Yo! Não se precisa de muito para identificar um rapper ou entusiasta deste
género musical. Há tiques e bordões inconfundíveis, tasaver. (risos)
Quando fazia o inventário dos escritores com quem devia intentar estas
conversas, já tinha em mente as minhas suspeitas. Mas, no caso de Albert
Dalela, tinha mais certezas que suspeitas: ninguém desenvolve tamanho
entusiasmo pelo rap sem que isso impacte na sua vida. E, se a escrita é a
modelização das nossas vidas com maior ou menor grau de transparência, há, por
consequência, tal impacto nesse exercício.
Fiz esta leitura durante a sexta edição do Festival Internacional de Poesia que realizamos entre Julho e Agosto de 2022, em Xai-Xai. Contudo, nunca podia imaginar que partilhávamos o mesmo seguidismo por uns e outros fazedores de rap. Esta conversa serviu-me como exame de disciplina nestas coisas de conversar com os outros. Consolidei o acto de evitar interromper o interlocutor para dizer “eu também”. Mas é mesmo isso: se gostas de rap, há muitos “eu também” que te poderão ocorrer enquanto lês. É inevitável.
Trata-se de uma voz com uma tonalidade a se ter em conta nesta tuna a que,
felizmente, a nossa literatura se tornou. Tem, obviamente, sustentáculos
assentes na tradição literária propriamente dita, mas é na mesma dimensão que
se destaca o seu afecto pelo rap. Para não deixar que tal fique em entrelinhas,
assevera: “ainda faço rap. O que houve em
mim foi a mudança de estações. Agora sintonizei a estação da literatura. Faço
rap e sempre farei.”
Em nenhum momento desta conversa versamos sobre a sua obra “Gole de
Lâminas” (2021), passamos propositadamente de esguelha para que esta conversa
seja um fantasma que te vai assombrar em toda e qualquer leitura que fores
fazer deste e de outros trabalhos dele. Dir-se-á que é um exercício injusto e
até mesmo desnecessário. Quanto a mim, basta contribuir na difusão e discussão
de saberes. Se tal tiver de ocorrer pelo destronar de imprecisões que grassam
nas nossas leituras sobre os caminhos da interdiscursividade e outras coisas,
óptimo. “Para se saber da cor do sangue,
alguém teve de sangrar.”
Q1.
Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?
Albert Dalela: Eu escuto rap desde que me conheço. Mas especificamente
poderia fazer menção aos tempos da escola primária: escutava muito rap. Nos
tempos em que se tinha programas de televisão que passavam rap. Lembro-me que
na altura, na STV, tínhamos o programa Musix Box, onde passava muito hiphop. Os
grandes movimentos de rap estavam lá. Refiro-me, por exemplo, a Magnésia, que
constituía um dos grupos principais que fazia rap de mainstream…de ostentação. Aquele foi um ponto de partida.
Lembro-me, também, de ver a Cotonete Records, especificamente quando ainda se
estava a lançar o primeiro álbum de Azagaia “Babalaze”
que é muito revolucionário e que escutei bastante e aprendi a me questionar um
pouco mais sobre como este país é. Conheci mais os seus panoramas e nuances do
ponto de vista artístico, em geral, e, particularmente, musical. Naquela altura
tínhamos alguns nomes que passavam pela televisão. Lembro-me, por exemplo de:
Izlo H, Rage e Iveth. Neste momento eu só escutava rap, ainda não era educado o
suficiente para ter uma real ideia do que se tratava. Mas com o tempo fui
consumindo outras músicas até que cheguei ao fim da escola primária a escutar,
de forma assídua, o rap norte-americano. Lembro-me que tipos como Lil Wayne,
Rick Ross…estavam no auge das suas carreiras. Escutei muito de “The Carter 4”. Escutei muito os tipos
que estavam a emergir na altura: Drake, Tyga e outros. Entretanto, nessa altura
não tinha nenhum vínculo com a literatura embora lesse uma e outra coisa.
