“Somos sempre guiados pela
balança do prazer”, ele diz. Talvez estivesse nutrido de visões a meu respeito
relativamente ao sentimento que me habita neste exercício de conversar com ele
sobre o rap e a sua escrita.
Não sei com que idade terá
escrito “As Idades do Vento” (2016), um livro de poesia com o qual se estreia
nestas coisas de publicar livros. Penso nisto alguns dias depois de termos
encetado esta conversa: serão as idades do vento equiparáveis às idades da sua
convivência com o rap? [deixo isto para uma conversa futura…]
Os poetas não se cruzam
uma vez: seria mau agouro. E, cá entre nós, já estamos há quase dez anos a
viver maus agouros na Pérola em resultado de um escrutínio com resultados
esmagadores e retumbantes, como sempre. Basta!
Tem uma concepção peculiar sobre a poesia que, aliás, não é só sua. Grassa no nosso tempo. Mas, igualmente, esta é outra coisa sobre a qual nos iremos deter num desses dias numa conversa que não seja “tela a tela”. Antes que prossiga, permitam-me só um comentário: a Silicon Valley é o Egipto dos novos tempos: quantas viagens teria feito para conduzir estas conversas se não tivesse em mãos um brinquedo pensado e manufaturado em Silicon Valley ou numa das suas réplicas pelo mundo afora?
Tenho muita pena dos historiógrafos da nossa literatura. Nos próximos tempos, haverá muitas geografias por percorrer e muita coisa por escrever. Não serão poucas as páginas dedicadas a Jaime Munguambe nesse exercício. Além da publicação em periódicos nacionais e internacionais, blogues e outros meios, participou, também, na divulgação de outros génios através da Revista Literatas. É um engajamento que se tem tornado norma nos últimos tempos: queremos escrever e fazer mais alguma coisa no universo da escrita. Uma pretensão saudável, mas nem sempre compensatória para as constantes ausências noutras frentes em benefício desta única: a escrita. Com que, então, será paga esta factura? É outra pergunta que devia ter feito ao Munguambe se este exercício fosse meramente jornalístico e não se fixasse na fronteira entre três territórios soberanos que me assombram nestas conversas: arte, academia e jornalismo.
Q1.
Elísio Miambo: Quando é como começou a
escutar rap?
Jaime Mungambe: Comecei a escutar Rap no
limiar da minha adolescência, um primo rebelde, fora dos padrões musicais da
época, apresentou-me o agrupamento americano Wu-Tang Clan, fiquei entusiasmado
com a entrada triunfal de um MC a lançar os versos paranóicos numa música,
fiquei a saber, mais tarde, que se tratava do Inspectah Deck (um dos membros) e
a faixa musical era Triumph, essa música arrebatou-me os sentidos com a
instrumental, com o flow das vozes não só do Inspectah, mas dos outros MCs
lançando versos na mesma música, a melodia peculiar, embora não entendesse a língua
dos MCs as rimas eram evidentes e bem cintilantes aos meus ouvidos. A faixa
Triumph é um comboio com vários vagões rítmicos. Os vagões seriam os vários MCs
da faixa e o comboio seria a música toda "Triumph", vejo agora o meu
primo a abanar a cabeça ao som do “track”. O Rap faz isso, é belo, muda o
estado do tempo da vida, ergue o astral, quebra as regras estabelecidas pelos
moralistas presos em doutrinas…denuncia, é irónico, transcende teorias, desafia…enfim
é uma revolução. Para além de Wu-Tang chegaram-me outras músicas que
preencheram os meus dias de encantamento, falo do agrupamento Flipmode Squad,
onde está lá o Busta Rhymes a dirigir o colectivo, Lord, o Spliff e Rah Digga
dentre outros, gravam o álbum The Imperial que atravessou desertos, oceanos e
cá chega, nas nossas terras, nota-se que o Busta imperador, destaca-se e os
outros membros não ficam atrás, mostram activos e empanturrados de
criatividade, Busta isola-se e lança o seu primeiro álbum, Genesis, cada música
de Genesis era como um vírus, cada música contaminava, tinha muitas músicas bem
elaboradas para desvairar os amantes de Rap, o Nas aparece com músicas
sentimentais "Hate Me Now", na mesma linha o Fat Joe e a Jennifer
Lopez, batidas mais dançantes com a Missy Elliott e fazia Rap temperado com
R&B, Jay-Z também veio habitar a adolescente com “Young Forever”, os nossos
bairros ouvíamos essas músicas pelos "monoblocos" assim chamávamos os
aparelhos que funcionavam a cassete e disco, o Rap criou mudança na vida social
dos adolescentes, atitudes, gestos, algumas palavras inglesas começaram a
dominar e a substituir alguns termos da língua portuguesa, eram novos valores
entrando para uma sociedade que pouco sabia de si mas que precisava de
conhecer-se, não se tranca um país para outras culturas, o rap surge dos
afrodescendentes, mas essa é outro assunto, aqui em Moçambique aconteceu
algo surreal, surgiu a Banda Podre, com o Rap profundo e ousado, surgiu a G-Pro
Fam e lá estavam com solidez as marcas de afirmação de País. A música de que
mais gostei foi a que dizia no refrão "minha alma morre África" e aí
já sentíamos o poder, a liberdade e a alegria de sermos africanos. Outros que
vieram ocupar as horas da minha adolescência, foram os 360º, DRP com
músicas intensas e com nossas marcas, mais tarde conheço a Micro 2, K7s Azuis,
Track Records e outros movimentos.
