domingo, 27 de outubro de 2024

O conflito entre o domínio da língua e a liberdade estética na actual produção literária moçambicana


"do que vem sendo produzido, é notório o crescimento do valor estético das obras que vão sendo publicadas, pois as condições de interação entre a crítica e a escrita também melhoraram e, por outro lado, nota-se também que já se confunde cada vez menos o que é mau domínio das linguas e liberdade poética"

Lourenço do Rosário

Não gosto de ser mal percebido nestas coisas de emitir opiniões sobre isto e aquilo. Quem gosta? Cogito, seriamente, na hipótese de passar a incluir ilustrações neste exercício, como uma espécie de tutorial para o manuseamento de uma ferramenta, do mesmo modo como o fazem os usuários do YouTube. Quem sabe ainda consigo ter lá algumas visualizações que me possam render moedas para chancelar estas ideias num volume.

Enquanto não tomo a via das ilustrações, vou, estrategicamente, usando as epígrafes para nortear os mais atentos relativamente ao contexto e, quiçá, alcance disto tudo.

Em 2003, quando o Professor Lourenço do Rosário teceu as considerações em epígrafe e as partilhou no Jornal Notícias (24/09) e, mais tarde, em Singularidades II (2007), certamente que verificara um fenómeno bem oposto do que se vivencia nos dias de hoje.

Vinte e um anos depois, ainda continuamos com uma crise similar, senão cada vez mais grave. Se naquele tempo havia um crescimento notório do valor estético e já se tinha clareza da diferença entre o mau domínio da língua e a liberdade estética, nós, na nossa circunstância, vamos brincando às cabracegas e com os egos cada vez mais inflados sobre a nossa genialidade linguístico-literária, como se a premissa saussuriana de que a língua é um organismo social não passasse de uma reacção histérica de uma dona de casa diante das traquinices dos filhos.

Temos um domínio estético digno de realce, tanto na poesia, quanto na prosa. A nossa exploração narrativa de espaços, tempos e imaginários revela o transcender de limitações "localistas", buscando outras geografias e outros modos de pensar. É lindo de se ver e ler.

Embora seja redundante fazer menção a isto, o nosso mercado de publicação de livros também cresceu. Sim, eu disse "mercado de publicação de livros". Evitei o termo "mercado editorial" propositadamente. Sobre isso conversamos noutro dia. Temos alguma descentralização dos centros de produção e difusão do livro, embora Maputo não deixe de continuar sendo o mainstream. Sobre isto pouco podemos fazer. Há toda uma dinâmica de organização política, económica e social que condiciona esta dominância. Podemos tentar resistir e inverter o cenário, mas chega sempre aquela voz que diz: "aceite, que dói menos".

No meio de tantas coisas boas, ainda prevalece a o mal descrito por Rosário (2007): continuamos com algum défice no domínio linguístico. Ainda que não tenhamos de ser os doutos da língua na qual escrevemos, se esta faz parte do nosso material de trabalho, é salutar que tenhamos o domínio dessa ferramenta. Não me refiro a aspectos muito específicos da língua que cabem a quem se dedica ao seu estudo, mas a questões basilares como ortografia, pontuação, acentuação, regência e alguma concordância à mistura.

Não estou a tentar levantar a bandeira de um certo entendimento de produção literária que se prende no perfeccionismo linguístico. Pelo contrário: não sou purista. Estou, na verdade, num exercício de reflexão, no qual todos somos convidados ao purgatório para reflectir sobre a nossa acção enquanto contribuintes na coisa literária deste tempo.

Dirá a voz do contraditório que esse papel caberá ao revisor linguístico. Sim, sabemos. Igualmente, todos estamos cientes de que a revisão não se materializa num simples concertar de peças estragadas. É um exercício de leitura e releitura até se perceber a intenção de quem escreveu e encontrar a razoabilidade entre o estético e o linguisticamente aceitável. Ora, ingenuidade à parte: há coisas que sempre escapam, ainda que o autor, o revisor e o editor façam o seu papel, sobretudo quando um destes três intervenientes se dá o trabalho de açambarcar as tarefas do outro.

Quantos revisores deixam de fazer o seu trabalho e tomam o papel do editor? Quantos editores assumem papéis de revisores, sem o devido preparo para algumas questões linguísticas? Quantos autores não tomam a liberdade de acrescentar frases, períodos, versos ou parágrafos inteiros após o percurso "normal" da revisão?

Tudo isto pode estar por detrás do que acontece no nosso meio, sobretudo se houver a sobreposição de interesses "mercantis" na autenticidade que se quer dar ao produto. Falando em interesses mercantis: quais seriam, num contexto em que nos lemos tão pouco? Mesmo entre nós mesmos. Se uns lessem os outros, esta conversa fluiria à vontade.

Ao deter-me nesta reflexão, lembrei-me da citação que o Professor Salvato Trigo faz no seu “Ensaios de Literatura Comparada Afro-Luso-Brasileira”, pp. 78-79, na qual retoma um trecho da introdução de Uanhenga Xitu no livro "Os sobreviventes da máquina colonial", publicado na colecção "autores angolanos", edições 70.

Numa clara advertência ao seu leitor, o escritor diz o seguinte: "nós não fazemos literatura, tenho de repetir mais uma vez aos meus leitores que me aconselham a aperfeiçoar o português".

Conforme o autor esclarece, "esta afirmação de Uanhenga Xitu deixa a nu o seu apego teórico a uma concepção ultrapassada de literatura - aquela que fazia depender o literário do perfeccionismo linguístico".

Na verdade, não se trata de uma concepção totalmente vencida na mente de muitos de nós, sobretudo os que passaram por alguma academia de letras ou ciências de linguagem. Há, entre nós, essa percepção errónea de que o texto literário deva ser o reservatório de tudo quanto os gramáticos apregoam.

De acordo com Trigo (1986), há, hoje, uma visão algo diferente que, quanto a mim, é a mais equilibrada.  "Hoje privilegia-se o pragmatismo da expressão a sua excessiva cosmética. Não se desprenda, porém, que a forma de expressão não tem qualquer importância, nomeadamente ao concernente a sua correcção linguística". Dito de outra forma, "é fundamental não confundir a frase literária com a frase linguisticamente correcta, pois as lógicas de funcionamento desses dois tipos frásicos são diversas. É necessário analisar as possíveis incorrecções linguísticas dum texto sempre em situação, isto é, investigar até que ponto elas não são, por vezes, um elemento determinante da própria escrita".

Diante destas colocações feitas com o devido  "apadrinhamento", podemos, sem reservas, dizer que parte daqui o conflito entre um certo tipo de revisores e uma boa parte de escritores. Os primeiros estão presos à primeira percepção de se conceber o texto literário como guardião do linguisticamente correcto, e os segundos, atrelados a esta visão que julgamos mais acertada, escondem-se por detrás dos seus desvios linguísticos na crença de que um texto literário é um palco de "vale tudo".

Tanto uns como outros, precisam de se reencontrar. Nem a pureza linguística se deve impor no texto literário, nem o texto literário deve mandar às favas tudo que é linguisticamente aceitável. O equilíbrio deverá prevalecer, não por mero gosto ou preferência, mas ao serviço da intenção estética do texto.

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