quarta-feira, 8 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Japone Arijuane

"o rap teve uma influência na minha vida: como eu vivo, como eu me dirijo às coisas, como eu converso, como eu me visto, a minha visão sobre a vida…o rap tem essa influência. O rap foi cristalizando o meu carácter. Mas quando é para escrever, não!"

Há geografias na alma que só a poesia pode percorrer. Os poetas, quais geógrafos cientes da sua tarefa de desvendar esses percursos, fazem-no com um à vontade de impressionar. Este é o caso de Japone Arijuane.

Estudos há que revelam as limitações do discurso oral diante do escrito e, também, revelam as suas valências. Mas, depois desta conversa, sou movido a acreditar que o corpus de análise que resultou nestas conclusões não incluíra os poetas.

Faço este intróito algo deslocado para esclarecer aos mais incautos que esta conversa foi oral e espontânea. A profundidade com que as palavras foram ditas resulta, talvez, do que disse no primeiro período deste texto: há geografias na alma que só a poesia pode percorrer.

O facto de Japone Arijuane ser um exímio cultor deste género literário não nos pode remeter a silogismos vis que pouco definirão a essência do que ele diz com a frase “o rap foi cristalizando o meu carácter”. Não é clichê. É um facto. Conversamos durante uma hora e quatro minutos, mas só precisei de dois minutos e cinco segundos para perceber que estava a interagir com alguém que nutriu e nutre bastante paixão pelo rap e pelo movimento hiphop. Voltando às palavras em epígrafe, pouco direi sobre outros aspectos, mas quanto à forma de conversar, sim. O rap cristalizou e muito. Nota-se pelo uso frequente dos bordões (tasaver, ya…), o vocativo (bro…), os anglicismos (vibe, outsiders, crib…) até a própria entoação. É isto que o rap faz com as pessoas. Se a conversa tivesse sido presencial, teria sido interessante ver, também, o movimento das mãos.

Se tiveres andado embebido por este género musical e não habitam em ti estes traços: temos uma conversa muito longa por levar. Para quando, não sei. Hoje temos outra agenda: perscrutar possíveis caminhos de uma interdiscursividade entre o rap e a escrita de Japonde Arijuane. Embora diga que a poesia que se utiliza nas letras de hiphop acaba sendo menor para aquilo que ele busca, hoje, na literatura, tal não impede que façamos a busca por migalhas do rap na sua obra iniciada com a publicação em antologias e diversos canais da imprensa nacional e internacional até ao início das suas publicações individuais com “Dentro da Pedra ou Metamorfose de Silêncio” _ poesia (2014); “Ferramentas para desmontar a noite” _ poesia (2020) & “O Peixe que Sonha Comprar um Barco” _ infanto-juvenil (2022).

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Japone Arijuane: Na verdade eu sou um produto do rap. Eu considero-me mais rapper que poeta. Só para teres uma ideia, quando vivia em Quelimane criei dois grupos de rap. Nessa altura, começamos a cantar, criamos uma crib chamada 3/75 que até chegou a ter uma certa fama dentro da cidade e da província de Zambézia. Foi o rap, de forma mais directa, que me leva a Maputo. Havia uma ideia de que iria estudar em Maputo, mas a motivação era mesmo continuar a fazer rap. Quando chego em Maputo, as dificuldades, na altura, eram enormes. Gravar uma música no estúdio, exigia um foco diferente e, nessa mesma altura, criamos o movimento Kuphaluxa. Então, fiquei mais engrenado na literatura, mas o rap foi essa carga motivacional.

Comecei a ouvir rap nos anos 90. Já ouvia Boss Ac, para além do rap americano que nem entendia (risos). Mas o Ac nós ouvíamos nessa altura, os Black Company, depois o privilégio de ter as músicas dos racionais MCs, MV Bill, mais tarde a GPro Fam lança “Um Passo em Frente” e também consumimos muito o rap moçambicano.

Eu fazia parte do movimento rap, até hoje considero-me um rapper. Então, é muito difícil dizer que o rap teve influência na minha poesia, porque, para mim, está tudo entrelaçado. É essa intertextualidade…até hoje escrevo músicas rap, convivo com muitos rappers e continuo com as raízes no hiphop.

