É comum encontrar, no movimento hip-hop e na poesia, artistas que sempre procuram provar que a semente da intervenção não caíra em solo infértil. Disto resulta uma música/poesia de cunho interventivo e questionador de um status quo implantado por uma classe média-alta para, de algum modo, oprimir e explorar a classe baixa (o dito povo). Daí a recorrente atribuição do título de representantes dos oprimidos aos poetas ou rappers (senão músicos na sua generalidade) que produzem manifestações artísticas com estas características.
Embora não goste de
uma leitura biografista da arte, fui convidado a repensar esta dualidade (com
que intitulo o texto) na III Conferência Internacional sobre Activismos em
África organizada pelo Instituto de Estudos de África da Universidade Federal
de Pernambuco, Universidade Federal de Paraíba, Centro de Estudos
Internacionais do Iscte (CEI-Iscte) e o Centro de Estudos Sociais Amílcar
Cabral (CESAC) de Bissau, entre os dias 14, 15 e 16 de Setembro de 2021, na
qual co-apresentei uma comunicação intitulada “De Xigubo a Cubaliwa: o legado poético de José Craveirinha no Rap de
Azagaia”.
Dos diversos assuntos
abordados no painel 20, o pano de fundo era a apreciação do hip-hop numa
perspectiva social (do activismo), do processo de produção lírica e
instrumental e, por fim, do espaço que, embora seja negado, o hip-hop vai
ganhando nos corredores da academia.
Feita a comparação
entre o movimento hip-hop no Brasil e em Moçambique, concluiu-se que no
primeiro caso surge através de movimentos contestatários à semelhança do que
aconteceu em Bronx (nos EUA) em que grupos de jovens oriundos de classes
desfavorecidas na sociedade encontraram no movimento hip-hop uma forma de
expressar as suas vivências e, a seu modo, sugerir outras agendas a quem
governa, como quem diz “zele por nós”.
No nosso caso, em
Moçambique, veio à ribalta a questão do acesso aos meios audiovisuais (cassetes
ou VHSs, na altura) para vincar que os primeiros fazedores desta arte (e uma
parte dos actuais) se não nasceram num berço de ouro (a nosso nível) tinham
outros desafios por enfrentar em suas vidas muito além da falta de água, pão,
luz e tecto, o que se justifica pelo acesso que eles tinham (ou têm) a esses
meios.
Dito de outro modo,
por um lado há um activismo assente no que o artista vive na favela e, por
outro, há um activismo que se baseia no que o artista observa e sente.
Alargando a
perspectiva de análise para a poesia (sobretudo a da geração dos fundadores) há
encontros e desencontros notáveis, mas nada que não nos faça questionar, à
semelhança do que se fez na conversa a que me refiro, sobre o lugar de fala do
poeta ou rapper relativamente ao conteúdo da sua arte. Com alguma atenção,
podemos reparar que os poetas desta geração, à semelhança do que se diz sobre
os rappers, enfrentavam no seu dia-a-dia desafios um pouco além da ânsia pela
água, pão, luz e tecto, conforme disse acima.
Ora, a aludida
questão do lugar de fala toma contornos muitas vezes racistas/segregacionistas
nos dias que correm mesmo quando quem a convoca queira se despir desse deslize
conceptual. Isto ocorre porque além de se usar o conceito para configurar um
contradiscurso de dissipação de zonas de penumbra de quem se deixa levar pelo
entusiamo analítico, procura-se elevar a experiência a um estatuto que
inviabiliza a existência de empatia pelo Outro.
Com algum rigor
analítico, poder-nos-á ser evidente que este discurso reclama uma autoridade
primitiva sobre determinados assuntos e se estabelece num jogo de poder que se
situa num horizonte temporal diferente do que o desenvolvimento da Psicanálise
conduzira a humanidade.
Portanto, no domínio
da literatura (e, neste caso, pode ser extensivo ao Rap) esse debate é
facilmente ultrapassado se nos ativermos ao conceito da ficcionalidade muito
bem sintetizado na autopsicografia de Fernando Pessoa, no qual é possível ler: o poeta é um fingidor/ finge tão
completamente/que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.
Observando o facto
nesta vertente, não cabe aqui nenhum questionamento sobre a coerência entre as
representações que o poeta ou rapper faz e o que ele é, porque a teoria
literária já lhe concede alguma “presunção
de inocência” que alicerça o seu discurso lírico na imaginação que alimenta
a arte e na empatia que conduz o seu sentido humano.
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