É difícil reflectir sobre qualquer coisa que não nos remeta aos
acontecimentos que determinam os tópicos conversacionais nos últimos dias: a
partida de Azagaia, as marchas em sua homenagem dentro e fora do país, as
manifestações autorizadas por uns e interditas por “ordens superiores”, a
violência bárbara a que se recorreu para tal interdição e os “cancelamentos”
que são promovidos contra entidades públicas que têm vozes cujo clamor pode muito
bem dar eco aos anseios do povo.
A minha preocupação surge em meio a este último tópico: cancelamentos. Em abono da verdade, os argumentos iniciais para esta atitude constituíam uma aporia por misturarem alhos e bugalhos: empatia, escolhas individuais, disponibilidade, agendas, etc. Só depois da triste acção da polícia é que o cancelamento passou a ter um sustento mais assertivo: o humanismo, independentemente da agenda, da disponibilidade e das escolhas individuais. Só a empatia é prevalece. Touché!
O que é inevitável nesta campanha é perceber como nos é clara a função da
arte ou de quem a faz. Diante disto, mudei o horizonte de cancelamentos para
uma outra nata artística com a qual interajo no dia-a-dia e, sobretudo, pelas
redes sociais: os poetas/escritores. O número é considerável e é composto por
gente que se evidencia sobremaneira e demostra ter uma genica inquestionável no
seu exercício.
Há anos que se vem inscrevendo um debate que embora pareça esgotado,
evidencia-se quando menos se espera. A tónica disso gira em torno de um
esteticismo purista subserviente do que outrora recebera o nome de arte pela
arte. Outro ismo que entra em voga no mesmo debate é uma, também, subserviência
a uma arte de engajamento. O que se nota é o que Luis Dolhnikoff descreve numa
entrevista concedida a André di Bernardi e publicada na SIBILA: revista de
poesia e crítica literária, nos seguintes termos:
no final do século XX, depois do fim das certezas
clássicas, das grandes utopias políticas e das vanguardas artísticas, os poetas
ficaram sozinhos, atomizados, por sua conta, cara a cara com o confuso mundo
contemporâneo, esvaziado de todas as referências, tanto temáticas quanto
formais. As duas principais reacções foram o retorno a um eu lírico apequenado,
a uma poesia centrada no próprio poeta e em seu cotidiano, uma reacção fácil,
autoexplicativa, e explicativa também do facto de a poesia actual interessar
quase que somente aos próprios poetas, e uma nova poesia engajada, aquela que
“se desengaja da linguagem poética para servir à mensagem de uma causa”.
Este segundo caso não é totalmente novo no cenário literário moçambicano, e
remonta o que se passou a chamar de “Poesia de Combate” que, embora seja
reconhecida a sua importância fundacional, foi e é alvo de críticas por se entender
que a poesia deve se desengajar do manifesto sócio-político e valer mais pela
forma como o sujeito poético diz o que diz e menos pelo que diz. Há, inclusive,
quem diga mais: a poesia não deve dizer nada, porque tudo já foi dito, o que torna
o texto poético produzido nestes tempos num campo de ilegibilidade e hermetismo
agudo. E, por via disso, o próprio poeta que vive num tempo e espaço
determinado esteja sempre alheio a tudo senão a si próprio como sujeito
pensante, com sentimentos, questionamentos e, mais importante, empatia com os
seus.
Recorrendo a um questionamento muito em voga nos últimos dias: o que dirão
as próximas gerações sobre os poetas que viveram neste tempo muito agreste do
ponto de vista sócio-político? Será possível que tenham conseguido, em tais
tempos conturbados, habitar numa torre de marfim e se alhearem de tudo e todos?
As perguntas poderão, também, assombrar os leitores críticos deste tempo
(embora estejam às gotas) sobre o método a que terão recorrido para não notarem
tal facto e, simplesmente, passarem de esgrelha diante dele e, também,
habitarem na mesma torre e fazerem análises que interessam a eles próprios e às
suas academias que, em certa medida, constituem outras torres de marfim.
Em parte, o “cancelamento” seria feito em relação aos próprios poetas,
porque os críticos não podem fazer interpretações fantasmáticas dos livros que
lêem. Há uma disciplina que norteia o exercício e tal deve prevalecer. Apesar
disso, sobra espaço para o “cancelamento” do crítico (jornalista, professor de
língua/literatura, ensaísta, etc.) porque as suas ilações relativamente a um
determinado livro e as suas perspectivas sobre o é e não é arte ou, mais
especificamente, texto literário contribuem sobremaneira para a instalação de
um modismo que possa enfermar uma geração como parece estar a ocorrer nos
últimos tempos. Dito de outro modo, a magna literariedade de que tanto se fala
na interpelação dos poetas/escritores que está vinculada em pressupostos
formalistas pode estar a gerar uma busca de aplausos pelos críticos deste tempo
e um alheamento a tudo e todos no seu confortável conchego na torre de
marfim.
Em geral, já é mais do que consensual que um texto literário, em razão da
sua veleidade de representação e figuração do mundo, não pode surgir dissociado
de um contexto espácio-temporal. É este mesmo contexto que poderá reger a dimensão
relacional externa do texto com outros aspectos que permeiam a humanidade, a
sociedade, o mundo ou a natureza com vista a manutenção do encadeamento semântico
e pragmático desse mesmo texto tanto do ponto de vista da sua produção (pelo
escritor/poeta) quanto da sua recepção (pelo leitor).
Assim, a leitura do texto poético (e do literário, em geral) tomada com
base neste pressuposto, abrangerá componentes formais dos textos e suas
possíveis interpretações semântico-pragmáticas. Só esta conclusão
“destrói
irremediavelmente uma das mais pertinazes miragens e uma das mais graves
inexactidões de certa concepção formalista do texto literário: a ideia de que o
fechamento do texto, que seria marca distintiva da literariedade, implica a
independência do texto em relação a qualquer contexto” (Aguiar & Silva, 2007, p. 578)
De uma forma ou de outra, tanto o “retorno” ao Combate quanto o conchego na
torre de marfim faria de nós justos merecedores de um “cancelamento” nos
próximos tempos. Se é verdade que a poesia é um exercício de deleite com a
palavra, é também verdade que o poeta não se pode furtar aos dilemas do seu
tempo e espaço.
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