domingo, 27 de outubro de 2024

o que gostaria que me tivessem dito quando comecei a me interessar pela escrita/poesia?

Nos últimos tempos, ando metido em actividades de revisão/edição de textos e pouco ou nada tenho feito relativamente a um ofício me dá imenso gozo: ler, de forma crítica, os outros. Mas a vida é mesmo isto. As actividades generosas não nos dão gozo e as que nos dão, não são tão generosas.

Enfim, são "coisas da vida" como disse Milton Nascimento. Tirando essas lamúrias, tenho aprendido bastante. Parte desse aprendizado vem em forma de déjà vu. Surge daí o sentido da pergunta que intitula estas linhas.

Imagino-me, então, numa conversa em que alguém me pudesse ter dito:

1. A escrita é um campo plural: várias formas de escrever podem ser adoptadas e aceites. Contudo, todas elas precisam, sempre, de um aperfeiçoamento contínuo;

2. Entre o tom confessional e o trabalho com a linguagem (do ponto de vista estético), o segundo deve prevalecer. O que faz o texto literário não é o conteúdo, nem um esteticismo purista, mas a confluência entre o valor semântico e o uso estético da linguagem numa harmonia em que ambos domínios coexistem para formar beleza. Sim, o belo deve ser a maior conquista do texto literário. Mas o belo é relativo, dir-se-á, certamente. Mas com a mesma certeza poder-se-á distinguir um texto poético de um manual de instruções;

3. Há algo que nos pode desviar no exercício da escrita de textos poéticos: o tom declamatório. O declamador que em nós reside não pode tomar protagonismo enquanto escrevemos. A palavra ressona no nosso cérebro, mas devemos garantir que ela sobreviva no papel mesmo sem a voz de um exímio declamador;

4. O poeta e crítico literário Archibald MacLeish disse em seu texto intitulado “Ars Poetica”: a poem should not mean, but be. É uma frase um tanto quanto estranha quando não bem tomada, porém profundíssima quando interpretada com rigor. A mesma escamoteia o nosso exercício iniciático nestas coisas de escrever, sobretudo quando nos era orientado pelos professores do ensino primário. Quantos de nós não recebemos a instrução “escreva um poema sobre os direitos da criança”? Reiteradamente, quantos de nós não continuamos com essas missivas nas nossas práticas de escrita? É exactamente aí onde está o problema que Archibald procura descortinar: o poema não devia falar disto e aquilo. Devia, sim, ser a reflexão sobre esses fenómenos ou sentimentos. Parece mesma coisa, mas não é;

5. Faço estas colocações não para transmitir a ideia de a poesia ser um género difícil, mas para perceberes que ela tem uma dinâmica própria do ponto de vista de composição: a respiração cortada, a eliminação de conectores excessivos (não há espaço para "no que tange", "no que concerne" e outros rococós), a selecção vocabular cuidada em relação à circunstância de tempo e lugar, etc. Sobre este último ponto, não se está a referir a um localismo forçado, nem a um universalismo tendente à crise de identidade. Nada disso. Trata-se, sim, de um equilíbrio entre o que se é e se pretende dizer. Em síntese: "falemos de nós pensando no mundo; e falemos dele pensando em nós".

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