domingo, 27 de outubro de 2024

Os professores de português podem contribuir muito para o desenvolvimento do nosso "sistema" literário

Há qualquer coisa que me intriga nos professores. Parece ser a classe de profissionais que mais se envolve em actividades de transformação da nossa sociedade na dimensão política e social, sobretudo. Não saberia dizer se tais acções são positivas, patrióticas, pertinazes, inglórias ou fraudulentas. O facto é que são acções vistas por todos nós. Ou mais, de uma forma ou de outra, impactam nas nossas vidas, incluindo em dimensões das quais eles próprios se queixam. Cabe, a título de exemplo, mencionar a qualidade de ensino; as dificuldades de leitura e escrita; a iliteracia digital; acções fraudulentas dentro e fora do contexto escolar.

É exactamente neste quesito que o título deste texto encontra chão fértil para ganhar vida e gerar frutos.

O facto é que nestes tempos de escassez de profissionais apaixonados por aquilo que fazem e comprometidos com o juramento que fizeram para com o estado (nosso bem maior), temos de aprender a incentivar os outros a usarem as suas energias para coisas positivas. Uma delas é a difusão da nossa produção literária a partir da primeira década deste milénio até a dos dias de hoje. Ainda temos um desafio, que, a cada ano, atinge proporções alarmantes.

Até pode ser tarefa de todos os professores, sobretudo os das ciências humanas. Mas podemos reservar este exercício aos das ciências de linguagem, mais especificamente os da disciplina de português.

Lembro-me perfeitamente da forma como desenvolvi o gosto pela leitura e, mais tarde, pela escrita. As memórias são de exemplos domésticos, mas as maiores referências são de sessões de interpretação de texto com aquela velha questão: "de que fala o texto?" Sobre o mérito ou demérito desta questão, conversaremos noutros dia. Pelo menos, desse exercício, valeu-me a possibilidade de consumir um dado texto até à exaustão, durante semanas, tanto que, até hoje, alguns deles habitam o meu imaginário. Era interessante.

Em 2023, através de uma série de entrevistas que fiz a 14 escritores que começaram a publicar a partir da primeira década deste milénio, percebi que todos eles partilham comigo esta relação com os livros através do contexto escolar, muitos deles pela já conhecida deficiente circulação do livro em Moçambique. Embora não fosse o meu interesse naquele atrevimento, deu para perceber que os seus professores de português fizeram uma revolução diante das dificuldades que existiam: se não havia condições para a circulação do livro nas condições desejáveis, eles fizeram os textos circularem.

Devo aclarar, porém, que não me refiro à circulação do livro escolar, porque esse chegava em boa parte das escolas no início do ano lectivo. Refiro-me, sim, ao livro produzido pelas editoras já tradicionais no nosso meio e pelas independentes, que a cada dia surgem. O que é bastante positivo.

Há, nisso, um mérito a dar ao então Ministério da Educação, através do Instituto Nacional para o Desenvolvimento da Educação (INDE). A selecção de textos que era feita nos permitia ter acesso a uma amostra de textos da literatura moçambicana e não só. Em um semestre era possível guardar boas referências de textos para ler em tempos de lazer, recitar em datas comemorativas, ou mais engraçado ainda: recitar para uma musa qualquer. Bons tempos aqueles!

Ademais, não nos eram estranhos os nomes de escritores, tanto que quando passamos para o ensino superior, com bibliotecas mais apetrechadas e um acrescido nível de acesso aos textos integrais desses escritores, a convivência foi plena. Havia sinais de se ter garantido a cadeia de valor do livro.

Noto, hoje, que temos desafios nesta vertente. Portanto, se os professores têm tanta energia para diversas actividades de cariz sócio-politico, julgo que possamos usar esta energia para o bem do nosso sistema literário.

Primeiro: começaríamos pelos técnicos do INDE. Mesmo que não sejam professores em exercício, poderiam fazer um esforço de ler o que se escreve de 2000 até esta parte, de forma a encontrarem uma amostra significativa para incluir nos manuais que circulam pelas escolas. Não vá isso significar a retirada de textos de autores já consagrados. Não é isso que estou a dizer. O exercício seria de incluir novas peças nesse xadrez. Temos bons prosadores e poetas que andam por aí empoeirados pelas prateleiras quando deviam habitar o imaginário dos nossos alunos nas escolas.

Segundo: os nossos professores de Português podem, a seu modo e circunstância, introduzir textos de novos autores em suas aulas, sem perigar o que vem plasmado nos programas de ensino dessas disciplinas, do ponto de vista de tratamento da gramática do e no texto. A partir desta medida individual por parte de cada professor, deixaríamos de alimentar os nossos alunos com os mesmos "elefantes brancos" que há décadas habitam os nossos manuais. Com isso, haveria alguma sensatez naquelas perguntas colocadas nos exames: "de quem é o livro X ou Z", num contexto em que as alternativas estão pejadas de ilustres desconhecidos, pelo menos no imaginário dos alunos. Para bem dizer, aquelas perguntas, na dimensão em que são colocadas, são pegadinhas de muito mau gosto.

Em síntese, além do alvoroço de festivais e feiras que nos é útil até certo ponto, estas iniciativas poderiam prestar um serviço muito melhor ao nosso "sistema". Claramente, isso não garantiria uma fila de gente para comprar o livro no dia do lançamento, mas faria com que o escritor ganhasse potenciais leitores: existe melhor ganho para um escritor além de ser lido? De que adianta ganhar prémios e não ser lido? De que nos vale vender muitos livros, sem sermos lidos, no verdadeiro sentido? Uma coisa é alguém ler o texto e endereçar uma mensagem ao escritor a dizer que gostou disto e daquilo, com palmadinhas nas costas à mistura. Outra, bem diferente, é ser lido e ter a possibilidade de mudar visões de mundo, ainda que seja na dimensão estética da coisa. De que nos valem tantas viagens que nos fazem ter aquelas reacções da pequenada: "hoje peguei um escritor", quando, no dia seguinte, a mesma pequenada é remetida a ler os mesmos textos que circulam há já 3 gerações?

São muitas perguntas para uma só resposta: usar a nossa energia para prestar um serviço muito melhor às próximas gerações.

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