas e Pontes), disse aos meus pais que vinha pelos estudos. Eu podia até fazer na Beira, mas eu vim a Maputo pelo rap, não necessariamente pelos estudos. Quando chego cá e passo a prestar mais atenção aos rappers de que eu gostava (General D, Valete, MV Bill, etc.) percebi que havia alguma coisa além da batida, das rimas e tal feito era obra de leitura. Daí fui lendo para melhorar as minhas letras e nesse mesmo período também vivia uma crise existencial muito grande. Foi muito bom, porque esses rappers que eu mencionei foram me dando um outro feeling, não só pela melhoria das minhas letras como foram fundamentais na minha constituição como ser humano: a indignação social, a necessidade de mudar algo com a arte, etc.

O Valete, nesse sentido, foi um grande marco para mim. O Gabriel o Pensador, também, pelo mesmo motivo. Até hoje os discos dele são de cabeceira…se temos livros de cabeceira, creio que tenhamos, também, discos de cabeceira. Quanto ao Duas Caras, escuto mais as músicas antigas dos tempos da GPro. A “geração tv” foi um grande marco. Quanto ao Rage, é tal como eu tinha justificado porque tem um feeling e flow interessantes, mas não chegou a ter a visibilidade que merecia.

Q4.

EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?

NL: Já escrevi e gravei. Antes de fazer rap, tinha uma banda com amigos, tal como referi. Mais tarde, por volta de 2004, passei a fazer rap e era membro de um grupo de rap denominado 3/75 do qual faziam parte, também, o Japone Arijuane. Eu era A4, o Japone AX e o nosso amigo era Tropa. Mesmo nos dias de hoje, acordo com uma ideia que acredito que pudesse traduzir em rap, mas praticamente já parei. Outro facto é que, na altura, eu não tinha condições monetárias para o que queria: ambicionava um tipo de rap que se misturasse com outros ritmos da timbila, do tambor, etc. Mas em 2006 consegui gravar umas 6 músicas no Kazulu e foi uma experiência muito boa com o Cachimbo.

Mas o curioso é que as músicas que eu gravei, não chegam a 1% do que eu escrevi. Tal como disse, estava a viver uma crise existencial e foi um período em que escrevi muito e escutava muito rap. Eu ficava muitas vezes fechado no quarto só a escrever ou a escutar rap porque me interessavam muito as músicas dos rappers que mencionei sobre temas de intervenção social, mas, acima de tudo, eu gostava do lado mais íntimo, porque todos falamos de revolução, mas eu acho que para existir uma revolução social, tem de existir uma revolução pessoal.

Por isso, o que eu escrevia era mais para essa tendência de olharmos para nós mesmos e quando sairmos à rua o fazermos cientes de quem somos ou quem nós queremos ser e lutarmos para sermos essa pessoa que nós desejamos. Por outro lado, tem a ver com o facto de aceitarmos o que nós somos e melhorarmos alguns pontos. Mas também tenho uma outra percepção a respeito desta questão da música porque as pessoas pensam que é só a mensagem, mas é muito mais do que isso. No meu caso interessam, também, as batidas porque esse diálogo que mantemos com as pessoas não é só através da voz ou do conteúdo que aparece na música, mas, acima de tudo, a harmonia que os instrumentos têm é algo que se pretende transmitir às pessoas.

Ora, o que me afasta do rap foram as questões financeiras para gravar o que escrevia; o número de pessoas envolvidas no processo da produção da música parece-me maior em relação ao texto literário, embora depois da produção tenha de passar por outros processos; outro motivo é que acredito que escrevia muito bem, mas sinto que não tinha aquele flow para um rap. Lembro-me de alguém que numa entrevista na televisão dizia que há pessoas que estão a cantar, mas, provavelmente, são melhores a escrever do que a cantar. Então, esta é uma interrogação que eu tenho sempre comigo. Foi assim que abandonei o rap, porque no processo de leitura para melhorar as minhas letras, acabei me apaixonando pela literatura embora já escrevesse poesia havia já algum tempo. Em todo caso, o que eu acho que queria trazer na música, penso que consiga fazer na literatura.

Q5.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

NL: Posso apontar um momento. Penso que estava na quinta classe, e tínhamos de apresentar um poema alusivo ao dia 1 de Junho. Ao que uma colega minha incentivou-me a escrever. Embora não fosse algo que possamos considerar do começo do meu processo de escrita como tal, mas acredito que seja um marco. Mesmo quando fazia rap em Quelimane, já tinha um volume com cerca de 50 textos e que podiam constituir um livro. Contudo, acabei desistindo por pensar cá comigo o seguinte: “se nem no rap que estou há anos…ainda não alcancei o ponto que queria, tal não vai ocorrer com a poesia”. Mas depois disso, os anos 2006/7/8 foram fundamentais nesse processo, porque foi o período da crise existencial a que me referi e, na mesma altura, fui participando em vários eventos, cá em Maputo, e fui escrevendo timidamente. Mas foi em 2009 que eu decido que devo escrever um livro. Tudo começa depois de uma viagem que fiz a Quelimane, fiquei lá por algum tempo e fui visitar a biblioteca e saí de lá com o “Pé da Sereia” de Mia Couto na mão. Foi aí que pensei: “por que é que não escrevo, também?”. Foi assim que escrevi um romance. Terminei-o e nem o digitei, porque anda num caderno que até agora guardo. Mas a trama toda dele já recolhi e faz parte de um dos meus romances que estão no prelo.  

