sexta-feira, 8 de outubro de 2021

Sobre o regresso dos bobos da corte

Fazer arte é sem dúvidas um exercício incomparável. Recorrendo a um exagero que se tem usado muito na escrita, fazer arte é brincar de ser Deus ainda que isso dure um sopro. A despeito do gosto da realização, tenho notado um gozo peculiar na apresentação que o artista faz do seu próprio labor. Talvez seja este último gosto que veda a leitura da instrumentalização que se evidencia no horizonte do “agora vamos a um momento cultural com…”.

O que se tem notado é que os artistas (sobretudo músicos, poetas, bailarinos, acrobatas, humoristas, etc), quais bobos da corte, são chamados em eventos de estado e/ou particulares para distrair os presentes da tensão que lhes é causada pela actividade principal da ocasião ou para servir de energizer que intercala tal agenda de actividades.

Pelo gosto de apresentar o seu trabalho, nutrido pela esperança de construir um público, muitas são as vezes em que vemos a desvalorização do artista e do seu labor nada insignificante em prol de um lugar-comum de se ter sempre “um momento cultural”.

Desconheço a origem de tal prática mas suponho que tenha surgido com o intuito de dar aos artistas a tão desejada oportunidade de apresentar o seu trabalho e buscar horizontes de consumo do seu produto. Ora, o que se tem observado é a prática de se ter um sujeito dotado de algum potencial para a arte a quem se reserva o papel de fazer sorrir o rei: o bobo da corte. É verdade, porém, que não é mais ao rei que se pretende divertir, nos dias de hoje, mas a toda uma plateia de “gente séria” que precisa de um energizer de um bobo para não tornar o seu exercício (também sério) entediante.

Do artista espera-se só o famigerado momento cultural e depois disso que ele vá a Deus-dará. Como sujeito pensante, bastam as “bobagens” que divertem. Mas, nisto há méritos por reconhecer: Esopo foi exímio na sua fábula “a cigarra e a formiga”. Eis-nos hoje noutro milénio e ainda assim a sua leitura (que é, afinal, do seu tempo) ainda norteia os nossos olhares sobre a arte e os seus cultores.

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