quinta-feira, 18 de setembro de 2014

A modelização da estratificação social em Moçambique por Azagaia (em Cubaliwa) e Gpro (em Forever)

Estupendo! Foi a palavra que me escapou pelos lábios depois de minutos de silêncio gritante escutando “Cubaliwa” de Azagaia (rapper moçambicano) e “Forever” da Gpro (grupo moçambicano de Rap).
Tudo começou quando na faixa intitulada “cães de raça” vejo-me repentinamente a mercê da caracterização mais lúcida da sociedade moçambicana com que me cruzei nos últimos anos,
pelo menos no que diz respeito a questões de cor da pele e o possível status que disso advém, e que na verdade é uma cruz que cada grupo social carrega nas costas: é como se o sistema indiano de castas se tivesse inserido o íntimo das nossas vivências e trazendo consigo uma aberrante estratificação social.
É neste contexto que em “forever” da Gpro, na faixa “filhos da lua” deparo-me com o retrato falado dum grupo social (uma suposta casta) de origem suburbana, exposto a uma vida de “constrangimentos” financeiros e vendo a pobreza entrar-lhe pela porta e a fé fugindo pela janela, daí a pergunta: “quem é esse Deus de quem a bíblia nos fala…será um Deus de Sommerschield ou de mafalala!?...
No entanto, “cães de raça” mostra-me que existe uma certa diversidade, em termos tipológicos, de cães de raça em Moçambique:
*      “os que não têm bandeira; descendentes de pai branco, intelectual e mãe preta, lavadeira; na tuga (refere-se a Portugal) o assimilado ou português de segunda, na terra (refere-se a Moçambique) condenado a mecânico ou prostituta; e que se arranja job dizem que deu a fruta” - são os mulatos;
*      “os donos da terra sem nunca terem mandado nela; com os amigos querem paz, com os irmãos fazem guerra por isso são explorados na sua própria terra; são os únicos ricos que vivem na miséria; expulsaram o colono mas nunca o colonialismo” – são os negros;
*      “os que vivem nas casas da zona chick; na garagem estacionam jeeps há séculos que são VIP nas terras de Moçambique; são donos da língua, donos da obra, donos das acções no banco, donos da arrogância; têm os pretos e mulatos como primos subordinados ou irmãos injustiçados” – são os brancos;
*      “os que cuja vida é fazer negócio; brancos, pretos e mulatos são seus clientes de coração; seus filhos estão acostumados a ver o preto como empregado, a carregar sacos na loja e no armazém; são donos das lojas; são comerciantes; fazem dinheiro circular, são bons negociantes” – são os indianos.
Como podemos perceber, é um cenário que tão nítida e claramente quanto o preto no branco, determina a fronteira que separa uns dos outros, sendo que as “castas” desfavorecidas sentem que a “fronteira” está mal delimitada. E, porque “o estômago vazio é mau conselheiro, transforma simples ovelhas naqueles lobos sedentos de sangue” (gpro in “filhos da lua”) com o agravante de o estado moçambicano não ser muito paternalista como o nosso vizinho que criou o black empowerment (embora o sete milhões tenha tentado entrar na mesma linha) observa-se que cada um faz o que melhor sabe para impor algum tipo de justiça na “fronteira”… claro: “quando nada mais te resta, tu entregas-te de corpo e alma e o diabo é que faz a festa” (gpro in “filhos da lua”) porque a lei da selva já prevê: “gente mata para não morrer, e qualquer arma serve quando não tens nada a perder”(gpro in “filhos da lua”) e, aliado aos tiques típicos duma sociedade consumista que, aliás, já somos, surge a violência, que é só de alguns, e, duma forma generalizada, surge o calculismo que gera a hipocrisia donde surge o que a Gpro designa de “Gucci republic” que é habitada pelos “miss e mister Moçambique” como preferiu chamar Azagaia.
O cenário na “Gucci republic” é animalesco e isso é extensivo à toda sociedade: “aqui só se fala a língua do dinheiro, poucas sogras querem ter um rapper como genro, elas preferem a filha casada com um engenheiro,” tudo sob o lema: “garante o teu futuro que o amor virá com o tempo”. É uma sociedade em que “tens que ter um benz, tens que ser o gajo mais falado dos men, ou gigolô, se não tens guita (refere-se a dinheiro) no chick (refere-se a mulher) vai te dar valor”.
É neste contexto que a violência (no sentido lato do termo ou no figurado que levar-nos-ia à corrupção, por exemplo) que já foi muito bem abordada em “filhos da lua”, ganha azo para a sua ocorrência, como forma de enriquecimento rápido para melhor competir na “Gucci republic” e a hipocrisia gera os “miss e mister Moçambique” que normalmente são de “castas” inferiores mas, na rua, representam de tal forma que parecem, realmente, gente endinheirada:
