terça-feira, 31 de janeiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Zaiby Manasse

quando me perguntaram o que lia para começar a escrever, respondi que não lia nada e que escutava rap”

Quando soube que era médico, ocorreu-me uma curiosidade natural: como devem parecer as anotações que resultaram na sua cada vez mais crescente obra? É legítimo que tal dúvida me tenha ocorrido: foi sempre estranha a relação dos médicos com a caligrafia.

Fiquei mais sossegado quando passei a saber que a vida o dera outro ofício com o qual dá vida às cores que, por sua vez, colorem a vida dos que adquirem os seus quadros. Não são da linha do velho Malangatana. Ele serve-se de outras técnicas. Mas sobre isso falaremos noutro dia, não é?

Condeno a minha disciplina no rumo desta conversa porque em nenhum momento pensara em questionar em que momento o homem escreve. Sim, Zaiby Manasse é médico, artista plástico, escritor e rapper. É uma voz não tão nova no cenário literário moçambicano. Publicou poesia [O Mel do Meu Passado Presente (2013); Desvaneios Ensanguentados pela Globalização (2014)] mas é a prosa [Caneta do Balcão 1 (2020/2022), primeira e segunda edição, respectivamente; O Entroncamento (2021/2022), primeira e segunda edição, respectivamente] que o coloca nos holofotes. Se ainda não o li, a culpa é do seu editor com quem tenho privado já lá vão alguns invernos. Pronto. Está feita a denúncia. Em breve terei toda a sua bibliografia, inda que já tenha esgotado os exemplares. Pois é, este é outro talento do Manasse. Pelo menos esta façanha, o editor teve a bondade de me segredar.

Tínhamos muito que conversar e seria uma conversa e tanto: o homem tem muitas gavetas. Fiz um quiz e calhei com esta gaveta que rebusca a sua relação com o rap como um garimpeiro que se impressiona com a beleza da pedra e vai perscrutando as suas origens e os elementos que a constituem.

Por isso, a viagem começa por um quê biográfico e culmina no cerne de tudo: os seus sustentáculos enquanto escritor.

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Zaiby Manasse: Comecei a escutar rap na infância, por intermédio dos meus tios na cidade de Maputo (Bairro do Jardim). Mas na altura não sabia de que se tratava e simplesmente ficava a abanar a cabeça. Então, passo escutar rap de forma consciente por volta de 2003/2004 por via de um amigo que me fez ouvir o primeiro álbum de Boss Ac, intitulado “Manda Chuva”. É a primeira lembrança que eu tenho de começar a perceber o que era hiphop/rap. Tinha lá a música “lena” de que eu tanto gostava. Depois disso, comecei a procurar um pouco mais.

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

ZM: Actualmente, muito poucos. Sinto que a produção de hiphop dos últimos tempos tem tido baixa qualidade. Então, limito-me basicamente a ouvir os mesmos que ouvia há muito tempo: Boss Ac, Valete, Sam The Kid, Azagaia, Duas Caras (até hoje tenho a música “geração tv” no celular e a escuto sempre que posso) e, à medida que ia crescendo, comecei a ouvir, também, o rap feito nos Estados Unidos: Common, por exemplo, o Busta Rhymes, o Eminem…enfim, infelizmente não tenho tido tempo para escutar rap, então vou me limitando às mesmas músicas.

Q1.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

ZM: Eu ia começar o meu top 5 pelo primeiro lugar que para mim é uma influência até hoje (e vai ser para sempre)… e mesmo para eu começar a escrever. Trata-se de Boss Ac. Acho que em termos de produção, de letras conscientes, de transmissão de sentimento nas músicas e a forma como ele descreve as coisas faz com que ele ocupe o primeiro lugar. Em segundo colocaria Mundo Segundo, dos Dealema, que, como tenho dito a um dos meus amigos, suplantou o Fuse mas como este último já tem um grande número de admiradores (risos) acabam não percebendo a grandeza do primeiro. Mas, a meu ver, o Mundo Segundo é um dos melhores rappers que eu conheço. Os esquemas rimáticos dele são incríveis. A ser possível, nesta mesma posição, colocaria o Sam The Kid porque tem uma óptima escrita. Em terceiro lugar eu ia colocar Azagaia. Muito pela ousadia que ele tem de transmitir, em suas letras, sentimentos que toda gente quer transmitir, mas acaba não conseguindo. E consegue muito bem colocar isso sem sair da linha: com rimas certas, com melodias certas e, também, quando é chamado para o campo de rap romântico, consegue fazer. Eu acho que uma das melhores músicas românticas de rap que eu tenho é de Azagaia cujo coro é feito em Xichangana. Creio que muita gente não conheça porque já a ouvi com muito pouca gente. Em quarto lugar, eu colocaria o Valete. É verdade que colocar o Valete abaixo de Azagaia parece um pouco confuso. Mas eu acho que o Azagaia é melhor que o Valete. Ele (o Valete) é um bom rapper, mas infelizmente falha por colocar as coisas certas na hora errada. Fazendo só uma comparação que justifica o facto de o Valete perder diante de Azagaia, é com relação à colocação de palavras obscenas. O Fuse, por exemplo, consegue colocar palavras obscenas e passarem, nalgum momento, não despercebidas, mas não chegam a destoar com a música, diferente do Valete que coloca palavras obscenas na música em sítios errados. É por causa disso eu acabei colocando o Valete em quarto lugar. Em quinto lugar, fica o antigo Duas Caras. Como exemplo desta minha colocação, mencionaria a música “geração tv”. É uma das melhores. Poderia, talvez, fazer um top 5 que incluísse os Estados Unidos, ou seja, a nível do mundo, mas acho que seria muito complicado porque eu comecei a ouvir e perceber o rap dos Estados Unidos muito tarde devido à barreira linguística. Portanto, fazendo menção a alguns rappers que poderiam estar numa lista minha, não só de Estados Unidos, há dois rappers espanhóis que acho que são muito bons: o Nach e o Xhelazz. Dos Estados Unidos, Kendrick Lamar e J. Cole são rappers que escrevem coisas muito boas. O J. Cole é um rapper por excelência. Está também o falecido Guru…enfim, é muita gente.