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

JA: Eu oiço quase tudo, desde que seja um bom rap. Desde Valete, Sam The Kid, Dealema…oiço também muito rap brasileiro: o Gabriel o Pensador (influenciou-me bastante), o Emicida, Os Racionais MCs, Projota…

No rap moçambicano, também sigo muitos rappers. O Azagaia (risos) é incontornável. O próprio Duas Caras, apesar de agora estar a fazer um estilo diferente, tudo que é lançado no mercado eu escuto, vou ao youtube e tenho acesso. Só para teres uma ideia, agora acabei de ouvir uma EP dos Pontas de Lança. Tudo que rap, eu escuto. Aliás, tudo que é música. Eu sou musicalmente muito aberto. Oiço tudo que é música. A lista é enorme. O rap quando for bom eu escuto. Agora, existem alguns rappers que, por causa da minha escola, minha estrada que é diferente…não curto muito rap de exibicionismo. O meu rap é aquele que a gente chama de rap consciente. Um rap que ajuda a desbravar certos caminhos, a pensar mais além e ver o horizonte. Mas oiço muito rap. Por exemplo, no rap americano, tenho álbuns do Nas, quase todos os álbuns dele, Kendrick Lamar, quase todos álbuns, J. Cole…curto estes rappers, porque me ajudam a reflectir. Mas também curto a vibe dos rappers. O Kay Real, por exemplo, é um brother. Já estive numas cavaqueiras com o nigah. Aqui no bloco tenho um vizinho que é Scooby Doo.

E literatura para mim é isso. Onde há palavras, onde as pessoas brincam, trabalham as palavras…estou lá. Então, é difícil dizer…porque a cena do rap é aquela cena do momento. Lançaram uma cena nova, um gajo vai ouvir. Posso gostar ou não gostar, mas um gajo tem de ouvir. É que nem um livro. Quando outros escritores estão a lançar novos livros, eu tenho a obrigação de lê-los para ter uma opinião sobre eles. O mesmo acontece com o rap.

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

JA: Esta pergunta é mesmo difícil, porque são muitos rappers. 5 é um número muito reduzido. Mesmo a nível nacional, trazer o meu top 5 é mesmo difícil. Mas nos EUA, pela história, pelo engajamento, pela versatilidade, eu ficaria, em número um, com 2 Pac por tudo que ele fez no hiphop e continua tendo esta influência depois de ter perecido. Ainda nos EUA, salvaguardo o Nas por ser um dos rappers que eu admiro. Nos palop eu ficaria com Mano Brown dos racionais MCs por tudo que ele fez pelo rap e pela estrada que tem. Colocaria em número 3 o Valete por tudo que tem feito, pela força, pelo trabalho (sobretudo os dois primeiros)…dificilmente teremos um novo Valete na língua portuguesa. No quarto colocaria Azagaia por aquilo que ele é, pela ousadia, pela capacidade rimática na sua escrita e, em quinto lugar, não vejo a quem colocaria em Moçambique. Podia ser o Duas Caras, mas depois houve um desvio por parte dele…que eu respeito: cada um é livre de fazer o que quer. Por isso, coloco em quinto lugar, Gabriel o Pensador pela militância e por tudo que ele me ensinou e por toda ousadia que ele me transmitiu.

Q4.

EM: Chegou a gravar um álbum? Se sim, qual é o título e quando é que foi publicado?

JA: Nunca cheguei a gravar um álbum, mas já tive muitas faixas espalhadas como grupo (como disse, tinha um grupo de rap designado 3/75) e tinham muitas músicas: eramos 3 membros e fazíamos esse trio. Tínhamos, na altura, a rádio Paz, em Quelimane, que divulgava esses trabalhos.

Q5.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

JA: Para mim, o rap é um texto literário. É-me muito difícil especificar “este é o primeiro texto literário”. Mas, como disse, a minha escola é do rap. Eu já escrevia desde 1999/1998…tinha algumas coisas que eu escrevia: tinha muitas letras de rap. Lembro-me quando vim para Maputo em 2009, na minha mala tinha muitos papéis com escritos meus. Mas perdi aquilo, nem sei onde. A verdade é que escrever assim de forma consciente, textos para publicar, enquadrados num género literário, foi mesmo depois de fundar o movimento Kuphaluxa, não que antes eu não tivesse poemas, mas só a partir de 2009 passei a escrever coisas que não me pudesse arrepender depois de voltar a ler (risos).

Q6.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo rap na sua produção literária?