Q2.
EM: Que rappers tem escutado?
JM: Escuto os rappers da lusofonia e, por vezes, americanos,
a maioria das vezes por causa do poder do português acabo escutando mais os
lusófonos: o Azagaia, Valete, Maze, El Nato, K7s Azuis, Gabriel
o Pensador. Quanto aos americanos, escuto-os por ser saudosista, já que o
primeiro contacto foi através dos Wu-tang. Não nos esqueçamos da dupla Method
Man & Redman com a música How High
um dinamite e, falando em dinamite, lembro já da grande música “The Worst”
entre Wu-tang e Onxy aquilo é um campo de trincheiras entre os magnatas, a
fruição dos versos dos MCs dos dois agrupamentos, deslizam na instrumental com
maturidade. Aqui também tivemos batalhas memoráveis, Mortal Kombat. Claro o Rap
não é monogenérico, extrapola o género masculino, considerado como dominante
pelos conservadores, temos a presença de mulheres de fibra no Rap, a activista
Iveth, Fat Lara, Gina Pepa, Dama do Bling e mais, este vírus contagiou e
contagia a todos, KRS-One que o diga quando fala da Queen Latifah com emoção e
comoção, de facto a Queen Latifah deixou o seu legado.
Q3.
EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
JM: Não tenho nenhum critério, somos sempre guiados pela
balança do prazer. É complexo seleccionar. Sabemos que não existe um
instrumento para medir o prazer quando escutamos uma música, a questão talvez
seria, quem dá mais prazer ao escutá-lo, quantos quilogramas de prazer aumentam
em nós quando colocamos uma música x, são tantos rappers, mas colocaria KRS-One
na minha balança, não por ser melhor que os restantes, todos real MCs estão em primeiro lugar, mas
deixando disso escolho o KRS-One pelos seus grandes “tracks” a voz estrondosa e
extravagante, as suas rimas e a sua reflexão. Ele vê o Rap como um espaço de paz,
amor, união e diversão. O Rap garante a liberdade de ser homem, a liberdade de
ser mulher. Coloco também o Valete, pela capacidade de captar as realidades e
expô-las nas suas músicas, a habilidade de contar histórias e rimar sem
esforço, gosto da “Melhor Rima de Sempre” uma música biográfica sobre o seu
percurso, aos detalhes, a subida ao monte da vitória, os entraves e a chegada
ao tomo, ele comunica e olha que, inicialmente, não dava as caras, mas o poder
das suas composições atraiu uma geração e uma comunidade extensa, ele é
magnânimo. Mano Azagaia é representativo, é revolucionário, combatente, deixou
o seu legado, os seus álbuns têm temas que permeiam as dimensões sociológicas,
antropológicas, politicas e culturais, estamos diante de um artista organizado,
atento ao seu contexto, por isso as suas músicas são objecto de estudo
científico no espaço académico, são uma fotografia do povo pobre vivendo na
miséria e do governo capitalista dominando as massas em busca de justiça social.
Vejo Azagaia como um partido da esquerda, uma oposição que defende o povo,
admiro-o pela coragem, torna-se melhor pelo seu trabalho musical, activismo e
defesa dos direitos humanos. Gosto do Duas Caras, houve um trabalho intenso na
GPro, “Pais da Marrabenta” é um clássico, gravita em torno de gerações e abre
espaço de diálogo, escolho também o rapper Maze por causa da profundidade das
suas letras, muito lúcido e transparente e por vezes melancólico, comove e
encanta, para equilibrar a lista evoco a Iveth, a nossa Queen Latifah,
contundente e criativa na escrita, académica e inovadora. Tem um MC não muito produtivo, L. Nato penso
nele, é honesto e constrói beleza, este espalha amor na escrita e na forma como
“repa” é um poeta do rap, sempre que escuto “uma luz” transformo-me nela. É isso
que se quer, transformar-se na coisa amada, como diz Camões “o amador se
transforma na coisa amada” há quem diga que ter muita produção significa ser
bom, há muitos rappers que tem muitas músicas mas não há densidade de prazer
quando escutámo-los, há exemplos de escritores com pouca produção e com
eminência - Luís Bernardo Honwana, Noémia de Sousa, Rui Nogar. Fecho a lista
com o Slim Nigga, pelos trabalhos “Pais do Pandza”, “Meu Diário”, “Bandido”,
essas músicas são sons que fixam memórias de um tempo específico da nossa
historicidade.