Q3.

EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?

ZM: Tenho, individualmente, duas mixtapes lançadas e em conjunto com um amigo que formamos uma dupla temos três trabalhos lançados e estamos a preparar um quarto. Mas, praticamente, nunca o fizemos para comercializar. É mesmo pelo gosto.

Q4.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

ZM: Eu comecei a escrever textos literários em 2007, depois de terminar a 12ª classe. Passei a escrever devido à influência de dois Mc’s que escutei, conforme mencionei há pouco tempo, que são: Boss Ac e Valete. Os primeiros textos que julguei que fossem poemas foram escritos por aí nos finais de 2007, mas comecei a escrever com intensidade em 2008.

Q5.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo RAP na sua produção literária como se houvesse algum contributo do rap na sua escrita?

ZM: Eu acho que quase sempre dialogo com o meu consciente. Mas muitas vezes procuro escrever como se estivesse a dialogar com o meu inconsciente. Acho que, na verdade, este diálogo acaba sendo uma forma de me defender, se calhar pelo facto de a minha linha de escrita ser muito romântica, posso assim dizer. Às vezes é difícil dissociar a minha vida daquilo que eu escrevo. Então, procuro, muitas vezes, escrever de forma inconsciente ou como se estivesse a falar de terceiros. Relativamente à influência do rap, julgo que sim…tem muita influência, tanto que me lembro que a minha primeira experiência com a Associação de Escritores Moçambicanos foi trágica tal como a segunda e a terceira. Isto porque quando me perguntaram o que lia para começar a escrever, respondi que não lia nada e que escutava rap, por isso os meus primeiros textos foram baseados no rap. Até hoje que escrevo mais prosa que poesia, consigo sentir essa influência do rap. Quanto à questão do diálogo, cheguei a sentir que tal ocorreu nos meus dois romances “A Caneta do Balcão 1” e “O Entroncamento” com a música de Duas Caras, “geração tv”.

Q6.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do RAP e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

ZM: Eu acho que, neste momento, não sei é por causa da decadência do rap feito em Moçambique, mas não sinto muita conexão entre o rap e a literatura. Posso dizer, sem muita certeza, que estão a andar de forma muito perpendicular. Primeiro, porque poucos rappers estão a ler. O que significa que, em termos de conteúdo não há nada que quem faz literatura possa buscar. Muitas vezes os rappers andam em círculos e as temáticas são as mesmas. Por isso, neste momento, não dá para traçar um paralelo entre estas duas manifestações artísticas. Dou, também, mão à palmatória porque também faço parte deste movimento. Por exemplo, eu estava a espera, nesta altura, de ouvir um rapper que abordasse a questão dos raptos que ocorrem ultimamente no país. É uma temática incrível e vasta que podia ser explorada. Por outro lado, temos a guerra em Cabo Delgado, o próprio cenário político moçambicano…enfim, é muita coisa.

Q7.

EM: Já que estamos a falar de rap, os álbuns deste género musical comportam quase sempre uma faixa bónus. Talvez para esta conversa diríamos que se trata de uma questão bónus. (risos). Disse, há bocado, que o rap, pelo menos em Moçambique, está a passar por uma espécie de decadência, como quem diz que os rappers não estão a abordar temáticas daquilo que enferma a sociedade actual que são os raptos, a guerra em Cabo Delgado, etc. Não acredita que a nossa literatura esteja, também, a passar por esta decadência?

ZM: Com certeza, está. Com muita certeza, está. Mas sinto que está aliado ao medo de perder o puco espaço que nós já ganhamos. Por isso que as pessoas acabam não fazendo. E, muitas vezes, quando o fazem ficam ali na entrelinha do “se é ou não é”. É preciso ler uma ou duas vezes para perceber de que se está a falar. Portanto, eu acho que é o medo, porque infelizmente as políticas africanas não permitem opositores e isso faz com que os escritores e os rappers acabem escrevendo sobre temas triviais.

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