domingo, 1 de fevereiro de 2015

O adultério aos olhos da comunidade changana em “Awukwele Lalovisana”

Antes de fazer este singelo comentário em torno do assunto que o título já insinua, interessa-me fazer uma resenha da estória “Awukwele Lalovisana” que em tradição literal fica “O Ciúme desnorteia”.
O facto é que:
Certa vez aconteceu que certo homem apaixonou-se por uma moça e casou-se com ela. Viveram juntos, mas a moça não era apenas deste homem. Ela tinha um amante. Tal amante não era uma pessoa, mas uma Cobra. Toda vez que a moça ia encontrar-se com a Cobra tinha que entoar um cântico para que ela saísse. Com o andar do tempo, o irmão mais novo do marido da moça (o seu cunhado) desconfiou, seguiu-a e descobriu o segredo e imediatamente contou-o ao irmão.
Este, juntamente com o irmão, quis averiguar e seguiu em direção ao esconderijo da Cobra e entoou a cântico para que a ela saísse mas esta apercebeu-se de que não tratava-se da sua querida amada. Preocupado, o homem procurou uma mulher e pediu que esta entoasse o cântico. Convencida de que se tratasse da sua amada, a Cobra saiu do esconderijo, todos procuraram fugir e esta atacou exclusivamente o homem (o seu rival). A desgraça chegara naquela família. A vida do chefe da família terminou. É o fim da estória!"[1]
A partir da estória percebe-se o retrato do adultério no seio de uma família que embora seja entre uma mulher e uma cobra, o que é empiricamente não aceitável, ilustra uma situação que se circunscreve nas vivências das pessoas em qualquer parte do mundo. Contudo, o valor moral e ideológico que a comunidade geradora da narrativa pretende transmitir só poderá ser percebido com base na função da personagem deste conto, que para este caso será a sequência de acções exercidas pelo marido da moça adúltera.
Do ponto de vista morfológico, observa-se que trata-se de uma narrativa descendente pois ao invés de um prémio, o herói/personagem principal (o marido da moça) é penalizado. E, de forma específica, trata-se de uma narrativa em cruzamento, pois tal como observado o herói (o marido da moça) se defronta com um falso herói (a Cobra) e o que daí resultou foi o castigo do primeiro. Do ponto de vista temático-antropológico, podemos enquadrar esta estória nas narrativas que apresentam pessoas e/ou animais através do comportamento dos quais se pretende abordar questões ligadas aos costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os cumpridores e castigando os transgressores.
Ora, com esta delimitação da função da personagem com base nos critérios morfológico e temático-antropológico, percebe-se que esta estória tem uma intenção moralizadora e retrata o pensamento de boa parte das comunidades culturais moçambicanas (inclusive as que mantém uma forma de vida urbanizada e até certo ponto ocidental) em torno das relações homem-mulher do ponto de vista matrimonial. No sentido em que, a mulher é tida como “propriedade” do homem, sendo que cabe a este o papel de cuida-la para que ninguém a possa tirar de si. Daí que em caso de adultério cometido pela mulher, toda “culpa” é dirigida ao homem por pressupor-se que não soube cuidar da sua “propriedade”, tal como acontece nesta estória, em que na situação final da narrativa, assistimos à penalização do herói (o marido da moça) ao invés da moça adúltera e do seu amante (a Cobra), como forma de incutir a gerações futuras, que do ponto de vista tradicional e/ou cultural da comunidade Changana e outras, cabe ao homem cuidar perfeitamente da sua “propriedade” sem que para isso tenha que esperar o alerta de outrem, e, neste caso, do irmão mais novo.
Provavelmente, a igual leitura não teria chegado caso observasse o mesmo aspecto do ponto de vista ocidental. O que, em si, coloca em causa a tendência que se tem de universalizar os modelos interpretativos ocidentais como se estes fossem total e perfeitamente aplicáveis no universo africano que a literatura oral procura reproduzir e revitalizar.
Sem mais, despeço-me com a promessa de dedicar mais linhas a este quesito a que se chama Literatura Oral.




[1] Ressalte-se o facto de este ser apenas o resumo da estória, no qual, por questões metodológicas, mantivemos intacta a situação inicial e a situação final da versão a que tivemos acesso.

Sem comentários:

Enviar um comentário