Antes de fazer este
singelo comentário em torno do assunto que o título já insinua, interessa-me
fazer uma resenha da estória “Awukwele
Lalovisana” que em tradição literal fica “O Ciúme desnorteia”.
O facto é que:
“Certa
vez aconteceu que certo homem apaixonou-se por uma moça e casou-se com ela.
Viveram juntos, mas a moça não era apenas deste homem. Ela tinha um amante. Tal
amante não era uma pessoa, mas uma Cobra. Toda vez que a moça ia encontrar-se
com a Cobra tinha que entoar um cântico para que ela saísse. Com o andar do
tempo, o irmão mais novo do marido da moça (o seu cunhado) desconfiou, seguiu-a
e descobriu o segredo e imediatamente contou-o ao irmão.
Este, juntamente com o irmão, quis averiguar e seguiu em direção ao esconderijo da Cobra e entoou a cântico para que a ela saísse mas esta apercebeu-se de que não tratava-se da sua querida amada. Preocupado, o homem procurou uma mulher e pediu que esta entoasse o cântico. Convencida de que se tratasse da sua amada, a Cobra saiu do esconderijo, todos procuraram fugir e esta atacou exclusivamente o homem (o seu rival). A desgraça chegara naquela família. A vida do chefe da família terminou. É o fim da estória!"[1]
Este, juntamente com o irmão, quis averiguar e seguiu em direção ao esconderijo da Cobra e entoou a cântico para que a ela saísse mas esta apercebeu-se de que não tratava-se da sua querida amada. Preocupado, o homem procurou uma mulher e pediu que esta entoasse o cântico. Convencida de que se tratasse da sua amada, a Cobra saiu do esconderijo, todos procuraram fugir e esta atacou exclusivamente o homem (o seu rival). A desgraça chegara naquela família. A vida do chefe da família terminou. É o fim da estória!"[1]
A partir da estória
percebe-se o retrato do adultério no seio de uma família que embora seja entre
uma mulher e uma cobra, o que é empiricamente não aceitável, ilustra uma
situação que se circunscreve nas vivências das pessoas em qualquer parte do
mundo. Contudo, o valor moral e ideológico que a comunidade geradora da
narrativa pretende transmitir só poderá ser percebido com base na função da
personagem deste conto, que para este caso será a sequência de acções exercidas
pelo marido da moça adúltera.
Do ponto de
vista morfológico, observa-se que trata-se de uma narrativa descendente pois ao
invés de um prémio, o herói/personagem principal (o marido da moça) é
penalizado. E, de forma específica, trata-se de uma narrativa em cruzamento, pois tal como observado o
herói (o marido da moça) se defronta com um falso herói (a Cobra) e o que daí
resultou foi o castigo do primeiro. Do ponto de vista temático-antropológico,
podemos enquadrar esta estória nas narrativas que apresentam pessoas e/ou animais
através do comportamento dos quais se pretende abordar questões ligadas aos
costumes da comunidade, hábitos morais ou culturais, premiando os cumpridores e
castigando os transgressores.
Ora, com esta
delimitação da função da personagem com base nos critérios morfológico e
temático-antropológico, percebe-se que esta estória tem uma intenção
moralizadora e retrata o pensamento de boa parte das comunidades culturais
moçambicanas (inclusive as que mantém uma forma de vida urbanizada e até certo
ponto ocidental) em torno das relações homem-mulher do ponto de vista
matrimonial. No sentido em que, a mulher é tida como “propriedade” do homem,
sendo que cabe a este o papel de cuida-la para que ninguém a possa tirar de si.
Daí que em caso de adultério cometido pela mulher, toda “culpa” é dirigida ao
homem por pressupor-se que não soube cuidar da sua “propriedade”, tal como
acontece nesta estória, em que na situação final da narrativa, assistimos à
penalização do herói (o marido da moça) ao invés da moça adúltera e do seu
amante (a Cobra), como forma de incutir a gerações futuras, que do ponto de
vista tradicional e/ou cultural da comunidade Changana e outras, cabe ao homem
cuidar perfeitamente da sua “propriedade” sem que para isso tenha que esperar o
alerta de outrem, e, neste caso, do irmão mais novo.
Provavelmente,
a igual leitura não teria chegado caso observasse o mesmo aspecto do ponto de
vista ocidental. O que, em si, coloca em causa a tendência que se tem de
universalizar os modelos interpretativos ocidentais como se estes fossem total
e perfeitamente aplicáveis no universo africano que a literatura oral procura
reproduzir e revitalizar.
Sem mais,
despeço-me com a promessa de dedicar mais linhas a este quesito a que se chama
Literatura Oral.
[1] Ressalte-se o facto de este ser apenas o
resumo da estória, no qual, por questões metodológicas, mantivemos intacta a
situação inicial e a situação final da versão a que tivemos acesso.
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