Q4.
EM: Já escreveu/gravou algum material neste gênero?
JM: Já escrevi sim e gravei duas músicas, fiz parte de um
grupo, o “Moz Family”, estava lá com os meus os colegas “Dr. Lazy, Somente P.,
a corista “Fina” e eu chamava-me “L. Brain” (risos), mas aconteceu algo
surpreendente, percebi que as minhas letras não deviam ser para Rap, pediam por
um livro, eu já sentia a luz da poesia, talvez porque na altura chegou-me um
livro “Por mares nunca dantes navegados” não sei a quem burlei na altura, só me
lembro que fui burlado pela Deusa de África, membro de um movimento literário
“chapa 100”, grupo no qual eu era membro-simpatizante, tratava-se de uma
colectânea de vários poetas, Camões, Bocage, Florbela, Manuel Lopes, António
Ramos Rosa... Havia muita sede em ler e descobrir autores no universo
literário, foi nessa altura que conheci, Eduardo White, Knopfli, Rui de
Noronha, Noémia de Sousa, Patraquim, Leite Vasconcelos, Craveirinha, Mia Couto,
Jorge Viegas, Orlando Mendes e outros.
Q5.
EM: Quando é como começou a escrever textos literários?
JM: Comecei a escrever quando dentro de mim senti o sol a
gravitar no céu do meu coração, quando descobri que as palavras não eram apenas
uma mera conexão de vogais e consoantes. Eram janelas para espreitar mundos,
bastava lê-las para estarem abertas, a poesia trouxe uma lente para olhar a
vida doutro prisma, logicamente ela já existia dentro de nós, falo de mim e dos
outros que estávamos e estamos nesse universo. Só precisava e precisa do
encontro com as obras dos grandes poetas para que o fogo ganhasse vida
internamente, e assim foi, li um poema da “Noémia de Sousa”, “Moças das Docas”
em “Sangue Negro”, dai surgiu a vontade de conhecer mais, conheci “O Pais de
Mim” de Eduardo White, fui lendo textos avulsos de Luís Carlos Patraquim,
Virgílio de Lemos, não me recordo do ano, mas estava no primeiro ano do ensino
secundário, e assim começo a ler escritores portugueses: Fernando Pessoa,
Camões, Florbela, Virgílio Ferreira, Jorge de Sena, brasileiros, Cecília
Meireles, mais tarde conheço a Clarice. Através de escritores franceses compreendo
que existe uma fracção de poetas, que há uma poesia que vai além das palavras,
que move todas as sensibilidades, o Dadaísmo de Tzara, o Surrealisno de Breton,
o radicalismo do surrealismo português. Encontramos essa poesia aqui em Moçambique
em alguns textos de Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, Eduardo White, a escrita
não se limita no acto de ler outros autores, as artes plásticas podem arrebatar
o poeta, a música pode também criar excitação, a fotografia sobretudo as
vivências do quotidiano.
Q6.
EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo rap na sua produção literária?
JM: Nunca pensei nisso, porém acredito que todas expressões
artísticas dialogam, porque os artistas estão dentro da mesma esfera, são
humanos, homens e mulheres. Formamos a sociedade, buscamos a felicidade, esse é
o diálogo universal. Mas sendo mais concreto, quando escuto o rapper português Fusível,
ele é subjectivo, hermético e imagético. Nele sinto que há um ponto de encontro
nesses termos.
Q7.
EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
JM: Acho que os rappers devem ler bastante bons autores,
isso possibilita que os MCs tenham criatividade. Quando escuto Valete percebo
que ele é um leitor exímio, tem doses poéticas, filosóficas e científicas,
trata bem a língua, cria metáforas, ironias e facilmente se reinventa. A
literatura pode ser uma grande escola para os rappers. O mano Azagaia também é
um leitor, nas suas músicas sentimos o domínio da história e da antropologia.
Q8.
EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
JM: O movimento rap, o verdadeiro rap está positivo. Porque
existem os Rappers “Pop Star” que proliferam a explosão de egos e existe o rap
de paz, amor, união e diversão como explica KRS-One.
Para que o rapper seja verdadeiro não se pode distanciar da literatura e da
realidade no qual está inserido. Isso percebe-se quando escutas músicas e não
encontras o poder da rima aliada ao bom conteúdo. É fácil o ego, “eu sou”, “eu
tenho”, “eu posso” o rap precisa de criar novos caminhos, assim como fazem;
Valete, Azagaia, Maze e Iveth. Que o rap seja mais o espelho da sensibilidade e
essência humana.
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