Ademais, nem me questionava sobre o que estava a ouvir, talvez pela
imaturidade. Só mais tarde, quando passo para o secundário é que passo a ter
noção de que se tratava e apaixonei-me por outros tipos, como: Young Sixties,
falo de Lay Low que actualmente é Laylizzy, de Hernani, Ellputo, escutei-os
bastante e era muito maravilhado por Lay Low, embora não dissesse nada senão
uma exibição de flow e trocadilhos. Comecei, por isso, a querer escrever e
gravar algumas músicas, como até hoje o faço, embora tenha escolhido a
literatura para me fazer conhecer e me expressar e, quem sabe, destacar-me no
panorama artístico moçambicano. No entanto, quando começo a escrever, conheço
um professor muito interessante que se revelou pai de toda a minha
adolescência. Sempre sonhei em ter um irmão mais velho. Porque não o tinha,
esse tipo acabou sendo o meu mano. Eu sou fruto de pais separados, então cresci
com a minha mãe e, por isso, sempre senti a falta de uma identidade paternal, o
que me fazia sentir sozinho, mas quando este tipo surgiu na minha adolescência
(na escola secundária), eu me senti totalmente acolhido. Refiro-me a Valete.
Escutei “Educação Visual”, “Serviço Público”, escutei os singles
que lançava frequentemente, até fiquei preparado e instigado para assistir a “a marcha dos dez mil homens” que ele
anuncia na faixa intitulada “10 anos”,
lembro-me também de escutar “a melhor
rima de sempre” e muitas outras músicas que ele foi lançando. Aí que vi
que, realmente, se eu queria repar e escrever o que eu tanto almejava, tinha de
escutar este tipo de rappers. Depois, voltando ao rap nacional, passei a
escutar Duas Caras, Azagaia, etc. Sobre Duas Caras, lembro-me de o ter escutado
imenso na GPro, até mesmo quando formava uma dupla com Sem Paus e depois quando
se junta ao 3H. Lembro-me de ter escutado bastante o álbum “Na Linha da Frente”. E, embora goste de Azagaia, Duas Caras
tornou-se no meu rapper favorito em Moçambique. Portanto, conhecer rappers como
Valete, Sam The Kid no álbum “Praticamente”…escutei
muito a faixa “sofia” e escrevi nesse
sentido. Talvez nem escrevesse como tal, o que eu fazia talvez fosse um
decalque. Mas, mesmo assim, sempre que faço literatura, sinto o hiphop a me seguir.
Não só o hiphop mas o Jazz: desde nomes como Al Jarreau, George Benson, Steve Wonder (este para mim é um pai: está em tudo
que eu faço…acredito que em tudo que eu escrevo tento seguir alguma
musicalidade e essa é de Steve Wonder). Vem-me à memória instrumentais de 9th
Wonder, de Apollo Brown, Dj Premier…tenho lá comigo Royce da 5’9, o homem que faz dupla com Eminem no “Bad Meets Evil”, gosto muito de Royce
da 5’9, principalmente quando faz uma dupla com Dj Premier e constituem o PRhyme.
Escutei bastante o PRhyme I e II. Sou também maravilhado pela performance de
Common. Enfim, é uma miscelânea de artistas e de várias formas de ver. Mas o
ser politicamente incorrecto nasce de Valete, inclusive a minha forma de
conceber a literatura e questionar a organização social. Escutei muito o Bob Da
Rage Sense. No “Diários de Marcos Robert”,
lembro-me de uma faixa “Obama não existe”
que é bastante extraordinária e que foi lançada na altura em que Obama estava
no poder e que viria a calhar com um livro de ensaios de Mia Couto intitulado “Se Obama fosse Africano”. Então, esse
tipo de rap, principalmente o Underground foi me moldando e me tem acompanhado
quando escrevo, incluindo nomes que não foram aqui mencionados porque esta é
uma conversa de várias horas, até dias. Podia, já agora, falar de Kendrick
Lamar que também tem este lado politicamente incorrecto. De J.Cole que está
mais preocupado com questões mais intimistas. Poderia falar de Termanology que
tem um jogo de rimas interessante e que eu gosto muito, de Styles P… agora, por
exemplo, surgiu um grande movimento nas américas que é a Griselda com nomes
como Benny the Busher, Cornway The Machine, Westside Gunn…são pessoas que
continuo a escutar e me inspiram na forma como eu escrevo literatura.
