sábado, 18 de fevereiro de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Jaime Munguambe

"Comecei a escrever quando dentro de mim senti o sol a gravitar no céu do meu coração, quando descobri que as palavras não eram apenas uma mera conexão de vogais e consoantes."

“Somos sempre guiados pela balança do prazer”, ele diz. Talvez estivesse nutrido de visões a meu respeito relativamente ao sentimento que me habita neste exercício de conversar com ele sobre o rap e a sua escrita.

Não sei com que idade terá escrito “As Idades do Vento” (2016), um livro de poesia com o qual se estreia nestas coisas de publicar livros. Penso nisto alguns dias depois de termos encetado esta conversa: serão as idades do vento equiparáveis às idades da sua convivência com o rap? [deixo isto para uma conversa futura…]

Os poetas não se cruzam uma vez: seria mau agouro. E, cá entre nós, já estamos há quase dez anos a viver maus agouros na Pérola em resultado de um escrutínio com resultados esmagadores e retumbantes, como sempre. Basta!

Tem uma concepção peculiar sobre a poesia que, aliás, não é só sua. Grassa no nosso tempo. Mas, igualmente, esta é outra coisa sobre a qual nos iremos deter num desses dias numa conversa que não seja “tela a tela”. Antes que prossiga, permitam-me só um comentário: a Silicon Valley é o Egipto dos novos tempos: quantas viagens teria feito para conduzir estas conversas se não tivesse em mãos um brinquedo pensado e manufaturado em Silicon Valley ou numa das suas réplicas pelo mundo afora?

Tenho muita pena dos historiógrafos da nossa literatura. Nos próximos tempos, haverá muitas geografias por percorrer e muita coisa por escrever. Não serão poucas as páginas dedicadas a Jaime Munguambe nesse exercício. Além da publicação em periódicos nacionais e internacionais, blogues e outros meios, participou, também, na divulgação de outros génios através da Revista Literatas. É um engajamento que se tem tornado norma nos últimos tempos: queremos escrever e fazer mais alguma coisa no universo da escrita. Uma pretensão saudável, mas nem sempre compensatória para as constantes ausências noutras frentes em benefício desta única: a escrita. Com que, então, será paga esta factura? É outra pergunta que devia ter feito ao Munguambe se este exercício fosse meramente jornalístico e não se fixasse na fronteira entre três territórios soberanos que me assombram nestas conversas: arte, academia e jornalismo.

Q1.

Elísio Miambo: Quando é como começou a escutar rap?

Jaime Mungambe: Comecei a escutar Rap no limiar da minha adolescência, um primo rebelde, fora dos padrões musicais da época, apresentou-me o agrupamento americano Wu-Tang Clan, fiquei entusiasmado com a entrada triunfal de um MC a lançar os versos paranóicos numa música, fiquei a saber, mais tarde, que se tratava do Inspectah Deck (um dos membros) e a faixa musical era Triumph, essa música arrebatou-me os sentidos com a instrumental, com o flow das vozes não só do Inspectah, mas dos outros MCs lançando versos na mesma música, a melodia peculiar, embora não entendesse a língua dos MCs as rimas eram evidentes e bem cintilantes aos meus ouvidos. A faixa Triumph é um comboio com vários vagões rítmicos. Os vagões seriam os vários MCs da faixa e o comboio seria a música toda "Triumph", vejo agora o meu primo a abanar a cabeça ao som do “track”. O Rap faz isso, é belo, muda o estado do tempo da vida, ergue o astral, quebra as regras estabelecidas pelos moralistas presos em doutrinas…denuncia, é irónico, transcende teorias, desafia…enfim é uma revolução. Para além de Wu-Tang chegaram-me outras músicas que preencheram os meus dias de encantamento, falo do agrupamento Flipmode Squad, onde está lá o Busta Rhymes a dirigir o colectivo, Lord, o Spliff e Rah Digga dentre outros, gravam o álbum The Imperial que atravessou desertos, oceanos e cá chega, nas nossas terras, nota-se que o Busta imperador, destaca-se e os outros membros não ficam atrás, mostram activos e empanturrados de criatividade, Busta isola-se e lança o seu primeiro álbum, Genesis, cada música de Genesis era como um vírus, cada música contaminava, tinha muitas músicas bem elaboradas para desvairar os amantes de Rap, o Nas aparece com músicas sentimentais "Hate Me Now", na mesma linha o Fat Joe e a Jennifer Lopez, batidas mais dançantes com a Missy Elliott e fazia Rap temperado com R&B, Jay-Z também veio habitar a adolescente com “Young Forever”, os nossos bairros ouvíamos essas músicas pelos "monoblocos" assim chamávamos os aparelhos que funcionavam a cassete e disco, o Rap criou mudança na vida social dos adolescentes, atitudes, gestos, algumas palavras inglesas começaram a dominar e a substituir alguns termos da língua portuguesa, eram novos valores entrando para uma sociedade que pouco sabia de si mas que precisava de conhecer-se, não se tranca um país para outras culturas, o rap surge dos afrodescendentes, mas essa é outro assunto, aqui em Moçambique  aconteceu algo surreal, surgiu a Banda Podre, com o Rap profundo e ousado, surgiu a G-Pro Fam e lá estavam com solidez as marcas de afirmação de País. A música de que mais gostei foi a que dizia no refrão "minha alma morre África" e aí já sentíamos o poder, a liberdade e a alegria de sermos africanos. Outros que vieram ocupar as horas da minha adolescência, foram os 360º, DRP com músicas intensas e com nossas marcas, mais tarde conheço a Micro 2, K7s Azuis, Track Records e outros movimentos.

