“nunca parei para criar um diálogo entre o rap e a minha escrita, mas quem quiser se dedicar a esta análise, pode facilmente encontrar”
Cruzamos caminhos na Casa Provincial de Cultura, em Xai-Xai, já lá passam 12 invernos. Um amigo meu serviu de elo. Quanta nostalgia! “Tempo, tempo, tempo: quero te fazer um pedido!”
Cedeu-me uma cadeira e disse “seja
bem-vindo ao comando operativo”. Nem imaginava que por estes dias esse
conceito teria outras nuances. (risos)
Entre recitais, festivais, colaborações em antologias e outras coisas,
forjou-se uma irmandade de letras e de vivências. Nestas bandas de onde vos
falo, não se consegue uma regularidade e verticalidade no labor com as letras e
cultura sem um comando à altura. Irónico, não é? Numa província com um machismo
enraizado na medula óssea, tem-se uma fêmea a fazer revolução, ladeada por um
exército de machos.
Não será preciso dizer a ninguém no curso desta vida líquida que ainda que seja apressada a leitura do fenómeno literário destes tempos, dissertar sobre ele e não mencionar o nome de Deusa d’África é descrever Paris, até a exaustão, sem mencionar a Torre Eiffel.
Mas não é sobre essa militância pelas letras que intentamos a conversa de
hoje. Aliás, nem saberia por onde começar. É tanta coisa e ainda a procissão vai
no adro.
Embora seja uma tarefa igualmente difícil, conversamos sobre arte, sem
mencionar a sua, senão uma busca por sinais que possam nortear outros
horizontes de leitura do seu labor literário que vai desde a organização de
inúmeras antologias, publicação de textos numa infinidade de periódicos
nacionais e internacionais até a publicação de “A Voz das Minhas Entranhas
(2014), “Equidade no Reino Celestial” (2014), “Ao Encontro da Vida ou da Morte”
(2014) e “Cães à Estrada e Poetas à Morgue” (2022).
Antes de avançarmos com a conversa, revelou-me que nunca escreveu nem gravou rap, mas criava freestyles de forma espontânea tal como fazia o seu irmão mais velho. Nunca te tinha ocorrido tal afecto pelo rap, não é? Entende-se. Esta é outra frente desta conversa: destruir brumas e preconceitos, abrindo, assim, novos horizontes para a leitura interdiscursiva possível de fazer nestes tempos, tal como ela própria assevera ao recordar-nos que Jean Paul Sarte refere que a produção artística de uma determinada época, seja ela na pintura, dança ou literatura é sempre influenciada pela mesma essência.
Q1.
Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar RAP?
Deusa d’África: Escuto rap desde os meus primeiros anos de vida porque o
meu irmão mais velho era, na altura, líder de um grupo musical de rap chamado Gadem
G. Ele era compositor e fazia assistência a todo elenco pertencente a Gadem G.
Apresentavam-se em concursos, conseguiam, inclusive, angariar alguns prémios
cantando rap. Recordo-me que, na altura, ele era chamado King. Os outros
rappers o consideravam King: como um dos maiores. Ele usava o pseudónimo de
Midog Pound. Então, era o King Midog Pound. Portanto, quando se tem um irmão
mais velho que é o king de um grupo de rap ou de qualquer outro grupo, a
tendência dos mais novos é sempre seguir os traços dos mais velhos. E em casa
foi a mesma coisa: todos nós tínhamos de saber fazer freestyle porque aquilo
era uma escola de hiphop. Não saber fazer um freestyle era entrar na escola,
passar o dia todo, passar as refeições dentro da escola com os professores e
você não conhecer vogais, não conhecer consoantes…enfim, não apanhar nada da
coisa. Por isso, nós fazíamos freestyle como uma forma de conviver.
Praticamente todos nós em casa: a minha irmã…até a minha mãe em momentos de
brincadeiras fazia um freestyle. Obviamente que hoje não o fazemos com
frequência uma vez que o meu irmão já abandonou o rap. Na altura era muito
comum. Até a forma de vestir, o gingado, também, era mesmo de hiphop. As
músicas que escutávamos e dançávamos eram todas ligadas ao hiphop. Não se
falava de outra coisa que não fosse Busta Rhymes, Snoop Dog e Nate Dog. Eram os
nomes sonantes lá em casa e que faziam parte de um manancial que escutávamos e
dançávamos, com a tendência de querer copiar até os passos do Snoop Dog, o
gingado de 50 Cent. Via, também, o trabalho que o meu irmão fazia de querer ser
um dos melhores rappers a seguir a linhagem do Busta Rhymes que era um dos
rappers que ele tanto admirava. Então, fazia sempre composições das suas letras
e o facto de, também, ser escritor já lhe ajudava muito porque tinha uma grande
facilidade de compor os textos para ele cantar assim como para os outros.
Fui crescendo neste ambiente, levando isto como uma forma de manifestar-me
de tal forma que mesmo entre crianças como eu, quando estivéssemos em
brincadeiras de rua, em que se dançava e cada um apresentava o que tivesse de
melhor em jeito de concurso para se encontrar um vencedor, o meu ponto forte
era sempre apresentar um freestyle porque eu sabia que sempre seria a vencedora
e todo mundo já me conhecia: sabia que com freestyle ninguém ia aguentar. Fiz o
ensino primário até o secundário com estas brincadeiras de fazer freestyle na
escola entre amigos.
Q2.
EM: Que rappers tem escutado?
