“a literatura enquanto arte é um dos mecanismos mais antigos de luta contra o esquecimento” [Noa (2025, p. 15)]. Por isso, no universo de tantos anseios que temos, como nação, relativamente à figura de José Craveirinha, o que “definitivamente não queremos é o esquecimento, mas, sim, preservar e valorizar a sua memória” [op. cit. p. 13]
Com estas palavras
extraídas entre as páginas 13 e 15 do livro sobre o qual queremos conversar,
saúdo a comunidade universitária da UniSave, aos membros e convidados da
Associação Cultural Xitende e, destacavelmente, ao Professor Francisco Noa,
autor deste “José Craveirinha, esse mandarim”.
Quando tomei conhecimento do desafio de fazer a apresentação deste livro, fiquei dividido entre a honra que para mim representa este acto e a assunção da minha pequenez para tamanha responsabilidade. Provavelmente tenha feito uma má selecção vocabular decorrente desse assombro. Não fiquei dividido. Na verdade, fiquei preocupado. E não é para menos.
No exercício da
metalinguagem sobre os textos literários, quer em espaços académicos, quer no
universo jornalístico, a minha geração é herdeira de várias gerações de
professores e ensaístas formados pelo Professor Noa e outros professores da sua
geração. Pelo que há uma distância sem medida entre o meu grupo de iniciantes
nesse tentame e a sua figura.
Serve de ilustração o
facto de em 2001, nove anos após o meu nascimento, o Professor Noa ter concluído
o doutoramento em Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, na Universidade
Nova de Lisboa. É Professor Associado com sólida experiência de gestão em
instituições do ensino superior: foi Vice-Reitor do ISCTEM e Reitor da
Universidade Lúrio.
Só o que mencionei já
me tira credenciais para levar a cabo esta nobre missão. Haja vista que não me
referi à sua inestimável contribuição na crítica literária e como Professor
Convidado em Universidades Nacionais e Estrangeiras em Brasil, Portugal,
Espanha, Costa de Marfim, França, Angola e Suiça. Mais, ainda, o facto de ter
sido fundador e director da Revista Proler, um dos espaços através do qual
desenvolvi os primeiros contactos com esta coisa de escrever sobre os livros
dos outros.
Diante destes dados,
recordei-me do meu Professor de Linguística Textual, um campo do saber com o
qual recentemente passei a estabelecer um valioso contacto. Desta recente
convivência, busco argumentos para assumir que existem muitas nuances
enunciativas para que este acto não se configure numa apresentação de livro no
sentido lato. Reiteradamente, não estou credenciado.
Diante disto,
ocorreu-me, igualmente, e para a minha felicidade, que o Professor Noa é dado a
esta coisa de cartas escritas por escritores da província de Gaza. Vale
recordar que em Julho de 2003, através do Semanário Savana, recebera uma carta
endereçada por Dom Midó das Dores, na qual este último decretava a morte da
literatura moçambicana. Quanta ousadia!
Em datas não muito
distantes deste episódio, Andes Chivangue endereçava, também, uma carta. Esta
não era especificamente para o Professor Noa, mas para o meio literário em
geral. De tanta coisa dita e não dita, Chivangue queixava-se da orfandade
diante de uma Associação de Escritores Moçambicanos pouco operante para os seus
anseios. É curioso que num contacto privado e em circunstâncias diferentes, os
autores destas cartas revelaram posicionamentos diferentes sobre a forma como,
hoje, assumiam o teor dos seus textos. Um diz que era coisa da juventude e que
hoje podia fazê-lo, mas em tom diferente. Outro diz que o faria do mesmo jeito,
sem mover uma vírgula sequer, porque momento assim o exigia.
Por esta via, entro
nessa mania de cartas de gazenses para Maputo, para tecer comentários sobre “José
Craveirinha, esse mandarim”. Devo assegurar, porém, que se trata de uma carta com
teor menos polémico. Desta vez, Professor, é mesmo para agradecer através de 4
proposições:
Proposição 1: um convite à leitura e releitura do Poeta de Mafalala;
Proposição 2: Craveirinha, um génio além da poesia;
Proposição 3: a mulher como ser sublime;
Proposição 4: o espaço mítico em Craveirinha.
P1: um convite à
leitura e releitura do Poeta de Mafalala
Através deste livro,
o Professor Noa convida-nos a ler e reler Craveirinha para não nos esquecermos “de
um dos maiores criadores literários de sempre e para sempre, em Moçambique e no
Mundo”.
