sexta-feira, 10 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Albert Dalela

“trago sempre o hiphop na minha escrita e gostaria de carregar isso sempre comigo: faz parte da minha identidade”

Yo! Não se precisa de muito para identificar um rapper ou entusiasta deste género musical. Há tiques e bordões inconfundíveis, tasaver. (risos)

Quando fazia o inventário dos escritores com quem devia intentar estas conversas, já tinha em mente as minhas suspeitas. Mas, no caso de Albert Dalela, tinha mais certezas que suspeitas: ninguém desenvolve tamanho entusiasmo pelo rap sem que isso impacte na sua vida. E, se a escrita é a modelização das nossas vidas com maior ou menor grau de transparência, há, por consequência, tal impacto nesse exercício.

Fiz esta leitura durante a sexta edição do Festival Internacional de Poesia que realizamos entre Julho e Agosto de 2022, em Xai-Xai. Contudo, nunca podia imaginar que partilhávamos o mesmo seguidismo por uns e outros fazedores de rap. Esta conversa serviu-me como exame de disciplina nestas coisas de conversar com os outros. Consolidei o acto de evitar interromper o interlocutor para dizer “eu também”. Mas é mesmo isso: se gostas de rap, há muitos “eu também” que te poderão ocorrer enquanto lês. É inevitável.

Trata-se de uma voz com uma tonalidade a se ter em conta nesta tuna a que, felizmente, a nossa literatura se tornou. Tem, obviamente, sustentáculos assentes na tradição literária propriamente dita, mas é na mesma dimensão que se destaca o seu afecto pelo rap. Para não deixar que tal fique em entrelinhas, assevera: “ainda faço rap. O que houve em mim foi a mudança de estações. Agora sintonizei a estação da literatura. Faço rap e sempre farei.”

Em nenhum momento desta conversa versamos sobre a sua obra “Gole de Lâminas” (2021), passamos propositadamente de esguelha para que esta conversa seja um fantasma que te vai assombrar em toda e qualquer leitura que fores fazer deste e de outros trabalhos dele. Dir-se-á que é um exercício injusto e até mesmo desnecessário. Quanto a mim, basta contribuir na difusão e discussão de saberes. Se tal tiver de ocorrer pelo destronar de imprecisões que grassam nas nossas leituras sobre os caminhos da interdiscursividade e outras coisas, óptimo. “Para se saber da cor do sangue, alguém teve de sangrar.”

