sábado, 25 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Mélio Tinga

“Acho que a literatura e, sobretudo, a prosa, minha disciplina de trabalho na literatura, é também feita observando o ritmo. A vida só faz sentido porque existe ritmo.”

Diz ter uma relação íntima com o ritmo e sente que a poesia é uma sombra que de si não desgruda mesmo na escuridão. Poético e profundo, não é? A escrita tem este efeito em nós: passamos a vida em exercícios catárticos que dispensam as idas aos psicólogos. A escrita é o nosso consultório. Basta ler a sua frase curta e comedida para perceber que há sinceridade nas suas palavras. Vês: nem sempre “o poeta é um fingidor”. Tem, também, episódios de franqueza. Embora sejam raros, este é um deles.

Voltando à intimidade que priva com o ritmo, fico aqui pensando: qual deve ser a cadência da sua vida? Não é ao acaso que me surge a dúvida. Mélio Tinga tem com a escrita um envolvimento múltiplo que não me cabe descrever, basta pensar no número de vezes em que o seu nome aparece na ficha técnica dos livros editados nos últimos 10 anos. Entre o design, a coordenação editorial e a escrita há uma alma que não sossega porque deve dançar o groove, o funk, o pandza e outros ritmos ditados por essas actividades que alimentam a (nossa) literatura. Só este entusiasmo tripartido seria suficiente para uma conversa de dias e noites, mas não foi desta vez. Acabaríamos por abordar uma questão adormecida sobre a possibilidade de transferir estas coisas escritas neste canal para um periódico com perfil, linha editorial e génese peculiares. Mas há quem diga por aí que boas intenções não morrem, adormecem. E, nesse processo (o da dormência), amadurecem. Deve ser por isso que estamos nesta conversa tela a tela conversando sobre possíveis intercessões entre o rap e a sua escrita.

Fala do rap como um afecto que amadureceu a ponto de não ser necessária a negação da sua membrana em cada gota de tinta que pousa no pólen, no bond ou no display. Lida com isso de uma forma mais natural como quem é chamado ao altar para dizer “sim” ante uma relação já consagrada cujas núpcias serão mais de favos que de mel porque esse, há muito que se deixara sugar entre os nubentes.

Deve ter sido com esta veleidade rítmica que trouxe ao mercado editorial moçambicano “O Hambúrguer que Matou Jorge – Antologia de Contos Criminais Moçambicanos” (2017); “O Voo dos Fantasmas” (2018); “A Engenharia da Morte” (2020), “Marizza” (2021) e “Objecto Obliquo” (2022) cuja autoria é partilhada com David Bene.

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Mélio Tinga: Começamos de um ponto difícil: precisão no tempo. Aprecio a precisão – a precisão cirúrgica, por exemplo – acho que não se distancia da noção de precisão poética, arquitectónica ou musical. Porque em muitos casos, implica a capacidade de penetrar a carne, chegar a lugar oco no meio do nosso corpo que não sabemos muito bem onde fica, nem a dimensão do seu diâmetro; um lugar onde se chega através da elaboração de algo preciso, capaz de penetrar. Para a pergunta “quando”, não tenho resposta. É difícil. Penso que desde que tenho acesso a escolher o que escutar, desde que tenho aparelhos que permitem aceder à música tenho escutado diferentes estilos musicais, isso inclui o estilo rap, e outros porque não sou apegado a um ou dois estilos, não é necessário. De tempos em tempos as minhas referências, musicais e literárias, mudam. Não vejo a música como uma espécie de religião, e, mesmo que fosse, eu não seria um crente devoto. 

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

MT: Gosto das músicas NBC, um dos fundadores do hip hop português, a sua música não é apenas um pensamento no terreno matemático do rap, mas tem influências do groove, do funk, do rock e da profundidade da música soul e dos blues. Gosto da elaboração e da ironia do Azagaia, aprecio Gabriel O Pensador, Iveth, Xitiku Ni Mbawula e Duas Caras. Sempre nas línguas que melhor entendo, mas não apenas. Existem outros. Neste momento ocorrem-me estes.

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

MT: Não tenho um top 5. Não existe. O meu top 5 hoje, amanhã pode mudar. Ontem era outro. Acho que os tops são uma indução ao que não devia ser. Talvez indicar três músicas/ álbuns específicos (dizem que três é o número da sorte, também). E não são qualquer tipo de “tops”: “Epiderme”, mini-álbum de NBC, “Astronauta”, música de Gabriel O Pensador Ft. Lulu Santos, “Ai de nós”, música de Azagaia.