Na página 116, retoma
as palavras de George Steiner em “no castelo do Barba Azul: algumas notas para
a redefinição da cultura”, assumindo que o “gosto pelo estilo, pelo “trabalho”
ou “lavrado” das formas expressivas, tornou-se uma atitude de mandarins ou,
pelo menos, quase suspeita”.
Faz uso deste
conceito para, na página 38, destacar que “um desses mandarins é, seguramente,
José Craveirinha. A sua escrita é duplamente tributária, quer de uma tradição
arrecada a uma ordem linguística, tal como muitas outras de matriz bantu, em
que o poder expressivo governa grande parte dos processos comunicativos.”
O termo mandarim a
que se faz referência coincide com a designação dada à língua oficial da China,
mas não é disso que se trata. Alude, objectivamente, a uma figura
historicamente surgida no mesmo espaço geográfico referente a alguém que
pertence a uma classe de intelectuais altamente qualificados e com gosto
refinado. Pelo que José Craveirinha é esse mandarim.
Trata-se de uma
coletânea de comunicações feitas em diversos fóruns e eventos. Alguns de
natureza formal/académica e outros de cariz cultural e, em certa medida,
privado.
Surge no contexto do
centenário do poeta mor e reflecte sobre a sua vida e obra, destacando o seu
impacto histórico, cultural e existencialista no espaço pátrio dos países em
que o português é língua oficial, sobretudo, e noutros quadrantes.
Num convite reiterado
à revisitação do espólio de José Craveirinha, diante da evidente falta de
referências estáveis, sobretudo entre os mais jovens (p. 14), Noa refere, na
página 16, que o Poeta de Mafalala “deveria ser um exemplo incontornável para
as novas gerações obcecadas com a ideia do sucesso rápido e da visibilidade
mediática”.
Este apelo é
alicerçado pela disciplina que Craveirinha tinha no exercício de maturação do
texto antes de o tornar público, destacando, inclusive, que boa parte dos
textos publicados foram-lhe “arrancados a ferro”.
Retomando aos seus
pronunciamentos quando questionado, numa entrevista à Revista Proler, o que o
motivava a escrever aos 80 anos, destaca-se, neste livro, a memorável resposta:
“escrevo para não esquecer; para reter a vida; para continuar vivo”.
De facto, Craveirinha
continua vivo através de vários factores, e encontra nas páginas deste livro um
contributo para a sua perenidade. De forma doutrinária, decorrente, quiçá, de
uma larga experiência de colaboração no ensino a todos os níveis, Noa traça os
caminhos pelos quais se possa ler e reler Craveirinha, não com os olhos fixos
no passado, mas no significado que esta escrita tem no nosso tempo e no
vindouro, justamente pelo seu carácter atemporal.
P2: Craveirinha, um
génio além da poesia
O legado deste poeta
muito relevante para a escrita feita em português e não só, é descrito por Noa
como um objecto que viaja no tempo e se mantém actual e actuante, rompendo
fronteiras espaciais e, surpreendentemente, genéricas.
É sobejamente
conhecido o pendor lírico do poeta de Karingana wa Karingana, mas pouco se fala
do seu labor enquanto contista. No prefácio da segunda edição da colectânea de
contos de José Craveirinha, que consta deste livro, intitulada “Hamina e outros
contos”, Noa destaca a “mestria com que [este autor] domina o género, mesmo
quando deriva para a crónica ou para a prosa poética” p. 31.
Neste exercício,
enquanto contista, destaca-se na página 33 de “José Craveirinha, esse mandarim” o traço estético mais conhecido da sua
criação literária que se caracteriza pela “mescla, calculadamente sem
cerimónias, provocatória, emancipatória, de registos linguísticos distintos,
mas com um alcance semiótico profundo”.
O acto de leitura
deste volume não é um exercício que se possa fazer sem pausas. Em bom rigor, através
de formulações muito didácticas, o autor desta colectânea revela-se um page
turner. Contudo, o que nos é trazido, faz-me estar, constantemente, a marcar a página com o dedo
para a revisitar lugares-comuns que o Professor Noa recorrentemente questiona
nas suas intervenções públicas, uma delas feita aquando do lançamento de “Metamerismo:
uma nova escola literária”. Refiro-me à comumente partilhada ideia de que a
Literatura Africana escrita é um fiel depositário das marcas da literatura
oral.
Na página 43 deste
volume, Noa destaca “a vocação idiossincrásica da arte africana, e da
literatura em particular, de manter um estruturante diálogo com o meio
envolvente”. Ao fazer este recorte, refere-se à relação intrínseca que o texto
de Craveirinha mantém com o contexto histórico que “é, pois, um condicionalismo
que irá marcar definitivamente toda a sua criação ao longo do tempo”.
