Já é sobejamente conhecida a ideia de que a crítica literária pode ser tomada de determinada forma em função do espaço em que circula, dos objectivos que condicionam a sua produção, bem como dos mecanismos discursivos que a sustentam.
Vem daí a ideia de se distinguir a crítica literária jornalística da académica. Há, actualmente, uma crescente tendência de se prestar certa atenção à crítica literária que é feita em meios "contra-hegemónicos" (blogs, vlogs, redes de chat, etc.), mas, de uma ou de outra forma, esses são, para mim, espaços de divulgação. Não vejo outra característica particular de textos que surgem nesses meios. Casos há em que um texto crítico publicado em tais meios é eminentemente jornalístico e, noutros casos, não poucos, é um texto académico.
Há, contudo, uma crescente apropriação do género crónica argumentativa/de opinião no domínio da crítica literária feita nesses meios. Tal apropriação não se resume a criadores de conteúdos de crítica literária, mas a vários intelectuais de diversas áreas que, pelo meio em que pretendem fazer circular o texto, despem-se das suas amarras académicas e dão ao texto um ar mais leve. Mais agradável. Engraçado, porém profundo. Já agora, foi com esse propósito que surgiu a coluna "tasaver".
Ainda que neste último caso e no da crítica jornalística haja um interesse de tornar o texto leve e menos "picante", há sempre reacções crispadas. Defensivas. Agressivas, às vezes. É interessante quando tais reacções culminam em troca de cartas nos jornais ou em notas de esclarecimentos nos mesmos meios em que a crítica circulou. É até um exercício elegante.
Não penso que isto ocorra por acaso. Nem por causa de quem criticou ou por causa do criticado. O facto é simples e claro: a crítica dói, meus senhores. Mas, muitas vezes, representa o choque de realidade de que precisamos. É essa consciência que faz com que doa menos e fiquemos gratos quando nos é dirigida nos meios jornalísticos tradicionais ou nos digitais (contra-hegemónicos).
Curiosamente, esta é a crítica a que os autores têm acesso, porque circula. Gera debate. Promove a obra, mas também pode desacreditá-la.
Enquanto isso, a crítica académica anda ali como a dama intocável da zona. Que deseja alguns rapazes mas não se quer dirigir a eles. Vive fazendo comentários em surdina e quando um dos jovens (por si admirado ou não) se aproxima, finge que “não está nem aí”. É assim a academia. É assim a indústria cultural. É assim a sociedade. Todas essas são instâncias de poder. Onde há poder, há hipocrisia.
Comparando o que se produz, do ponto de vista crítico, no jornalismo, nos meios digitais e na academia, seria interessante que os escritores lessem géneros académicos produzidos sobre os seus livros. Na sua maioria, são textos ancorados a uma crítica de fundamentação. Uma crítica que “produz” uma teoria e procura fundamentá-la com base em excertos da obra ou na sua macro/micro-estrutura.
Mal nisso não há, apesar de me parecer um exercício um tanto quanto gasto pela perspectiva em que é tomado. Muitas vezes é feito de fora para dentro e não de dentro para fora, o que, quanto a mim, seria um pouco mais interessante.
Nesse exercício feito de fora para dentro. Dito de outra forma, da teoria para a fundamentação, no texto, há um processo contínuo e cansativo de sacralização do texto e, outro pecado maior, o de endeusamento do autor empírico como se este e o autor textual fossem a mesma instância.
Seria interessante que os escritores lessem géneros académicos produzidos sobre os seus livros. São textos muito elogiosos. Capazes de dizer o que nem o autor pensou quando escreveu tal texto. Nada vejo contra tal exercício: afinal a leitura interactiva dá espaço para esse mágico acontecimento: o texto terá diversas interpretações cada vez que passa pela igual diversidade de leitores. É justo. Mas, cá entre nós, há exageros. Fazemos interpretações forçadas. Nesse movimento “de fora para dentro” há teorias que não encontram, na obra, um terreno fértil para ganhar vida, mas nós damos sempre um “empurrãozinho”. Um adubo acrescido. Uma rega aqui e acolá, e zás, surge o título da crítica académica: “a manifestação de [FENÓMENO] em [TÍTULO DO LIVRO] de [AUTOR]” com argumentos totalmente “martelados”.
São estes “martelanços” que me fazem pensar no quão interessante seria se os autores tivessem acesso aos textos produzidos no meio académico sobre a sua produção literária à semelhança dos que são produzidos noutros meios e que geram reacções crispadas, pelo que surgem algumas perguntas de base:
1. Haveria igual reacção, mesmo não concordando com o que é dito?
2. Haveria interesse em interagir com o autor do texto crítico para entender melhor a sua perspectiva?
3. Haveria um retorno ao exercício oficinal para aprimorar certos aspectos que possam ter gerado a eventual “desorientação” do leitor crítico?
4. Haveria uma carta ao júri de defesa, se tiver sido um trabalho de culminação de curso?
5. Haveria uma carta ao editor da revista, se tiver sido um artigo publicado numa revista científica?
Enfim! São muitas perguntas, para uma só resposta: seria interessante!
A graça disso não estaria no prazer de ver uma potencial “guerra de titãs” mas na movimentação do “sistema literário” que isso iria representar. Não seria novidade: há casos relatados em outras latitudes em que certos autores fizeram a carreira inteira de costas viradas com um certo crítico ou um conjunto deles e as partes seguiram tranquilamente as suas vidas e continuaram a exercer o seu papel com consciência do que estavam a fazer...afinal, nem o autor nem o crítico são semideuses avessos ao contraditório. O fim máximo dessa divergência de perspectivas/opiniões/escolhas estéticas não foi sobre quem ganhou e quem perdeu, mas sobre a importância que isso teve para a manutenção do sistema literário que se estava a construir.
Em síntese, se quisermos um sistema sério e estivermos comprometidos com isso, precisamos de ultrapassar as “guerras de comadres”, “as lutas de almofadas”, “as doxas de bar e dos grupos de chat” e assumirmos um compromisso sério com a “sarna” que escolhemos para nos coçar: a escrita e publicação de livros.
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