1.
Lendas tradicionais e
urbanas: encontros e distanciamentos
No texto “Lendas tradicionais e lendas urbanas: uma revisão conceitual”, Núñez (2012, pp. 74 – 91) começa por contextualizar o âmbito em que se discute o conceito, entre o académico e o extra-académico. Diante desta estratificação, o autor destaca o que considera “definições convencionais de natureza bastante indeterminada”. Assim, pontua que “lendas urbanas são relatos pertencentes ao folclore contemporâneo que, em que pese conter elementos sobrenaturais ou inverosímeis, se apresentam como crônicas de feitos reais sucedidos na atualidade”. Alguns destes relatos partem de eventos reais, mas em tom exagerado ou misturados com dados fictícios.
Outro dado a considerar é que estes relatos circulam de boca a boca, por e-mail, pelas redes sociais (digitais) ou pelos mass media. Em geral, procuram, no fundo, veicular uma perspectiva moralizadora do relato que fazem.
É
neste contexto que Núñez (2012) contrapõe a lenda tradicional e a lenda urbana
nos seguintes termos:
1. A
lenda tradicional está unida à “linguagem das vinculações, enquanto a lenda
urbana “foge”da vinculação;
2. A
lenda tradicional vincula-se como um discurso verdadeiro, verídico, que
assinala o vestígio tangível com que que está relacionado o relato. A lenda
urbana, ao contrário, é um fake-lore[1]. “Caracteriza-se
por hibridações que pouco tem a ver com a tradição e mais com o que se chamou
de “pós-modernidade”.
Nesta
diferenciação, o que o autor assevera é que as lendas urbanas carecem do
essencial que caracteriza as lendas tradicionais: a sua “ancoragem” espaços e
tempos. A lenda tradicional vincula um lugar específico e reconhecível, e quase
sempre mantém continuidade com o presente. Contrariamente, o que a lenda urbana
vincula ocorre em qualquer lugar do mundo e, muitas vezes, não tem continuidade
com o presente.
À
semelhança do conto oral e do mito, a lenda tradicional (diferentemente da
lenda urbana) é vista não só como um leque de signos, mas como forma pragmática, dentro da comunidade, em relação à sua
transmissão e a outras relações que estabelece com outros usos (vestuário,
música, património material, etc.).
Embora
possamos encontrar estes elementos na lenda urbana, esta, muitas vezes
desvinculada da materialidade folclórica, reserva-se ao deleite, à incitação do
medo, à alimentação da ânsia pelo mistério, sobretudo em adolescentes.
Ademais, por estarem vinculados a um lugar específico, quando o transmissor oral de lendas tradicionais desaparece, outras gerações podem assumir as suas narrativas, mas respeitando o essencial, inovando pouco, pois o substracto tradicional corrigiria qualquer desvio, embora se possa considerar que haja “alterações ocasionadas por falta de memória ou por gostos pessoais de quem narra”.
2.
Internet à luz de Bakhtin
e sua relação com a lenda urbana
Em
“A cultura popular na Idade Média e no Renascimento”, Mikhail Bakhtin analisou
o que chamou de cultura popular, podendo-se validar as teorias deste teórico
com relação a “artefactos culturais” em que as noções de polifonia ou
dialogismo impactam sobremaneira.
É
neste ponto específico que a indústria do entretenimento encontrou nas lendas
urbanas um mecanismo de “alimentação” dos jogos, do fantástico e, não poucas
vezes, do grotesco, usado, inclusive na indústria cinematográfica.
Embora
a internet tenha surgido num contexto funcional de defesa, tem, hoje, uma
função muitas vezes lúdica que acomoda perfeitamente a descrição que Bakhtin
faz sobre a cultura da praça pública, em que se regista o cruzamento de
conversações; onde o internauta escolhe quem ele quer ser; uma típica praça
onde as pessoas, as mercadorias e outros objectos de consumo fluem
permanentemente, dando, assim, uma maior oportunidade de circulação do
estabelecimento das lendas urbanas.
Através
da internet, as lendas urbanas acentuam o carácter de histórias desvinculadas
de lugar e de referente e cujo uso é basicamente lúdico. Outro dado curioso é
que estas histórias não obedecem o esquema “princípio + conflito + desenlace”,
o que faz com que se torne num género sem uma estrutura composicional estanque,
senão a preservação da sua função pragmática. Este facto é causado, sobretudo,
pelo facto de se “quebrar” a cadeia clássica de autor unidirecional e
receptores passivos, cedendo espaço para existência do que Núñez (2012)
denomina “escrileitores” de autoria cooperativa e colectiva.
Esta
colectividade autoral assumida acima, gera uma hibridação de tradições e visões
de mundo em que, não raras vezes, ocorre a retoma de lendas e mitos clássicos,
mesmo sem a devida intenção para o efeito.
Conforme
pontua Núñez (2012, p. 83),
a lenda urbana, ao perder o mais substancial, que é a
linguagem das vinculações e sua propensão à “verdade”, ao comentário etiológico
que explica coisas, eventos ou realidades próximas ao público, se converte em
um exercício de fabulações disparatadas.
Diante
deste cenário de “desenraizamento” com a verdade, a lenda urbana substitui o
“pavor” sagrado pelo grotesco ou bizarro. Núñez (2012) destaca a lenda urbana
em torno da figura de Freddy Kruger muito difundida pela indústria cinematográfica,
e que foi e é bastante consumida em Moçambique. Adicionalmente, e a título
exemplificativo, podemo-nos referir à serie de filmes “Wrong Turn” que
configuram lendas urbanas produzidas no contexto cinematográfico e que são
consumidos a nível nacional.