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Albert Dalela: Eu escuto rap desde que me conheço. Mas especificamente poderia fazer menção aos tempos da escola primária: escutava muito rap. Nos tempos em que se tinha programas de televisão que passavam rap. Lembro-me que na altura, na STV, tínhamos o programa Musix Box, onde passava muito hiphop. Os grandes movimentos de rap estavam lá. Refiro-me, por exemplo, a Magnésia, que constituía um dos grupos principais que fazia rap de mainstream…de ostentação. Aquele foi um ponto de partida. Lembro-me, também, de ver a Cotonete Records, especificamente quando ainda se estava a lançar o primeiro álbum de Azagaia “Babalaze” que é muito revolucionário e que escutei bastante e aprendi a me questionar um pouco mais sobre como este país é. Conheci mais os seus panoramas e nuances do ponto de vista artístico, em geral, e, particularmente, musical. Naquela altura tínhamos alguns nomes que passavam pela televisão. Lembro-me, por exemplo de: Izlo H, Rage e Iveth. Neste momento eu só escutava rap, ainda não era educado o suficiente para ter uma real ideia do que se tratava. Mas com o tempo fui consumindo outras músicas até que cheguei ao fim da escola primária a escutar, de forma assídua, o rap norte-americano. Lembro-me que tipos como Lil Wayne, Rick Ross…estavam no auge das suas carreiras. Escutei muito de “The Carter 4”. Escutei muito os tipos que estavam a emergir na altura: Drake, Tyga e outros. Entretanto, nessa altura não tinha nenhum vínculo com a literatura embora lesse uma e outra coisa. Ademais, nem me questionava sobre o que estava a ouvir, talvez pela imaturidade. Só mais tarde, quando passo para o secundário é que passo a ter noção de que se tratava e apaixonei-me por outros tipos, como: Young Sixties, falo de Lay Low que actualmente é Laylizzy, de Hernani, Ellputo, escutei-os bastante e era muito maravilhado por Lay Low, embora não dissesse nada senão uma exibição de flow e trocadilhos. Comecei, por isso, a querer escrever e gravar algumas músicas, como até hoje o faço, embora tenha escolhido a literatura para me fazer conhecer e me expressar e, quem sabe, destacar-me no panorama artístico moçambicano. No entanto, quando começo a escrever, conheço um professor muito interessante que se revelou pai de toda a minha adolescência. Sempre sonhei em ter um irmão mais velho. Porque não o tinha, esse tipo acabou sendo o meu mano. Eu sou fruto de pais separados, então cresci com a minha mãe e, por isso, sempre senti a falta de uma identidade paternal, o que me fazia sentir sozinho, mas quando este tipo surgiu na minha adolescência (na escola secundária), eu me senti totalmente acolhido. Refiro-me a Valete. Escutei “Educação Visual”, “Serviço Público”, escutei os singles que lançava frequentemente, até fiquei preparado e instigado para assistir a “a marcha dos dez mil homens” que ele anuncia na faixa intitulada “10 anos”, lembro-me também de escutar “a melhor rima de sempre” e muitas outras músicas que ele foi lançando. Aí que vi que, realmente, se eu queria repar e escrever o que eu tanto almejava, tinha de escutar este tipo de rappers. Depois, voltando ao rap nacional, passei a escutar Duas Caras, Azagaia, etc. Sobre Duas Caras, lembro-me de o ter escutado imenso na GPro, até mesmo quando formava uma dupla com Sem Paus e depois quando se junta ao 3H. Lembro-me de ter escutado bastante o álbum “Na Linha da Frente”. E, embora goste de Azagaia, Duas Caras tornou-se no meu rapper favorito em Moçambique. Portanto, conhecer rappers como Valete, Sam The Kid no álbum “Praticamente”…escutei muito a faixa “sofia” e escrevi nesse sentido. Talvez nem escrevesse como tal, o que eu fazia talvez fosse um decalque. Mas, mesmo assim, sempre que faço literatura, sinto o hiphop a me seguir. Não só o hiphop mas o Jazz: desde nomes como Al Jarreau, George Benson, Steve Wonder (este para mim é um pai: está em tudo que eu faço…acredito que em tudo que eu escrevo tento seguir alguma musicalidade e essa é de Steve Wonder). Vem-me à memória instrumentais de 9th Wonder, de Apollo Brown, Dj Premier…tenho lá comigo Royce da 5’9, o homem que faz dupla com Eminem no “Bad Meets Evil”, gosto muito de Royce da 5’9, principalmente quando faz uma dupla com Dj Premier e constituem o PRhyme. Escutei bastante o PRhyme I e II. Sou também maravilhado pela performance de Common. Enfim, é uma miscelânea de artistas e de várias formas de ver. Mas o ser politicamente incorrecto nasce de Valete, inclusive a minha forma de conceber a literatura e questionar a organização social. Escutei muito o Bob Da Rage Sense. No “Diários de Marcos Robert”, lembro-me de uma faixa “Obama não existe” que é bastante extraordinária e que foi lançada na altura em que Obama estava no poder e que viria a calhar com um livro de ensaios de Mia Couto intitulado “Se Obama fosse Africano”. Então, esse tipo de rap, principalmente o Underground foi me moldando e me tem acompanhado quando escrevo, incluindo nomes que não foram aqui mencionados porque esta é uma conversa de várias horas, até dias. Podia, já agora, falar de Kendrick Lamar que também tem este lado politicamente incorrecto. De J.Cole que está mais preocupado com questões mais intimistas. Poderia falar de Termanology que tem um jogo de rimas interessante e que eu gosto muito, de Styles P… agora, por exemplo, surgiu um grande movimento nas américas que é a Griselda com nomes como Benny the Busher, Cornway The Machine, Westside Gunn…são pessoas que continuo a escutar e me inspiram na forma como eu escrevo literatura.

