Gosto da possibilidade de ter outros campos de saber a contribuírem para a compreensão dos estudos literários, ou, pelo menos, dos textos produzidos neste domínio de realização discursiva.
Dentre tantos, existe
um que se interessa pela explicação dos modos de composição e sequencialização
textual, culminando com a descrição dos mecanismos internos ou externos ao
texto que condicionam a interpretação das unidades que nele coexistem.
Embora o texto poético (ou literário, em geral) se beneficie de uma certa especificidade do ponto de vista da sua composicionalidade e estilo, por estar na categoria de texto, precisa, sim, de conter algumas propriedades que o possam garantir alguma sobrevivência na relação autor-contexto-código-canal-leitor.
Desta última
colocação, virá, certamente, uma tentativa de nos conduzir à ideia de que o
texto poético (literário) reclama o privilégio de um fechamento como se o autor
o tivesse escrito para ele próprio. Sem reservas, nem gaguejos, é uma colocação
infeliz.
Sobre este aspecto,
Aguiar e Silva (2007) alerta-nos que essa ideia revela "uma das mais
pertinazes miragens e uma das mais graves inexactidões de certa concepção
formalista do texto literário: a ideia de que o fechamento do texto, que seria
marca distintiva da literariedade, implica a independência do texto em relação
a qualquer contexto” (p. 578).
Só isto já responde à
questão que intitula estas breves linhas, se considerarmos que há dimensões da
coerência que devam ser invocadas, designadamente: referencial, semântica,
genérica e pragmática, Cf. Mauai (2021).
Estás a ver: acabamos
invocando um e outro aspecto que melhor se adequa a contextos académicos para
evitar transparecer a ideia de se estar a lidar com um lugar-comum.
Para melhor ilustrar,
imaginemos o seguinte cenário:
Sou poeta. Há dias
venho pensando numa construção tão linda quanto esta: "o ar pousou na
abóbada da pedra que cintila na nuvem".
Fico pensando na
beleza desta construção e vanglorio-me por isso. Sinto que produzi algo
totalmente novo (como se tal fosse possível). Numa tentativa de abraçar um
surrealismo tardio, herança de uma ocorrência também tardia em outras
latitudes, aqui estou feliz com a minha genialidade. Sou poeta, não é!? Não
escrevo para os outros. Faço-o para espantar os meus fantasmas. Digo-o sempre
que me apetecer.
Pronto. Imaginações à
parte. Voltemos à dimensão relacional referida por Aguiar e Silva (2007) e a
três dimensões da coerência referidas por Mauai (2021): referencial, semântica
e pragmática. Deixemos a genérica para outras conversas. Mesmo que a humildade
reine e queiramos dizer que a nossa capacidade de interpretação está aquém do
texto em causa, diante de tamanho esforço dicionaresco, enciclopédico e até
teórico, "desta mata não sai nenhum coelho".
Como sabemos, virá o
argumento da pluralidade de interpretações a que o texto está sujeito diante da
semelhante pluralidade de leitores. Mas, alto lá! A meu ver, a nossa
interpretação não deve ser condicionada por critérios totalmente arbitrários.
Deverão existir palavras ou enunciados desencadeadores de uma dimensão
relacional do texto com outras realidades (quiçá externas ao mesmo) para
"justificar" a nossa interpretação.
Quero acreditar que
em boa parte dos leitores que entraram em contacto com a construção ilustrativa
que aqui trago, "o ar pousou na abóbada da pedra que cintila na
nuvem", surgiu um bloqueio, porque, quanto a mim, não estão ali criadas as
condições para que as expressões linguísticas nela presentes "se
relacionem semanticamente, contribuindo para a compreensão global do
significado".
Atenção: não estamos
a dizer que texto poético deva comunicar como se de um manual de instruções se
tratasse. Estamos a dizer que a beleza do texto é tão necessária quanto a sua
dimensão semântico-pragmática se considerarmos que, em síntese, ninguém escreve
para si próprio. Ora, não sejamos ingénuos: haverá sempre artimanhas
estilísticas que o escritor vai usar para se expressar, como, por exemplo,
declarar-se perante uma nação quando, em síntese, tentava deixar migalhas
auto-explicativas da sua relação com uma musa qualquer. Para os outros, o texto
terá um marco patriótico, para ele tratar-se-á de um exercício purgatório
diante dos fantasmas que o cercam.
O que quer dizer que
a garantia da coerência no texto poético, não vai, seguramente, ser uma
garantia da dimensão enunciativa de quem o redigiu.
Ademais, consideremos
que há textos que num primeiro contacto nos podem ser inacessíveis por varias
razões: o nosso conhecimento enciclopédico, o estilo do autor ou a nossa atenção durante a leitura:
Quantos de nós não
abandonamos livros de certos autores, mas, passado algum tempo, voltamos a
lê-los e a paz se restabelece?
Quantos de nós não
lemos textos há mais de uma década e extraímos determinados sentidos e, hoje,
lemo-los com outros olhos?
Quantos de nós não
conseguimos fazer uma dúzia de páginas de um livro que outros dizem ser o
explendor da criação literária?
Dito isto, devo
aclarar que importava trazer esta dimensão dialéctica sobre a construção do
texto poético (literário), sem perder de vista o equilíbrio necessário entre as
componentes co-textual e contextual que devem sempre prevalecer nas nossas
tentativas de produção literária.
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