Desta
forma, o autor destaca que “o medo, como leit-motiv de tantas lendas (urbanas),
pode ter ou não um argumento desenvolvido, mas é sempre coerente, sempre tem
uma ilação com o âmbito em que surge essa experiência que dá origem à lenda”.
3.
Da floresta sagrada de
Chirindzene às cobras que assobiam ou aos guiguisekas
Tomando
como base esta reflexão que nos é trazida por Núñez (2012), podemos recorrer a
duas lendas urbanas bastante difundidas nos finais da última década do século
passado e na primeira década no novo milênio, na cidade de Xai-Xai: o
guiguiseka e a cobra que assobiava no pomar da MOCITA[2].
O
facto é que circulava em vários contextos sociais, sobretudo igrejas e escolas,
uma informação que dava conta da existência de pessoas que se faziam
transportar em viaturas e que se dedicavam ao rapto de menores. Estas pessoas
estavam a serviço de uma entidade designada “guiguiseka”. A informação era
partilhada entre crianças e adolescentes como forma de dissuadi-los da
aceitação de “boleias”, rebuçados ou outras ofertas de estranhos, porque se
dizia que ao receberem podiam desmaiar e serem levadas pelo guiguiseka.
Por
outro lado, no mesmo período, circulavam informações segundo as quais no pomar
da fábrica MOCITA havia uma cobra enorme que vigiava o local a qualquer momento
do dia. Esta, tingida de características sobrenaturais, assobiava para chamar a
atenção dos que por ali passavam e caso o indivíduo olhasse para traz ou para
os lados, pelo impulso inconsciente do assobio, a cobra se fazia para perto de
si e o engolia.
Estamos
perante dois cenários que pouco ou nada tem que ver com a tradição do local
aludido, e, com alguma atenção, podemos encontrar versões destas narrações em
diversos espaços e tempos, o que fundamenta a colocação de Núñez (2012) ao
referir que a lenda urbana caracteriza-se por hibridações que não tem
vinculações espaciais, nem temporais, através das quais se possa perscrutar o
valor verosímil do que é veiculado.
Sucede,
porém, que estas narrações sustentam a ideia de que as lendas urbanas têm o
medo como leit-motiv. Mesmo que este não tenha um argumento desenvolvido do
ponto de vista de fundamentação na estrutura do real é sempre coerente por
estabelecer uma ilação com o âmbito em que surge a experiência que dá origem à
lenda.
De
facto, surgidas de contextos de raptos e de vandalização do património alheio,
estas lendas procuram manter a coerência com os contextos que lhes originam e
cumprem uma função pragmática circunstancial.
A
mesma leitura não se pode fazer em relação à lenda sobre a floresta sagrada de
Chirindzene, cita no distrito de Limpopo, Província de Gaza. Conforme refere
Simbine (2013), a origem da sacralidade deste lugar resulta do facto de ter
sido nele que Ngungunhane e seus companheiros fizeram uma pausa para descansar,
visto que já haviam percorrido dezenas de quilómetros a pé. Após o descanso,
Ngungunhane ordenou a Tcheri e Machecane que permanecessem no local, até sua
volta de Maputo. Tcheri organizou o povo local que o aceitou como seu líder.
Sucede, entretanto, que Ngungunhane foi preso e por isso nunca mais voltou
àquele lugar. Portanto, o nome Chirindzene provém da palavra rindza, de origem Xichangana, que
significa espera.
No
local, existe uma crença segundo a qual o espírito de Tcheri e seus
descendentes sepultados na floresta continuam vivos e velam pela comunidade
local até hoje.
Segundo
esta lenda, ninguém se pode fazer ao altar da floresta sagrada sem que passe
por um ritual encabeçado pelos nativos devidamente autorizados para tal tarefa.
Igualmente, é proibido urinar, defecar, namorar, apanhar lenha, cortar árvores,
caçar animais, apascentar gado, abrir caminhos ou entrar na floresta com
bebidas alcoólicas além das necessárias para a cerimónias, (Cf. Simbine, 2013,
p. 16). Em caso contrário, por exemplo, o utente poderá errar pela floresta,
ficando perdido e sem noção da saída do local.
Diferentemente
do que ocorre com a “questão” dos guiguisekas e das cobras que assobiam, há em
torno da floresta sagrada de Chirindzene uma vinculação com um discurso
verdadeiro, verídico, que assinala o vestígio tangível com que está relacionado
o relato.
4.
O papel humanizador e
compensador das lendas urbanas
Embora
estejam cercadas por todo este cenário de incitação do medo, muitas vezes
lúdico, sobretudo no contexto das redes sociais, as lendas urbanas transcendem
o mero boato ou fakenews, e reservam uma certa riqueza cultural, porque de uma
ou de outra forma mantém a força do imaginário colectivo e têm um fim
moralizador ou cívico.
O
que se deve fazer não é necessariamente desacreditá-las, mas acentuar a sua
função pragmática. Tal pode, muito bem, caber na abordagem de conteúdos
transversais em qualquer nível de ensino, desde que estejam salvaguardados, em
relação ao formando, os seguintes objectivos: (i) reflectir sobre os medos dos
formandos; (ii) problematizar os seus traumas; (ii) criar mecanismos para que
encarem o mundo real como ele é; (iii) garantir uma maior exploração do seu
potencial psicossocial.
[1] Termo usado para descrever histórias, tradições
ou informações que são fabricadas ou falsificadas, mas que são apresentadas
como parte do folclore autêntico. Essas histórias são frequentemente criadas de
propósito, com a intenção de enganar, divertir ou criticar certos aspectos
culturais ou sociais.
[2] Fábrica de castanha de cajú,
actualmente encerrada. Localizava-se na cidade de Xai-Xai e que detinha uma
extensa área composta por um pomar de cajueiros que forneciam matéria-prima à
fábrica.
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