Q2.
EM: Que rappers tem escutado?
AD: Praticamente são os que mencionei há bocado. Mas,
permita-me explicar que no meu playlist tenho sempre Common, Royce da 5’9,
Kendrick Lamar, J. Cole, Termanology, Griselda toda ela (Benny the Busher,
Cornway The Machine & Westside Gunn). Em Moçambique tenho Azagaia, Xitiku
Ni Mbaula (são pessoas que nos representam muito bem no jogo de palavras que
fazem nas línguas bantu), Kapacetes Azuis. Nesta lista poderia incluir
Laylizzy, mas não mais porque sinto que nele cresceu a idade mas a criatividade
musical parou no tempo. Laylizzy parou em 2008/2009…já não escuto aquilo: ficou
para crianças. Embora às vezes me sinta tentado a voltar a escutar uma mixtape
de que tanto gostei que é “Unsigned”. Foi uma coisa que me marcou no auge da
escola secundária. Lembro-me da primeira faixa que é “Journey” que faz com
Carmen Chaquice: é uma coisa extraordinária. Mas esse homem já não existe. Tem
sido mais de ostentações que temos visto actualmente.
Em Portugal escuto sempre Valete quando acordo, quando ando, quando durmo,
a partir das músicas dele reflicto e aprendo. Escuto constantemente “Serviço Público”, “Educação Visual”, a mixtape “Contracultura”
também escuto com frequência, escuto a música “indústria do nada”, as faixas com Azagaia, Bónus…também escuto
Sam The Kid. “Praticamente” é um
álbum que revisito sempre. Em Portugal são estes que mais escuto.
Mas não posso só falar desses nomes de rappers, tenho também escutado Jazz
porque para mim constitui um crime falar de rappers sem falar de fazedores de
jazz. O Jazz faz parte do próprio surgimento do hiphop e, na minha vida, em
particular, o jazz chega a se confundir com o hiphop. Por isso posso falar de Kamasi
Washington, Thundercat, Lee Ritenour, Steve Wonder, Michael Jackson…tenho
escutado sempre, e cá volto às faixas clássicas como algumas músicas de Aly
Faque e se volto é sempre à subserviência de Jeremias Ngoenha que é muito
consciente. Acho que Jeremias Ngoenha nem tem merecido destaque que devia
porque é um músico bastante literato. Para mim é o pai da metáfora. (Uau) É um
dos grandes homens que melhor soube usar a metáfora em Moçambique. Costumo
comparar o Jeremias Ngoenha a Sam The Kid nessa forma de entrecruzar as
palavras e formular metáforas através disso.
Q3.
EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
AD: (risos) é muito complicado para mim fazer um top 5 dos
rappers que tenho escutado, mas coloco-te lá Valete, Royce da 5’9, Common,
Kendrick Lamar, Duas Caras…(é um top 5 que não é five, na verdade…pode ser six,
seven ou ten). Poderia também falar de J. Cole, Black Thought, Azagaia…Mas como
me pede 5, deixe-me alistar os seguintes: Ros The Five Nine, Common, Valete,
Duas Caras e Kendrick Lamar. Mas não acho que seja um top 5 justo, poderíamos
talvez falar de top 100 mesmo. O mundo é vasto demais para falarmos só de 5.
Q4.
EM: Quando e como começou a escrever textos literários?
AD: Sempre rabisquei alguma coisa desde o ensino primário,
mas para estabelecer marcos temporais diria que foi quando frequentava a sexta
classe, em 2007/2008. Na altura, apareceu um grupo de activistas ambientais
italianos na minha escola e eu fui indicado por eles para fazer parte do
movimento de sensibilização de outras crianças embora não soubesse nada de
sensibilização. Nessa senda, eramos incentivados a escrever poemas a expressar
a luta a favor do meio ambiente através de qualquer expressão artística. Porque
eu já acompanhava o hiphop pela televisão e na minha zona muita gente já repava…aliás,
devo dizer aqui que eu sou da Bloco 4 que era o Distrito Municipal número 4,
actualmente designado Distrito Municipal KaMavota. Neste distrito tens os mais
antigos grupos de hiphop em Moçambique. Digo-te isso porque até Duas Caras é da
Bloco 4. Nasceu e cresceu aqui, entre o bairro de Laulane e bairro do
Aeroporto. Por isso, neste grupo de activismo escolhi o rap para expressar a
minha luta a favor do meio ambiente. Então, escrevia poemas, contos e outras
redacções…
Q5.
EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo rap na sua produção literária?
AD: Há sempre o universo rap na minha escrita. Poderia
falar-te do meu livro “Gole de Láminas”,
publicado em 2021. Há ali um jogo entre a literatura e o rap e o jazz porque
são géneros que impactam em mim e gostaria de fazê-lo mais vezes. Se prestarmos
atenção, Paul Auster, um escritor norte-americano, tem uma coisa bonita que
sempre faz nos seus livros que é ensaiar literatura. Mais do que escrever
romances ou poemas, ele fala dos seus principais influenciadores e seus
fantasmas literários. Por isso, eu também gostaria de continuar a fazer a mesma
coisa, não só com as minhas grandes referências literárias mas com as
referências do universo hiphop e continuar a falar sobre música e continuar a
falar sobre jazz e estabelecer sempre esse jogo de intertextualidade.
Portanto, respondendo à questão: há muito universo rap na minha escrita, do
mesmo modo que eu diria da existência do subúrbio nas coisas que eu escrevo.
Daí que se o subúrbio está lá, o hiphop também está, porque apesar de o hiphop
ser uma cultura urbana, aborda muitas questões suburbanas, lida com a
periferia, com as minorias desfavorecidas, com a consciência…
Resumindo, trago sempre o hiphop na minha escrita e gostaria de carregar
isso sempre comigo: faz parte da minha identidade. O hiphop e a literatura são coisas
que se interligam. Não há como falar de hiphop sem falar de literatura.
Q6.
EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
AD: Claro! Sempre achei que o rap tivesse uma influência na
minha produção literária. Primeiro porque o escuto bastante e também porque é o
rap que busco a subserviência. Para mim a literatura é um prato que se serve
quente e com algumas lâminas e agulhas dentro. Então, essas lâminas e agulhas
que tu as tens misturadas como molho e o arroz também vêm do hiphop. Os rappers
que eu escuto são muito interventivos, no sentido de questionar os sistemas
políticos vigentes e acho que a partir das abordagens que eles apresentam, eu
consigo moldar a minha forma de ver o mundo porque a arte é essa
intertextualidade: os textos dialogam uns com os outros, com outras
manifestações artísticas e, no meu caso particular, o hiphop influencia porque
escuto essas pessoas e vou me actualizando sobre como ver o mundo e como mudar
a minha forma de ser e estar.
Creio que essa influência poderá existir sempre porque o hiphop influencia
no sentido de me dar estímulos e respostas para ter um sociedade melhor e um
mundo melhor. E, já gora, seguindo essa linha de pensamento, poderíamos pensar,
por exemplo, que John Steinbeck, Henry Miller, Roberto Bolaño, Alberto Moravia,
Albert Camus, Jean-Paul Sartre, etc. escutassem rap…e que todo movimento do Beatnik
escutava rap, mas porque o rap foi inspirado por esses movimentos, por esses
autores…Então, não há como falar de uma coisa sem falar de outra. O hiphop, em
si, bebeu muito da geração beat que também contribuiu para a cultura rock.
Então esta relação existe e sempre estará lá.
Q7.
EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
AD: Não tenho muitos argumentos para responder a esta
questão. Talvez fosse mais ideal para um ensaísta, um professor de literatura
ou alguém que se dedique ao estudo da intertextualidade entre estas duas
expressões artísticas. Mas sinto que um e outro tem alguma coisa que vem do
hiphop na sua escrita, embora não possa afirmar isso categoricamente. Até
porque a mais recente geração de escritores em Moçambique, os que nasceram na
década de 80/90, é de consumidores de hiphop. Consigo perceber isso nas
conversas que tenho tido com alguns. Percebo, também, que nos próximos tempos,
quando tivermos bases robustas para estudar os escritores que vão surgindo actualmente,
aí teremos mais argumentos sobre este paralelismo entre as duas áreas.
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