Diga-se, com justiça,
que esta ligação não é apenas histórica e contextual. O modo único de
Craveirinha dizer as coisas pelas costuras é notavelmente um trabalho
linguístico apurado e busca apanágio nas línguas bantu.
A este respeito, Noa recupera,
na página 46, o pensamento de Henri-Alexandre Junod segundo o qual “as línguas
bantu exprimem os tempos e modos dos verbos não por modificação do radical, mas
pela adjunção de elementos verbais, prefixos ou sufixos, o que permite
milhares, senão mesmo, infinitas combinações”.
É com base neste
conhecimento aprofundado que o texto de Craveirinha é repleto de mistura de
códigos e de alterações lexicais que não são meros adereços estéticos, mas um
elemento revelador de um efeito de sentido definidamente registado nas páginas
48 e 65 deste “José Craveirinha, esse mandarim”.
P3: a mulher como
ser sublime
A escrita deste poeta
é-nos aqui representada como um espaço de representação da mulher muito além da
comum coisificação a que o texto literário muitas vezes relega a figura
feminina, o que contrapõe a ideia de que “uma representação verosímil e
ajustada da mulher, só e verdadeiramente conseguida se for feita pelas próprias
mulheres, visto que elas, melhor do que ninguém, se podem pronunciar sobre a
sua real condição e experiência existencial, tanto interior como exterior” (p.
125)
A este respeito, na
página 90, Noa recorda-se da música “it's a man's man’s wolrd” de James Brown em
que se pode ouvir:
This is a man’s world
But it couldn’t be nothing,
nothing,
not one little thing without a
woman or a girl
Partilhando deste
sentido, Craveirinha assume nas entrelinhas do seu texto este desiderato de que
o mundo não seria o que é sem este ser sublime que é a mulher, pelo que nos
seus textos é marcadamente visível este registo nos textos “Mãe”, “Maria
Sende”, “Elegia a uma mulher de seis anos”, “Mamana Saquina”, “Sangue da Minha
Mãe”, “Mensagem”, “Hino de Louvor a Valentina Tereskova”, Hino às mães”, “Carta
para uma Maria João” e “Mamana Fanisse”.
P4: o espaço mítico
Se há, na obra de
Craveirinha, este diálogo com o universo que o rodeia, Noa destaca, também, o
diálogo que o poeta desenvolveu consigo próprio através da revisitação da
utopia de ser um “cidadão de uma nação que ainda não existe”, no qual é
possível ler:
E um círculo de
braços
Negros, amarelos,
castanhos e brancos
Aos vivos da quizumba
lançada ao mar
Num amplexo a
electrogéneo
Apertará o imbondeiro
sagrado de Moçambique
À música das timbilas
Violas transístores e
xipendanas
SIA-VUMA!
Conforme se destaca
neste volume, este desejo fora manifesto antes da independência e retomado dez
anos depois deste evento marcante na história de Moçambique, quando a realidade
se fez senhora de si mesma e revelou a Craveirinha que o seu sonho de “cidadão
de uma nação que ainda não existe” não passara de “uma realidade harmoniosa,
edénica e compensatória” (p. 113), tanto que dez anos depois, conforme referi,
destaca:
Como são hábeis os
relatórios das empresas estatizadas
Prosperamente
deficitárias ou por causa das secas
Ou porque veio no
jornal que choveu de mais
Ou por causa do sol
Craveirinha é
descrito, assim, como um espaço mítico que tem um feitio “colectivo,
sobrenatural, iniciático e transcendente”, sendo que a sua representação
escatológica da condição de emigrante em Magaiza Madevo encontra pleno
enquadramento nos dias de hoje em que muito se discute a condição de emigrante
do sul da América para os Estados Unidos, da África e do sul da Ásia para Europa,
em condições muitas vezes precárias, fazendo com que se replique a condição de
Magaizas Madevos pelo resto do mundo. É, por isso, este sentido mítico que
imortaliza Craveirinha e a sua escrita.
Notas de um final
indesejado
Para concluir,
permitam-me recorrer às palavras do Professor Noa, na página 77 deste volume,
ao referir que o esquecimento “acaba por ser institucionalizado visando uma
espécie de paz social”.
Deste modo, convida-nos a nunca nos esquecermos daqueles que tiveram um papel fundacional naquilo que, hoje, é objecto da nossa apropriação enquanto herdeiros desse património, pelo que, na página 79, Noa destaca: “mais do que estar somente virado para si próprio e para o local e tempo onde se encontrava, para os dramas que o atormentavam, a ele e as pessoas do seu tempo, Craveirinha soube ir muito além das suas próprias circunstâncias”. Por isso, José Craveirinha é esse mandarim!

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