DA: Tenho escutado Snoop Dog, Eminem, 50 Cent, que é um rapper que eu tanto gosto. Escuto, também, Azagaia. Gosto das músicas de Valete e escuto, também, 3H. É certo que também escuto Allen Halloween, mas por influência do meu marido que gosta muito dele. Contudo, eu sou mais da linhagem do Valete.
Q3.
EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
DA: Começo com Snoop Dog, que é um clássico sempre na moda. Em segundo lugar seria Eminem, que é também um génio na música rap, provavelmente um dos maiores rappers contemporâneos. Em terceiro lugar, 50 Cent com os seus ritmos sempre característicos, trazendo tópicos como violência, o tráfico de drogas que são temas que caracterizam o hiphop, a exibição de bens materiais e a parte da promiscuidade. Esta parte em que eles trazem esta música cheia de sensualidade que caracteriza o 50 Cent assim como outros rappers americanos. Em quarto lugar, o Valete: um grande rapper com diversos temas de intervenção social, que canta como homem, como artista, trazendo diversas abordagens em defesa do artista até, em algum momento, faz uma crítica às editoras entre outros temas de muito interesse e que escuto com muito gosto. Por fim, o Azagaia que é um dos maiores rappers que nós temos aqui em Moçambique. Um rapper que está sempre na moda, sempre comprometido com o seu povo: é a voz do povo. Azagaia é a voz do povo: está sempre preocupado em defender os seus; em defender os direitos humanos; direitos de cidadania; em defender a paz, a democracia através do rap.
Q4.
EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?
DA: Nunca escrevi nada de concreto, mas pela convivência com rappers, por ter acesso às letras escritas pelo meu irmão…criava os meus freestyles em concursos com outras crianças da minha faixa etária de forma espontânea pela forma como eu via o meu irmão, os meus primos que faziam rap. Por isso eu tinha esta capacidade de criar de forma espontânea, mas nunca cheguei a gravar nada.
Q5.
EM: Quando e como começou a escrever textos literários?
DA: Comecei a escrever textos literários em 1999, influenciada pela escrita da Noémia de Sousa, que é uma escritora que, na altura, mexia bastante com as minhas emoções de tal forma que espevitou-me a começar a escrever. Portanto, comecei a escrever a partir das leituras que eu fazia. Tinha sempre acesso a livros em casa e por isso comecei declamando textos escritos por outros escritores como o meu irmão, textos escritos por minha mãe, etc. Portanto, começar a escrever foi seguir o impulso dado pela família, tal como aconteceu com o rap, embora deva dizer que nos últimos tempos tenho outras paixões e uma delas é o Rock and roll.
Q6.
EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo RAP na sua produção literária?
DA: As temáticas abordadas pelos fazedores do rap
estabelecem o diálogo com a arte, seja qual for a vertente. Nunca parei para
criar um diálogo concreto entre o rap e a minha escrita, mas quem quiser se dedicar
a esta análise do possível diálogo existente, pode facilmente encontrar, porque
esta criatividade que o rapper tem de buscar diferentes temas de interesse
social é a mesma que conduz o escritor no seu processo criativo quando traz
estas abordagens de temáticas de interesse social em que o objectivo é criar
esta intervenção; este papel em que a voz do escritor torna-se a voz do povo.
Embora o rap traga temáticas um pouco agressivas, sempre admirei este exercício desde a origem, que segundo alguns estudiosos está associada aos negros jamaicanos. Há sempre este ímpeto de se manifestar contra a pobreza, a violência, o racismo entre outras injustiças contra as quais o rap foi usado, embora, em algum momento, fomentasse a criação de gangues onde alguns talentos foram mortos nesta disputa territorial. Contudo, alguns precursores como Afrika Bambaataa revolucionaram o género musical como uma forma de se cantar em festas, transformando o rap num espaço de alegria e de festividades.
Q7.
EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
DA: O facto de escutar rap contribui para alentar o meu espírito e toda a criação artístico-cultural precisa de um espírito que tenha sido alentado e tenha sido influenciado para alguma coisa. Então, o rap consegue alentar o espírito e isso é saudável para que possa criar, para que possa escrever.
Q8.
EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
DA: Acredito que podemos encontrar um paralelismo semântico estabelecido
pela simetria que existe nas ideias que compõem a criação artístico-cultural do
rap assim como a literária. Diz Jean-Paul Sarte que a produção artística de uma
determinada época, seja ela na pintura, dança ou literatura é sempre
influenciada pela mesma essência: a metafísica é sempre a mesma. Então, o mesmo
se pode encontrar neste paralelismo entre o rap actual e a literatura
contemporânea em Moçambique. Há temáticas com o mesmo pano de fundo por parte
dos rappers e dos escritores. Podemos trazer a questão do terrorismo, que é a
mais actual que temos no país. Temos músicas bastante interventivas de rappers
como Azagaia, que é o rapper que me vem à mente por trazer esta temática sobre
o terrorismo em busca de uma justiça e da recuperação de direitos humanos.
Temos, também, visto alguns escritores a escreverem sobre o terrorismo, trazendo
esta ideia…este compromisso de preservar a paz e a fraternidade entre os povos.
Contudo, é preciso destacar que o plano linguístico de quem faz rap e de quem produz um texto literário é executado de diferentes formas, mas a preocupação no uso de recursos estilísticos sempre se mantém, embora para um rapper pode haver a preocupação de manter a rima e um poeta não apresentar a mesma preocupação porque a poesia actual não está preocupada em manter esse registo.
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