JA: Por acaso, não. Nunca senti isto. A não ser que alguém outsider encontre essa intertextualidade, mas eu nunca. Porque olhando para o rap, em si, e olhando aquilo que eu busco na literatura, eu acho que o rap acaba sendo um género menor. A poesia que se utiliza nas letras de hiphop acaba sendo uma poesia menor para aquilo que eu busco, hoje, na literatura. O rap é mais para as massas, paras as pessoas entenderem de forma fácil e reflectirem. Mas a minha poesia…os poetas da minha família têm uma poesia que não tem essa utilidade pública. É como diz Paulo Leminski, um poeta brasileiro, são inutensílios que nós vamos criando. Então, não existe, de forma consciente, um diálogo com uma letra rap. Eu separo bem as águas. Quando é para escrever poesia e quando é para escrever uma letra rap. A letra rap exige alguma clareza, alguma facilidade na mensagem, mas na poesia eu busco isso: a poesia são os flashs que me ocorrem na alma e tento trazê-los para o papel. Pode ter havido de forma inconsciente, mas conscientemente nunca houve. Já houve diálogo como outros escritores como Fernando Pessoa, por exemplo, José Craveirinha, Luís Carlos Patraquim, Helberto Helder…

Q7.

EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

JA: Eu não acho que o rap contribua, porque foi apenas uma ferramenta que me abriu a visão, deu-me atitude e uma forma de pensar e estar na vida. Hoje em dia, eu acho que não. Quando eu escrevo textos mais longos, escuto mais jazz. Não quero ouvir outras palavras. Se for uma outra música, tem de ser numa língua que eu não perceba. Várias vezes dei por mim a ouvir o Oliver Mtukudzi, mas o resto é mais jazz: só instrumental. Eu vou usando essa ritmização da música para ver se eu capto isso para a escrita, mas assim de forma directa não acho.

Talvez pelo lado da ousadia, pelo lado da minha verticalidade, minha forma de ver e viver as coisas, porque há em mim uma espécie de dizer as coisas como elas são, mas isso na poesia encontramos Craveirinha que era contundente e eu sou uma pessoa que consumiu muito Craveirinha. Convivia até com a poesia inédita de Craveirinha, a partir da Fundação José Craveirinha com o filho Zeca. Então, eu acho que o rap acaba não tendo essa influência, também porque muitos rappers que eu admiro são pessoas que lêem muito literatura. Mas não acho que o rap tenha essa influência na forma como eu escrevo ou na minha escrita. Mas o rap teve uma influência na minha vida, como eu vivo, como eu me dirijo às coisas, como eu converso, como eu me visto, a minha visão sobre a vida…o rap tem essa influência. O rap foi cristalizando o meu carácter. Mas quando é para escrever, não!

Q8.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

JA: Eu olho para o rap como música. Tenho dois pontos: deixe-me falar da música assim no geral, onde vou incluir o rap e depois falo do rap em particular. Eu acho que nós perdemos muito como nação, porque não existe esse paralelismo entre a literatura e a música. Não vejo essa aproximação, esse entrosamento. Eu acho que se houvesse esse entrosamento, talvez as nossas músicas tivessem um conteúdo mais original ou que fosse mais bem elaborado. Os músicos perdem muito em não pedirem os poetas para escreverem as suas letras, porque cada um tem o seu dom. Há quem tem o dom da palavra, há quem escreve melhor. Nós ouvimos alguns músicos nosso que cantam o estilo R&B e as letras são uma porcaria, mas os poetas podiam escrever de forma melhor. Entretanto, os músicos têm esse lado egocêntrico, eles é que escrevem e nós perdemos muito com isso.

Olhando para o rap enquanto ritmo musical também tem esse egocentrismo: esse ego é mais avultado. É um ego que está sempre inflado. Os rappers querem escrever as suas próprias letras. Talvez o paralelismo é sentido em alguns rappers, não em todos, através de algum sinal de leitura. Consegue-se ver que há certos rappers que já despertaram, que já lêem e já vão para os livros. Algumas coisas, por exemplo, no antigo Duas Caras via-se ali claramente que ele leu algumas crónicas do Mia Couto. Azagaia, também, é um exemplo: vê-se ali que ele lê literatura e alguma coisa filosófica. Eu acho que o paralelismo pode-se medir a partir daí, mas são casos muito isolados. Com estas duas figuras não se pode generalizar aquilo que é o rap nacional.

Em geral, eu acho que se precisa muito de perceber, sobretudo os rappers, que para escrever uma letra com mais conteúdo, uma música mais atrativa e muita poeticidade é preciso ler livros. E a literatura moçambicana tem bons livros.

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