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

JM: Escuto os rappers da lusofonia e, por vezes, americanos, a maioria das vezes por causa do poder do português acabo escutando mais os lusófonos: o Azagaia, Valete, Maze, El Nato, K7s Azuis, Gabriel o Pensador. Quanto aos americanos, escuto-os por ser saudosista, já que o primeiro contacto foi através dos Wu-tang. Não nos esqueçamos da dupla Method Man & Redman com a música How High um dinamite e, falando em dinamite, lembro já da grande música “The Worst” entre Wu-tang e Onxy aquilo é um campo de trincheiras entre os magnatas, a fruição dos versos dos MCs dos dois agrupamentos, deslizam na instrumental com maturidade. Aqui também tivemos batalhas memoráveis, Mortal Kombat. Claro o Rap não é monogenérico, extrapola o género masculino, considerado como dominante pelos conservadores, temos a presença de mulheres de fibra no Rap, a activista Iveth, Fat Lara, Gina Pepa, Dama do Bling e mais, este vírus contagiou e contagia a todos, KRS-One que o diga quando fala da Queen Latifah com emoção e comoção, de facto a Queen Latifah deixou o seu legado.

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

JM: Não tenho nenhum critério, somos sempre guiados pela balança do prazer. É complexo seleccionar. Sabemos que não existe um instrumento para medir o prazer quando escutamos uma música, a questão talvez seria, quem dá mais prazer ao escutá-lo, quantos quilogramas de prazer aumentam em nós quando colocamos uma música x, são tantos rappers, mas colocaria KRS-One na minha balança, não por ser melhor que os restantes, todos real MCs estão em primeiro lugar, mas deixando disso escolho o KRS-One pelos seus grandes “tracks” a voz estrondosa e extravagante, as suas rimas e a sua reflexão. Ele vê o Rap como um espaço de paz, amor, união e diversão. O Rap garante a liberdade de ser homem, a liberdade de ser mulher. Coloco também o Valete, pela capacidade de captar as realidades e expô-las nas suas músicas, a habilidade de contar histórias e rimar sem esforço, gosto da “Melhor Rima de Sempre” uma música biográfica sobre o seu percurso, aos detalhes, a subida ao monte da vitória, os entraves e a chegada ao tomo, ele comunica e olha que, inicialmente, não dava as caras, mas o poder das suas composições atraiu uma geração e uma comunidade extensa, ele é magnânimo. Mano Azagaia é representativo, é revolucionário, combatente, deixou o seu legado, os seus álbuns têm temas que permeiam as dimensões sociológicas, antropológicas, politicas e culturais, estamos diante de um artista organizado, atento ao seu contexto, por isso as suas músicas são objecto de estudo científico no espaço académico, são uma fotografia do povo pobre vivendo na miséria e do governo capitalista dominando as massas em busca de justiça social. Vejo Azagaia como um partido da esquerda, uma oposição que defende o povo, admiro-o pela coragem, torna-se melhor pelo seu trabalho musical, activismo e defesa dos direitos humanos. Gosto do Duas Caras, houve um trabalho intenso na GPro, “Pais da Marrabenta” é um clássico, gravita em torno de gerações e abre espaço de diálogo, escolho também o rapper Maze por causa da profundidade das suas letras, muito lúcido e transparente e por vezes melancólico, comove e encanta, para equilibrar a lista evoco a Iveth, a nossa Queen Latifah, contundente e criativa na escrita, académica e inovadora. Tem um MC não muito produtivo, L. Nato penso nele, é honesto e constrói beleza, este espalha amor na escrita e na forma como “repa” é um poeta do rap, sempre que escuto “uma luz” transformo-me nela. É isso que se quer, transformar-se na coisa amada, como diz Camões “o amador se transforma na coisa amada” há quem diga que ter muita produção significa ser bom, há muitos rappers que tem muitas músicas mas não há densidade de prazer quando escutámo-los, há exemplos de escritores com pouca produção e com eminência - Luís Bernardo Honwana, Noémia de Sousa, Rui Nogar. Fecho a lista com o Slim Nigga, pelos trabalhos “Pais do Pandza”, “Meu Diário”, “Bandido”, essas músicas são sons que fixam memórias de um tempo específico da nossa historicidade.