“Ela, está sempre a procura de algo que a deixe mais bela, é a negra que não é branca mas adora parece-lo, seu cheiro natural agora é perfume Chanel, com o andar da Beyoncê e cabelos da cinderella, acredita que é só com maquilhagem que ela brilha, gaba-se do cabelo que deixa mulheres carecas na Índia…”
“Ele, passa no seu carro, está de vidros fumados, o sapato que ele usa tem o cheiro que ele tem, se tem dinheiro pensa que daí vem beleza, a triste realidade é que é dinheiro da mesada, namora com uma kota (refere-se a uma mulher muito mais velha) diz que adora mulher velha mas ele só quer a mola (refere-se a dinheiro)
Portanto, trata-se de uma outra forma de reestabelecer as “fronteiras” impostas na sociedade, tal como retrata “cães de raça”, e garantir a competitividade na “Gucci republic” duma forma diferente mas nada melhor que a que observamos em “filhos da lua”, pois neste caso, pela sede de se afirmar como proveniente da “casta” superior, todos assumem identidades postiças que se desfazem em pouco tempo.
Consequência: a violência gera criminosos e “a sobrelotação já é um problema comum porque cadeia é como o chapa, cabe sempre mais um” (gpro in filhos da lua) a hipocrisia gera enganos e desilusões, que por sua vez, geram traumas e daí a desconfiança que não está ao nível de um cepticismo que caracteriza o sentimento pós-moderno, trata-se sim de perda do “encantamento do mundo”, de que as crianças são as maiores vítimas, e da propalação de um imediatismo carnavalesco que assola, sobretudo, os jovens. 
Ora, há aqui uma série de aspectos a considerar que são aparentemente desconexos e desorientados, o que resulta em perplexidade, para quem tenha vivido tempos supostamente melhores, e indefinição para a grande maioria e, obviamente, os média fazem disto espetáculo e alimentam o seu jogo de sensacionalismo que, sinceramente, é o que nos atrai.
E aí, entram em cena os optimistas, “temos que mudar” “a mudança começa contigo” “tu não podes mudar o mundo, mas se cada um fizer um bocado podemos melhorá-lo” “o mundo muda a cada gesto teu”…e quando finalmente é feita a pergunta “como mudar?” ou “por onde começar?” todos tomam noção do caos que se instalou na nossa sociedade. Que se entenda que a noção de caos aqui trazida é diferente da pura confusão, provavelmente o conceito “complexidade” seja mais aceitável para estabelecer sinonímia com o de “caos”. Segundo esta teoria - que tem atraído muitas mentes curiosas em diversas áreas, tendo começado por atrair o matemático Eduard Lorenz - diríamos que um facto, aparentemente insignificante, causa um, outro, mais um, mais um…enfim uma infinidade de acontecimentos cada vez mais complexos e aparentemente desconexos que se sucedem a partir de um acontecimento “mesquinho” que se vai agigantando como uma bola de neve.
Só para ilustrar, apetece-me citar a célebre colocação de George Herbert: “Por falta de um prego, perdeu-se uma ferradura. Por falta de uma ferradura, perdeu-se um cavaleiro. Por falta de um cavaleiro, perdeu-se a batalha. E assim, um reino foi perdido. Tudo por falta de um prego.”
De forma similar, temos cá entre nós: a estratificação social que origina uma aberrante desigualdade a nível de distribuição de renda (quando falo em desigualdade procuro de todas as formas estar alheio a qualquer tipo de confusão com a noção de nivelamento que não condiz com o mérito que advém do esforço de cada um), e, associado ao facto de estarmos numa sociedade consumista e competitiva em que quanto mais dinheiro se tem mais portas se abrem, inclusive as do mundo subjectivo, surgem diversas falcatruas de pertencer a esse grupo muito restrito de “senhores manda-chuva”, seja pela via do crime (que dele surge a superlotação das cadeias), do calculismo (daí a descrença no amor, amizade, honestidade, bondade, etc), da hipocrisia (daí a desconfiança para com tudo e todos), da prostituição, etc, etc…notavelmente, é uma sequência quase desconexa de acontecimentos que se sucedem num sentido de causa-efeito, qualquer coisa relacionada com o efeito dominó, que nos leva aceitar que, socialmente, estamos diante de um caos e que, sim, esse tal caos compreende em si uma ordem por ser decifrada.

É mais ou menos este o milindre que se vive sobretudo nas cidades e vilas do meu país, e aproveito, mesmo assim, para dizer: sejam bem-vindos à nação que tem “cães de raça”, regidos pelo sistema “Gucci republic” que é o principal responsável pela existência de “filhos da lua” e “miss e mister Moçambique”.

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