“Não se nasce mulher,
torna-se mulher”
Simone de Beauvoir
Sexo
é poesia. Esta é a frase que encerra o texto patente na página 27 do livro “o perfume do pecado” como um exercício
sugestivo de se sentir o aroma de um pecado que a nossa vivência religiosa
intitula original. Mas não é sobre sexo que o livro trata como pode sugerir uma
leitura apressada tanto do livro como da capa que, aliás, foi engenhosamente
desenhada.
O perfume do pecado é uma construção poética que se constrói através da metaforização da sensualidade feminina, sobretudo, e da representação de estruturas de sentido que nos confirmam que o texto literário não diz. Sugere.
O
texto “o sabor da maçã proibida” é
disso exemplo:
coma sem casca
e não te venhas já
ela é melosa, porém, venenosa. (p. 32)
Outro
exemplo deste processo pode ser lido na página 27 em que encontramos:
Na selva não há timidez
se a fruta é boa,
que se coma. (p. 27)
Trata-se, portanto, de um jogo metafórico que reenvia o leitor às suas próprias conclusões sobre o que acaba de ler devido à apropriação que Chabana faz da palavra para singularizá-la e conduzir-nos a uma abordagem sobre o erotismo como um campo de afirmação da feminilidade ou desmistificação do perfume do pecado. De facto, por um lado os poemas fazem a representação do corpo feminino como se o eu poético se quisesse afirmar e assumir, por outro revela-se o descortinar de tabus que, desde a antiguidade, aprisionam mulheres e as reduzem à insignificância.
Presente
em todos 52 textos, divididos em duas partes (do pecado e o perfume,
respectivamente) esta metaforização a que nos referimos faz com que a
experiência de leitura deste livro seja um contínuo desapego de credos sociais
sobre a mulher.
Assim,
o perfume do pecado revela ser um único poema em contínuo exercício de desfazer
as brumas que enclausuram a mente quando reflectimos sobre a feminilidade. Se a
nossa memória comum sugere que a mulher é um ser que se forjou pela costela
masculina, a nossa consciência escandaliza-se com a auto-afirmação deste mesmo
ser como uma entidade que tem uma essência própria a despeito do ser que
supostamente a originou.
Nas
entrelinhas do poema “dois em dois” (pag.
47) é inevitável tirar esta conclusão:
De tanto amar-te
não sei se ainda te quero,
mesmo por perto.
Sinto que és meu amor eterno,
embora no desespero, me esquento
nas memórias rígidas de beijos e
abraços
que ficaram nas nossas metades de
amantes:
dois olhares soterrados…
Amamo-nos e odiamo-nos,
mas no jardim do Éden somos dois
inconscientes
felinos, famintos e loucos
embebidos em amor e banho de
gemidos,
porém, eternos fugitivos,
eu sou eu e tu és tu!
Como
podemos inferir, o texto requalifica a essência feminina e a coloca numa
posição de equidade e não de mero objecto refém das abordagens quer eróticas quer
sentimentais do sexo oposto.
Ler
o perfume do pecado e ater-se apenas na representação que Chabana faz do corpo
feminino não só é injusto como se desvia do alcance dos seus textos. Uma
releitura do poema acima pode revelar-nos que além da mera erotização do verso
há uma expressividade que augura a manifestação da vontade de liberdade e
autonomia do corpo feminino, do desejo sexual e da assunção da essência
feminina.
Ao
estrear-se desta forma, Chabana junta-se, por exemplo, à Lica Sebastião, Sónia Sultuane,
Deusa d’África, Melita Matsinhe e Rinkel que, segundo a professora Vanessa Riambau
Pinheiro[1],
são poetas contemporâneas que quebram o
paradigma de controlo e dominação do corpo feminino com uma poesia empoderada e
decolonial como elemento sintomático dessa imprescindível, ainda que gradual,
transformação do status quo actual, reminiscente do racismo e do patriarcalismo
ainda vigentes na nossa sociedade.
Dando
eco à frase de Simone de Beauvoir, em epígrafe, diria que este livro é um
tutorial para que as mulheres se tornem no que lhes é destinado e se libertem
das amarras desta sociedade falocêntrica. Aos homens, é um convite para a desconstrução
dos seus próprios credos relativamente à mulher e seus papéis sociais.
[1] PINHEIRO, Vanessa Riambau. Cânones e Perspectivas
Literárias em Moçambique. Editora UFPB, João Pessoa – PB, 2021;
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