 

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

AD: Praticamente são os que mencionei há bocado. Mas, permita-me explicar que no meu playlist tenho sempre Common, Royce da 5’9, Kendrick Lamar, J. Cole, Termanology, Griselda toda ela (Benny the Busher, Cornway The Machine & Westside Gunn). Em Moçambique tenho Azagaia, Xitiku Ni Mbaula (são pessoas que nos representam muito bem no jogo de palavras que fazem nas línguas bantu), Kapacetes Azuis. Nesta lista poderia incluir Laylizzy, mas não mais porque sinto que nele cresceu a idade mas a criatividade musical parou no tempo. Laylizzy parou em 2008/2009…já não escuto aquilo: ficou para crianças. Embora às vezes me sinta tentado a voltar a escutar uma mixtape de que tanto gostei que é “Unsigned”. Foi uma coisa que me marcou no auge da escola secundária. Lembro-me da primeira faixa que é “Journey” que faz com Carmen Chaquice: é uma coisa extraordinária. Mas esse homem já não existe. Tem sido mais de ostentações que temos visto actualmente.

Em Portugal escuto sempre Valete quando acordo, quando ando, quando durmo, a partir das músicas dele reflicto e aprendo. Escuto constantemente “Serviço Público”, “Educação Visual”, a mixtape “Contracultura” também escuto com frequência, escuto a música “indústria do nada”, as faixas com Azagaia, Bónus…também escuto Sam The Kid. “Praticamente” é um álbum que revisito sempre. Em Portugal são estes que mais escuto.

Mas não posso só falar desses nomes de rappers, tenho também escutado Jazz porque para mim constitui um crime falar de rappers sem falar de fazedores de jazz. O Jazz faz parte do próprio surgimento do hiphop e, na minha vida, em particular, o jazz chega a se confundir com o hiphop. Por isso posso falar de Kamasi Washington, Thundercat, Lee Ritenour, Steve Wonder, Michael Jackson…tenho escutado sempre, e cá volto às faixas clássicas como algumas músicas de Aly Faque e se volto é sempre à subserviência de Jeremias Ngoenha que é muito consciente. Acho que Jeremias Ngoenha nem tem merecido destaque que devia porque é um músico bastante literato. Para mim é o pai da metáfora. (Uau) É um dos grandes homens que melhor soube usar a metáfora em Moçambique. Costumo comparar o Jeremias Ngoenha a Sam The Kid nessa forma de entrecruzar as palavras e formular metáforas através disso.

 

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

AD: (risos) é muito complicado para mim fazer um top 5 dos rappers que tenho escutado, mas coloco-te lá Valete, Royce da 5’9, Common, Kendrick Lamar, Duas Caras…(é um top 5 que não é five, na verdade…pode ser six, seven ou ten). Poderia também falar de J. Cole, Black Thought, Azagaia…Mas como me pede 5, deixe-me alistar os seguintes: Ros The Five Nine, Common, Valete, Duas Caras e Kendrick Lamar. Mas não acho que seja um top 5 justo, poderíamos talvez falar de top 100 mesmo. O mundo é vasto demais para falarmos só de 5.

 

Q4.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

AD: Sempre rabisquei alguma coisa desde o ensino primário, mas para estabelecer marcos temporais diria que foi quando frequentava a sexta classe, em 2007/2008. Na altura, apareceu um grupo de activistas ambientais italianos na minha escola e eu fui indicado por eles para fazer parte do movimento de sensibilização de outras crianças embora não soubesse nada de sensibilização. Nessa senda, eramos incentivados a escrever poemas a expressar a luta a favor do meio ambiente através de qualquer expressão artística. Porque eu já acompanhava o hiphop pela televisão e na minha zona muita gente já repava…aliás, devo dizer aqui que eu sou da Bloco 4 que era o Distrito Municipal número 4, actualmente designado Distrito Municipal KaMavota. Neste distrito tens os mais antigos grupos de hiphop em Moçambique. Digo-te isso porque até Duas Caras é da Bloco 4. Nasceu e cresceu aqui, entre o bairro de Laulane e bairro do Aeroporto. Por isso, neste grupo de activismo escolhi o rap para expressar a minha luta a favor do meio ambiente. Então, escrevia poemas, contos e outras redacções…

 

Q5.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo rap na sua produção literária?