Q4.

EM: Já escreveu/gravou algum material neste gênero?

MT: Era ainda (quase) adolescente, há mais de dez anos, escrevi uma letra de música para um concurso. Foi interpretada por dois músicos: Xitiku Ni Mbaula e Yolanda Kakaka. Ou seja, a mesma letra deve duas versões. Xitiku Ni Mbaula interpretou-a no seu estilo, o rap, e foi uma música bonita. O título original da música é “Três Noites Arrependidas”. Desde lá até cá, nunca voltei a escrever para música com intenção de gravar.

Q5.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

MT: Comecei a escrever para contar as histórias dos desenhos que fazia. Devia ter por aí onze anos. Sempre gostei de desenhar. Na época os desenhos pareciam um pouco vazios, dei-lhes a palavra e não recuei. Não sei se aquilo era “texto literário”. Desenhava e contava as histórias dos desenhos que fazia. Lembro-me de uma banda desenhada de que me orgulhava na adolescência e dava a todos meus amigos para lerem. Nesta época, lia muitas revistas, não tinha livros, se quer um livro. Depois continuei coleccionando uma espécie de contos que escrevia e agrafava em forma de livro. Escrevia também em versos. Achava que seria poeta. Era mentira. Mas a conexão com a poesia se mantém, ainda hoje, na minha prosa, a poesia, queira sim, queira não, está ali, escondida, mas está. Quando tinha 17 anos, na Escola Secundária Quisse Mavota, juntei um conjunto de colegas e criamos algo que chamamos de “AJEP – Associação de Jovens Escritores e Poetas”, realizávamos várias coisas, principalmente saraus de poesia e música. Nessa época, movido, não sei porque espírito achei o contacto de Suleiman Cassamo pela internet e convidei ele para ser padrinho da associação. Aceitou. Não entendo até hoje, mas ele aceitou e até veio num dos eventos. Hoje mantemos uma relação de amizade muito boa. Este grupo foi para mim importante, no sentido de apoio mútuo e de ajudar a acreditar na palavra escrita. Uns continuaram, outros tomaram outras direcções na vida. Depois integrei-me em outros grupos que foram relevantes, como é o caso do Grupo Cultural da Universidade Pedagógica e mais tarde no Movimento Literário Kuphaluxa. Todos esses factos foram importantes no início e para continuidade.

Q6.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo rap na sua produção literária?

MT: Eu dialogo com o ritmo. Todos os dias. Acho que a literatura e, sobretudo, a prosa, minha disciplina de trabalho na literatura, é também feita observando o ritmo. A vida só faz sentido porque existe ritmo. Não é apenas num género musical, é um universo na sua plenitude. A grande vantagem do escritor é que ele tem possibilidade de dialogar com os vários ritmos, artísticos e da vida, concretamente. A luz tem ritmo, o andar tem ritmo, o olhar tem ritmo. Uma conversa para ser agradável depende de ritmo, o poema precisa de ritmo. O nosso trabalho enquanto pessoas que trabalham as palavras, é permitir que estas se encaixem de tal forma que quem lê compreenda algum ritmo. Penso que o ritmo interage connosco em todos sentidos. O rap é também, acima de tudo, uma disciplina imersa no ritmo.

Q7.

EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

MT: Sim, o rap tem uma contribuição importantíssima na minha produção literária, mas, acima de tudo, a música na sua dimensão global. Escuto música todos os dias, diferentes estilos, ritmos e línguas. Uma ideia de livro, de descrição, de uma fala, de ambiente, parece as vezes aparecer da escuta musical. Outras vezes é uma preocupação demonstrada na música que pode ser ampliada na literatura, outras é a energia musical que dá um impulso à forma como preciso de escrever um texto.

Quando escrevo, muitas das vezes tenho um conjunto que escuto, apenas instrumental, sem letra, sem voz humana. A música é a minha grande cúmplice.

Q8.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

MT: Tenho impressão sempre de estarmos a discutir os mesmos problemas. A arte sofre sempre influência dos problemas sociais actuais, esse é dos aspectos comuns entre o rap e a literatura actual, ainda que pareça tudo diferente, o centro das ferramentas de pensamento e de produção é mesmo. Há, penso, um crescimento em termos quantitativos, dos dois lados, o que penso que enriquece, já que, estatisticamente tem também uma implicação na qualidade, tanto no rap, assim como na literatura.

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