sexta-feira, 17 de setembro de 2021

Poetas e rappers: representantes do povo ou cultores de uma “revolução caviar”?

É comum encontrar, no movimento hip-hop e na poesia, artistas que sempre procuram provar que a semente da intervenção não caíra em solo infértil. Disto resulta uma música/poesia de cunho interventivo e questionador de um status quo implantado por uma classe média-alta para, de algum modo, oprimir e explorar a classe baixa (o dito povo). Daí a recorrente atribuição do título de representantes dos oprimidos aos poetas ou rappers (senão músicos na sua generalidade) que produzem manifestações artísticas com estas características.

Embora não goste de uma leitura biografista da arte, fui convidado a repensar esta dualidade (com que intitulo o texto) na III Conferência Internacional sobre Activismos em África organizada pelo Instituto de Estudos de África da Universidade Federal de Pernambuco, Universidade Federal de Paraíba, Centro de Estudos Internacionais do Iscte (CEI-Iscte) e o Centro de Estudos Sociais Amílcar Cabral (CESAC) de Bissau, entre os dias 14, 15 e 16 de Setembro de 2021, na qual co-apresentei uma comunicação intitulada “De Xigubo a Cubaliwa: o legado poético de José Craveirinha no Rap de Azagaia”.

Dos diversos assuntos abordados no painel 20, o pano de fundo era a apreciação do hip-hop numa perspectiva social (do activismo), do processo de produção lírica e instrumental e, por fim, do espaço que, embora seja negado, o hip-hop vai ganhando nos corredores da academia.

Feita a comparação entre o movimento hip-hop no Brasil e em Moçambique, concluiu-se que no primeiro caso surge através de movimentos contestatários à semelhança do que aconteceu em Bronx (nos EUA) em que grupos de jovens oriundos de classes desfavorecidas na sociedade encontraram no movimento hip-hop uma forma de expressar as suas vivências e, a seu modo, sugerir outras agendas a quem governa, como quem diz “zele por nós”.

No nosso caso, em Moçambique, veio à ribalta a questão do acesso aos meios audiovisuais (cassetes ou VHSs, na altura) para vincar que os primeiros fazedores desta arte (e uma parte dos actuais) se não nasceram num berço de ouro (a nosso nível) tinham outros desafios por enfrentar em suas vidas muito além da falta de água, pão, luz e tecto, o que se justifica pelo acesso que eles tinham (ou têm) a esses meios.

Dito de outro modo, por um lado há um activismo assente no que o artista vive na favela e, por outro, há um activismo que se baseia no que o artista observa e sente.

Alargando a perspectiva de análise para a poesia (sobretudo a da geração dos fundadores) há encontros e desencontros notáveis, mas nada que não nos faça questionar, à semelhança do que se fez na conversa a que me refiro, sobre o lugar de fala do poeta ou rapper relativamente ao conteúdo da sua arte. Com alguma atenção, podemos reparar que os poetas desta geração, à semelhança do que se diz sobre os rappers, enfrentavam no seu dia-a-dia desafios um pouco além da ânsia pela água, pão, luz e tecto, conforme disse acima.

Ora, a aludida questão do lugar de fala toma contornos muitas vezes racistas/segregacionistas nos dias que correm mesmo quando quem a convoca queira se despir desse deslize conceptual. Isto ocorre porque além de se usar o conceito para configurar um contradiscurso de dissipação de zonas de penumbra de quem se deixa levar pelo entusiamo analítico, procura-se elevar a experiência a um estatuto que inviabiliza a existência de empatia pelo Outro.

Com algum rigor analítico, poder-nos-á ser evidente que este discurso reclama uma autoridade primitiva sobre determinados assuntos e se estabelece num jogo de poder que se situa num horizonte temporal diferente do que o desenvolvimento da Psicanálise conduzira a humanidade.

Portanto, no domínio da literatura (e, neste caso, pode ser extensivo ao Rap) esse debate é facilmente ultrapassado se nos ativermos ao conceito da ficcionalidade muito bem sintetizado na autopsicografia de Fernando Pessoa, no qual é possível ler: o poeta é um fingidor/ finge tão completamente/que chega a fingir que é dor/ a dor que deveras sente.

Observando o facto nesta vertente, não cabe aqui nenhum questionamento sobre a coerência entre as representações que o poeta ou rapper faz e o que ele é, porque a teoria literária já lhe concede alguma “presunção de inocência” que alicerça o seu discurso lírico na imaginação que alimenta a arte e na empatia que conduz o seu sentido humano.

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