domingo, 20 de outubro de 2024

Da floresta sagrada de Chirindzene às cobras que assobiam ou aos guiguisekas: encontros e distanciamentos entre lendas tradicionais e urbanas na visão de Núñez (2012)

1.    
Lendas tradicionais e urbanas: encontros e distanciamentos

No texto “Lendas tradicionais e lendas urbanas: uma revisão conceitual”, Núñez (2012, pp. 74 – 91) começa por contextualizar o âmbito em que se discute o conceito, entre o académico e o extra-académico. Diante desta estratificação, o autor destaca o que considera “definições convencionais de natureza bastante indeterminada”. Assim, pontua que “lendas urbanas são relatos pertencentes ao folclore contemporâneo que, em que pese conter elementos sobrenaturais ou inverosímeis, se apresentam como crônicas de feitos reais sucedidos na atualidade”. Alguns destes relatos partem de eventos reais, mas em tom exagerado ou misturados com dados fictícios.

Outro dado a considerar é que estes relatos circulam de boca a boca, por e-mail, pelas redes sociais (digitais) ou pelos mass media. Em geral, procuram, no fundo, veicular uma perspectiva moralizadora do relato que fazem.

É neste contexto que Núñez (2012) contrapõe a lenda tradicional e a lenda urbana nos seguintes termos:

1.     A lenda tradicional está unida à “linguagem das vinculações, enquanto a lenda urbana “foge”da vinculação;

2.     A lenda tradicional vincula-se como um discurso verdadeiro, verídico, que assinala o vestígio tangível com que que está relacionado o relato. A lenda urbana, ao contrário, é um fake-lore[1]. “Caracteriza-se por hibridações que pouco tem a ver com a tradição e mais com o que se chamou de “pós-modernidade”.

Nesta diferenciação, o que o autor assevera é que as lendas urbanas carecem do essencial que caracteriza as lendas tradicionais: a sua “ancoragem” espaços e tempos. A lenda tradicional vincula um lugar específico e reconhecível, e quase sempre mantém continuidade com o presente. Contrariamente, o que a lenda urbana vincula ocorre em qualquer lugar do mundo e, muitas vezes, não tem continuidade com o presente.

À semelhança do conto oral e do mito, a lenda tradicional (diferentemente da lenda urbana) é vista não só como um leque de signos, mas como forma pragmática, dentro da comunidade, em relação à sua transmissão e a outras relações que estabelece com outros usos (vestuário, música, património material, etc.).

Embora possamos encontrar estes elementos na lenda urbana, esta, muitas vezes desvinculada da materialidade folclórica, reserva-se ao deleite, à incitação do medo, à alimentação da ânsia pelo mistério, sobretudo em adolescentes.

Ademais, por estarem vinculados a um lugar específico, quando o transmissor oral de lendas tradicionais desaparece, outras gerações podem assumir as suas narrativas, mas respeitando o essencial, inovando pouco, pois o substracto tradicional corrigiria qualquer desvio, embora se possa considerar que haja “alterações ocasionadas por falta de memória ou por gostos pessoais de quem narra”.

2.     Internet à luz de Bakhtin e sua relação com a lenda urbana

Em “A cultura popular na Idade Média e no Renascimento”, Mikhail Bakhtin analisou o que chamou de cultura popular, podendo-se validar as teorias deste teórico com relação a “artefactos culturais” em que as noções de polifonia ou dialogismo impactam sobremaneira.

É neste ponto específico que a indústria do entretenimento encontrou nas lendas urbanas um mecanismo de “alimentação” dos jogos, do fantástico e, não poucas vezes, do grotesco, usado, inclusive na indústria cinematográfica.

Embora a internet tenha surgido num contexto funcional de defesa, tem, hoje, uma função muitas vezes lúdica que acomoda perfeitamente a descrição que Bakhtin faz sobre a cultura da praça pública, em que se regista o cruzamento de conversações; onde o internauta escolhe quem ele quer ser; uma típica praça onde as pessoas, as mercadorias e outros objectos de consumo fluem permanentemente, dando, assim, uma maior oportunidade de circulação do estabelecimento das lendas urbanas.

Através da internet, as lendas urbanas acentuam o carácter de histórias desvinculadas de lugar e de referente e cujo uso é basicamente lúdico. Outro dado curioso é que estas histórias não obedecem o esquema “princípio + conflito + desenlace”, o que faz com que se torne num género sem uma estrutura composicional estanque, senão a preservação da sua função pragmática. Este facto é causado, sobretudo, pelo facto de se “quebrar” a cadeia clássica de autor unidirecional e receptores passivos, cedendo espaço para existência do que Núñez (2012) denomina “escrileitores” de autoria cooperativa e colectiva.

Esta colectividade autoral assumida acima, gera uma hibridação de tradições e visões de mundo em que, não raras vezes, ocorre a retoma de lendas e mitos clássicos, mesmo sem a devida intenção para o efeito.

Conforme pontua Núñez (2012, p. 83),

a lenda urbana, ao perder o mais substancial, que é a linguagem das vinculações e sua propensão à “verdade”, ao comentário etiológico que explica coisas, eventos ou realidades próximas ao público, se converte em um exercício de fabulações disparatadas.

 

Diante deste cenário de “desenraizamento” com a verdade, a lenda urbana substitui o “pavor” sagrado pelo grotesco ou bizarro. Núñez (2012) destaca a lenda urbana em torno da figura de Freddy Kruger muito difundida pela indústria cinematográfica, e que foi e é bastante consumida em Moçambique. Adicionalmente, e a título exemplificativo, podemo-nos referir à serie de filmes “Wrong Turn” que configuram lendas urbanas produzidas no contexto cinematográfico e que são consumidos a nível nacional.