AD: Há sempre o universo rap na minha escrita. Poderia falar-te do meu livro “Gole de Láminas”, publicado em 2021. Há ali um jogo entre a literatura e o rap e o jazz porque são géneros que impactam em mim e gostaria de fazê-lo mais vezes. Se prestarmos atenção, Paul Auster, um escritor norte-americano, tem uma coisa bonita que sempre faz nos seus livros que é ensaiar literatura. Mais do que escrever romances ou poemas, ele fala dos seus principais influenciadores e seus fantasmas literários. Por isso, eu também gostaria de continuar a fazer a mesma coisa, não só com as minhas grandes referências literárias mas com as referências do universo hiphop e continuar a falar sobre música e continuar a falar sobre jazz e estabelecer sempre esse jogo de intertextualidade.

Portanto, respondendo à questão: há muito universo rap na minha escrita, do mesmo modo que eu diria da existência do subúrbio nas coisas que eu escrevo. Daí que se o subúrbio está lá, o hiphop também está, porque apesar de o hiphop ser uma cultura urbana, aborda muitas questões suburbanas, lida com a periferia, com as minorias desfavorecidas, com a consciência…

Resumindo, trago sempre o hiphop na minha escrita e gostaria de carregar isso sempre comigo: faz parte da minha identidade. O hiphop e a literatura são coisas que se interligam. Não há como falar de hiphop sem falar de literatura.

 

Q6.

EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

AD: Claro! Sempre achei que o rap tivesse uma influência na minha produção literária. Primeiro porque o escuto bastante e também porque é o rap que busco a subserviência. Para mim a literatura é um prato que se serve quente e com algumas lâminas e agulhas dentro. Então, essas lâminas e agulhas que tu as tens misturadas como molho e o arroz também vêm do hiphop. Os rappers que eu escuto são muito interventivos, no sentido de questionar os sistemas políticos vigentes e acho que a partir das abordagens que eles apresentam, eu consigo moldar a minha forma de ver o mundo porque a arte é essa intertextualidade: os textos dialogam uns com os outros, com outras manifestações artísticas e, no meu caso particular, o hiphop influencia porque escuto essas pessoas e vou me actualizando sobre como ver o mundo e como mudar a minha forma de ser e estar.

Creio que essa influência poderá existir sempre porque o hiphop influencia no sentido de me dar estímulos e respostas para ter um sociedade melhor e um mundo melhor. E, já gora, seguindo essa linha de pensamento, poderíamos pensar, por exemplo, que John Steinbeck, Henry Miller, Roberto Bolaño, Alberto Moravia, Albert Camus, Jean-Paul Sartre, etc. escutassem rap…e que todo movimento do Beatnik escutava rap, mas porque o rap foi inspirado por esses movimentos, por esses autores…Então, não há como falar de uma coisa sem falar de outra. O hiphop, em si, bebeu muito da geração beat que também contribuiu para a cultura rock. Então esta relação existe e sempre estará lá.

 

Q7.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

AD: Não tenho muitos argumentos para responder a esta questão. Talvez fosse mais ideal para um ensaísta, um professor de literatura ou alguém que se dedique ao estudo da intertextualidade entre estas duas expressões artísticas. Mas sinto que um e outro tem alguma coisa que vem do hiphop na sua escrita, embora não possa afirmar isso categoricamente. Até porque a mais recente geração de escritores em Moçambique, os que nasceram na década de 80/90, é de consumidores de hiphop. Consigo perceber isso nas conversas que tenho tido com alguns. Percebo, também, que nos próximos tempos, quando tivermos bases robustas para estudar os escritores que vão surgindo actualmente, aí teremos mais argumentos sobre este paralelismo entre as duas áreas.

 

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