Q6.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo RAP na sua produção literária?

NL: Acredito que haja um diálogo entre o rap e a literatura na minha constituição como pessoa. No momento em que levo o rap a sério com essas ideias de indignação e de sentir o incómodo dos problemas sociais e achar que com uma letra possa mudar o cenário e o mesmo sentia quando lia José Craveirinha (quase toda sua bibliografia), e me surgia essa indignação relativa à segregação racial e outros aspectos…foram questões que mudaram a minha forma de ver mundo. E havia um sentimento de querer mudar as coisas. Então isso constitui um momento fundante de diálogo entre a minha poesia e o que eu ouvia.

Ora, devo dizer que diferencio os momentos, porque além de poemas escrevo contos, romances e crónicas, portanto quando estou num determinado género literário procedo de forma diferente. O mesmo acontece quando se trata do rap e da literatura. Quando estou no rap escrevo de acordo com o que o rap exige, e quando estou na poesia faço o mesmo em relação às suas regras.

Q7.

EM: Acha que o facto de escutar RAP contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

NL: O que disse há bocado acaba estando ligado ao que diria nesta questão. Tal como disse, eu tenho raízes criadas pelo rap por ver a sociedade com os seus problemas e querer abordar isso, mas sempre numa perspectiva daquilo que a literatura exige. Repare que nos últimos tempos tenho lido não só livros literários como tal, mas outros materiais que reflectem sobre o processo de escrita literária no qual me interessam mais as palavras.

Falando de poesia, por exemplo, tal interesse é maior, porque a poesia é necessariamente linguagem. Por exemplo, ao escutar o “Rapódromo”, gosto da forma como brincam com a palavra. Temos o Sam The Kid, o Xeg, o Regula, etc. gosto muito da forma como eles trabalham com a palavra: aqueles trocadilhos todos. Por isso, busco um pouco do rap nesta parte.

Se naquele momento fundante apreciava aquele espírito revolucionário, hoje encaro a arte de uma outra forma. Encaro o rap, acima de tudo, como aquele primeiro elemento que é o refinamento do espírito, mas não é pela mensagem que quero transmitir, acima de tudo é como eu escolho as palavras. Este exercício que em estética chama-se “sublime”. Isso é que me interessa muito quando estou a produzir ou quando estou a ler um livro, não necessariamente a história em si, porque acho que histórias todos nós tempos, mas a diferença é como é que nós contamos essas histórias. Não escrevo mais como no início em que estava preocupado com o que vou dizer, mas me preocupo mais em como posso dizer o que quero dizer.

Q8.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do RAP e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

NL: Eu acho que uma boa parte de nós tem conversado com uma boa parte de jovens escritores, não só os que estão em Maputo, mas também os que estão noutros pontos do país. Dessas conversas percebemos que boa parte de nós ou fez rap, ou teve uma ligação com rap. Quase todos têm essa vertente.

A pena que eu sinto é que uma boa parte dos nossos rappers não lê. E é uma pena porque seria fundamental para o que eles trazem no rap. Eu acho que ler fortalece muito mais a nossa capacidade de criação e de imaginação. Por isso dói-me muito perceber que uma boa parte dos nossos rappers não lê. É daí que muitas vezes ficamos na mesmice, porque vamos escutando a música e não percebemos o que o rapper pensa. É como abrir o jornal, por exemplo. Cada um que temos na praça tem uma linha editorial, então qual é a linha editorial desse rap? Se um ritmo está a bater, todos correm para o fazer.

Aqui também queria aproveitar dizer uma coisa dessa relação entre a literatura e o rap em mim. É que o rap quando me traz este lado revolucionário, apesar de tudo fecha-te. No meu caso, fechou muito. Olha, por exemplo, o Valete tem um slogan: “um só caminho”. É exactamente isso. Quando eu fazia underground entendia o “um só caminho” num sentido fechado. Eu admiro muito o Valete, mas é um pouco contraditório dizer isso, porque nós temos de nos abrir ao mundo. Lembro-me que quando fazia underground tive uma possibilidade de aprender a tocar guitarra, mas eu não podia fazer isso por entender que um underground não devia fazer isso: hoje isso dói-me muito. Essa concepção acabou fechando-me a várias oportunidades na vida. Mas a literatura me trouxe outra vertente, abriu-me mais para o mundo, tanto que mesmo tendo começado com poesia, como disse, fui conhecendo outros géneros. Hoje, por exemplo, abracei o roteiro e escrevi a telenovela “Maida”…uma boa parte. Estou agora a trabalhar com a série “A Infiltrada”, isto porque a literatura foi me dando esta possibilidade de experimentar outras possibilidades de expressão, tanto que os próprios rappers (principalmente os grandes rappers), com o tempo, acabam se abrindo porque perceberam que não é só ficar preso a uma única forma de estar na arte.

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