Q4.

EM: Já escreveu/gravou algum material neste gênero?

JM: Já escrevi sim e gravei duas músicas, fiz parte de um grupo, o “Moz Family”, estava lá com os meus os colegas “Dr. Lazy, Somente P., a corista “Fina” e eu chamava-me “L. Brain” (risos), mas aconteceu algo surpreendente, percebi que as minhas letras não deviam ser para Rap, pediam por um livro, eu já sentia a luz da poesia, talvez porque na altura chegou-me um livro “Por mares nunca dantes navegados” não sei a quem burlei na altura, só me lembro que fui burlado pela Deusa de África, membro de um movimento literário “chapa 100”, grupo no qual eu era membro-simpatizante, tratava-se de uma colectânea de vários poetas, Camões, Bocage, Florbela, Manuel Lopes, António Ramos Rosa... Havia muita sede em ler e descobrir autores no universo literário, foi nessa altura que conheci, Eduardo White, Knopfli, Rui de Noronha, Noémia de Sousa, Patraquim, Leite Vasconcelos, Craveirinha, Mia Couto, Jorge Viegas, Orlando Mendes e outros.

Q5.

EM: Quando é como começou a escrever textos literários?

JM: Comecei a escrever quando dentro de mim senti o sol a gravitar no céu do meu coração, quando descobri que as palavras não eram apenas uma mera conexão de vogais e consoantes. Eram janelas para espreitar mundos, bastava lê-las para estarem abertas, a poesia trouxe uma lente para olhar a vida doutro prisma, logicamente ela já existia dentro de nós, falo de mim e dos outros que estávamos e estamos nesse universo. Só precisava e precisa do encontro com as obras dos grandes poetas para que o fogo ganhasse vida internamente, e assim foi, li um poema da “Noémia de Sousa”, “Moças das Docas” em “Sangue Negro”, dai surgiu a vontade de conhecer mais, conheci “O Pais de Mim” de Eduardo White, fui lendo textos avulsos de Luís Carlos Patraquim, Virgílio de Lemos, não me recordo do ano, mas estava no primeiro ano do ensino secundário, e assim começo a ler escritores portugueses: Fernando Pessoa, Camões, Florbela, Virgílio Ferreira, Jorge de Sena, brasileiros, Cecília Meireles, mais tarde conheço a Clarice. Através de escritores franceses compreendo que existe uma fracção de poetas, que há uma poesia que vai além das palavras, que move todas as sensibilidades, o Dadaísmo de Tzara, o Surrealisno de Breton, o radicalismo do surrealismo português. Encontramos essa poesia aqui em Moçambique em alguns textos de Rui Knopfli, Virgílio de Lemos, Eduardo White, a escrita não se limita no acto de ler outros autores, as artes plásticas podem arrebatar o poeta, a música pode também criar excitação, a fotografia sobretudo as vivências do quotidiano.

Q6.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo rap na sua produção literária?

JM: Nunca pensei nisso, porém acredito que todas expressões artísticas dialogam, porque os artistas estão dentro da mesma esfera, são humanos, homens e mulheres. Formamos a sociedade, buscamos a felicidade, esse é o diálogo universal. Mas sendo mais concreto, quando escuto o rapper português Fusível, ele é subjectivo, hermético e imagético. Nele sinto que há um ponto de encontro nesses termos.

Q7.

EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

JM: Acho que os rappers devem ler bastante bons autores, isso possibilita que os MCs tenham criatividade. Quando escuto Valete percebo que ele é um leitor exímio, tem doses poéticas, filosóficas e científicas, trata bem a língua, cria metáforas, ironias e facilmente se reinventa. A literatura pode ser uma grande escola para os rappers. O mano Azagaia também é um leitor, nas suas músicas sentimos o domínio da história e da antropologia.

Q8.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

JM: O movimento rap, o verdadeiro rap está positivo. Porque existem os Rappers “Pop Star” que proliferam a explosão de egos e existe o rap de paz, amor, união e diversão como explica KRS-One. Para que o rapper seja verdadeiro não se pode distanciar da literatura e da realidade no qual está inserido. Isso percebe-se quando escutas músicas e não encontras o poder da rima aliada ao bom conteúdo. É fácil o ego, “eu sou”, “eu tenho”, “eu posso” o rap precisa de criar novos caminhos, assim como fazem; Valete, Azagaia, Maze e Iveth. Que o rap seja mais o espelho da sensibilidade e essência humana.

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