Desta forma, o autor destaca que “o medo, como leit-motiv de tantas lendas (urbanas), pode ter ou não um argumento desenvolvido, mas é sempre coerente, sempre tem uma ilação com o âmbito em que surge essa experiência que dá origem à lenda”.

3.     Da floresta sagrada de Chirindzene às cobras que assobiam ou aos guiguisekas

Tomando como base esta reflexão que nos é trazida por Núñez (2012), podemos recorrer a duas lendas urbanas bastante difundidas nos finais da última década do século passado e na primeira década no novo milênio, na cidade de Xai-Xai: o guiguiseka e a cobra que assobiava no pomar da MOCITA[2].

O facto é que circulava em vários contextos sociais, sobretudo igrejas e escolas, uma informação que dava conta da existência de pessoas que se faziam transportar em viaturas e que se dedicavam ao rapto de menores. Estas pessoas estavam a serviço de uma entidade designada “guiguiseka”. A informação era partilhada entre crianças e adolescentes como forma de dissuadi-los da aceitação de “boleias”, rebuçados ou outras ofertas de estranhos, porque se dizia que ao receberem podiam desmaiar e serem levadas pelo guiguiseka.

Por outro lado, no mesmo período, circulavam informações segundo as quais no pomar da fábrica MOCITA havia uma cobra enorme que vigiava o local a qualquer momento do dia. Esta, tingida de características sobrenaturais, assobiava para chamar a atenção dos que por ali passavam e caso o indivíduo olhasse para traz ou para os lados, pelo impulso inconsciente do assobio, a cobra se fazia para perto de si e o engolia.

Estamos perante dois cenários que pouco ou nada tem que ver com a tradição do local aludido, e, com alguma atenção, podemos encontrar versões destas narrações em diversos espaços e tempos, o que fundamenta a colocação de Núñez (2012) ao referir que a lenda urbana caracteriza-se por hibridações que não tem vinculações espaciais, nem temporais, através das quais se possa perscrutar o valor verosímil do que é veiculado.

Sucede, porém, que estas narrações sustentam a ideia de que as lendas urbanas têm o medo como leit-motiv. Mesmo que este não tenha um argumento desenvolvido do ponto de vista de fundamentação na estrutura do real é sempre coerente por estabelecer uma ilação com o âmbito em que surge a experiência que dá origem à lenda.

De facto, surgidas de contextos de raptos e de vandalização do património alheio, estas lendas procuram manter a coerência com os contextos que lhes originam e cumprem uma função pragmática circunstancial.

A mesma leitura não se pode fazer em relação à lenda sobre a floresta sagrada de Chirindzene, cita no distrito de Limpopo, Província de Gaza. Conforme refere Simbine (2013), a origem da sacralidade deste lugar resulta do facto de ter sido nele que Ngungunhane e seus companheiros fizeram uma pausa para descansar, visto que já haviam percorrido dezenas de quilómetros a pé. Após o descanso, Ngungunhane ordenou a Tcheri e Machecane que permanecessem no local, até sua volta de Maputo. Tcheri organizou o povo local que o aceitou como seu líder. Sucede, entretanto, que Ngungunhane foi preso e por isso nunca mais voltou àquele lugar. Portanto, o nome Chirindzene provém da palavra rindza, de origem Xichangana, que significa espera.

No local, existe uma crença segundo a qual o espírito de Tcheri e seus descendentes sepultados na floresta continuam vivos e velam pela comunidade local até hoje.

Segundo esta lenda, ninguém se pode fazer ao altar da floresta sagrada sem que passe por um ritual encabeçado pelos nativos devidamente autorizados para tal tarefa. Igualmente, é proibido urinar, defecar, namorar, apanhar lenha, cortar árvores, caçar animais, apascentar gado, abrir caminhos ou entrar na floresta com bebidas alcoólicas além das necessárias para a cerimónias, (Cf. Simbine, 2013, p. 16). Em caso contrário, por exemplo, o utente poderá errar pela floresta, ficando perdido e sem noção da saída do local.

Diferentemente do que ocorre com a “questão” dos guiguisekas e das cobras que assobiam, há em torno da floresta sagrada de Chirindzene uma vinculação com um discurso verdadeiro, verídico, que assinala o vestígio tangível com que está relacionado o relato.

4.     O papel humanizador e compensador das lendas urbanas

Embora estejam cercadas por todo este cenário de incitação do medo, muitas vezes lúdico, sobretudo no contexto das redes sociais, as lendas urbanas transcendem o mero boato ou fakenews, e reservam uma certa riqueza cultural, porque de uma ou de outra forma mantém a força do imaginário colectivo e têm um fim moralizador ou cívico.

O que se deve fazer não é necessariamente desacreditá-las, mas acentuar a sua função pragmática. Tal pode, muito bem, caber na abordagem de conteúdos transversais em qualquer nível de ensino, desde que estejam salvaguardados, em relação ao formando, os seguintes objectivos: (i) reflectir sobre os medos dos formandos; (ii) problematizar os seus traumas; (ii) criar mecanismos para que encarem o mundo real como ele é; (iii) garantir uma maior exploração do seu potencial psicossocial.



[1] Termo usado para descrever histórias, tradições ou informações que são fabricadas ou falsificadas, mas que são apresentadas como parte do folclore autêntico. Essas histórias são frequentemente criadas de propósito, com a intenção de enganar, divertir ou criticar certos aspectos culturais ou sociais.

[2] Fábrica de castanha de cajú, actualmente encerrada. Localizava-se na cidade de Xai-Xai e que detinha uma extensa área composta por um pomar de cajueiros que forneciam matéria-prima à fábrica.

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