É um Big Brother. Olheiro dos seus. Cada conversa é uma aprendizagem. Tive uma delas no primeiro contacto: “nunca ignore chamadas telefónicas de contactos estranhos”. Sim, isso mesmo. Não foi daqueles sermões que damos no auge de uma mania de autoridade moral que nos acomete, mas de um contexto próprio. Uma ocorrência. Uma feliz coincidência de nomes. Vamos, então, ao brevíssimo recorte desta aula dada em 2020.
“Boa tarde! Sou Emílio Cossa. Estou a falar com o Elísio Moisés?” “Não, eu sou Elísio, mas não Moisés. Miambo é o meu sobrenome.” Respondi, educadamente, porque senti a mesma aura do outro lado da linha. “Estou a coordenar actividades de uma editora recém-constituída. Por isso, pretendia interagir com o Elísio Moisés, de modo a procurarmos mecanismos de publicação de uma antologia organizada por ele. Um amigo partilhou comigo o seu contacto, julgando que se tratasse da pessoa de quem estou a procura.” “É compreensível. A pessoa que partilhou o meu contacto consigo é das minhas relações. Por saber que escrevo, deve ter associado a coincidência do nome à actividade de escrita. Contudo, já ouvi falar da pessoa de quem está a procura, e procurarei formas de ter o seu contacto e partilhar consigo.”
Pronto. Foi o fim da conversa. Horas depois, fiquei sabendo que já tinha contactado o Elísio de quem estava a procura. “Touché!” Pensei. Abriu-se, então, a possibilidade de colaboração, no quadro desta coincidência e de outras tantas. Disso resultou a edição do meu primeiro livro individual, a revisão de livros de outros autores chancelados pela Editora Kulera, a antologia “no cais do amor”, a co-autoria de dois artigos sobre Hip-Hop, um dos quais pode ser lido aqui, e outras coisas que só podem ser descritas numa viagem que comece em Xai-Xai, passe por Quissico, por Inharrime, com uma breve estadia na cidade de Maxixe, uma ligeira paragem em Gorongosa, Mocuba, Namicopo, Farhana (ya, Farhana) e alguns dias em Lichinga. Sobre este último, virão, oportunamente, algumas linhas de contestação pelo facto de não termos tido um certificado pela participação num curso intensivo de kadoda. Ambos, na companhia de outro militante das letras (o PPL), fomos burlados pelas entidades organizadoras do bendito curso. Merecemos justiça (risos).
O seu envolvimento com a escrita iniciou de forma fortuita. Era um hobby. Criara, por isso, o blog Magus DeLírio, em 2006. Segredara-me, numa dessas conversas, que ficava entusiasmado com “O Diário de um Sociólogo” e julgou interessante aventurar-se na blogosfera. No seu blog escrevia sobre vários assuntos, incluindo Literatura, Religião, Cinema e Música. “Este blog acabou por ser, algum tempo depois, a base para considerar a publicação de livros. À medida que me envolvia mais profundamente na cena literária e académica de Moçambique, especialmente no contexto do Hip Hop, vi a oportunidade de contribuir de forma significativa para as discussões e narrativas que moldam a nossa sociedade.”
É isto que a escrita faz connosco. Em princípio, trata-se de uma revolução solitária diante de uma tela ou um papel. Com o tempo, percebemos que não é mais sobre nós próprios, mas sobre os outros. “Gramei maningue daquele texto; parece que escreveste a minha história; o que escreveste mudou o meu mindset, etc.” São daquelas coisas que gostamos de ouvir, mas, no fim, nos atormentam. Muitas das vezes, escrevemos para nós mesmos, mas são os outros que sentem o impacto. É daí que surgem as publicações. Com o Cossa não foi diferente: “o desejo de partilhar as minhas ideias, experiências e pesquisas através da publicação de livros tornou-se mais forte à medida que a minha compreensão do poder da escrita crescia.”
Reagindo ao x da questão que norteia a nossa conversa sobre os ganhos obtidos no seu percurso de envolvimento com a escrita, quisera dar voltas, mas há verdades que não se calam: “é verdade que o campo da literatura nem sempre é lucrativo financeiramente, mas o que ganhei através da minha dedicação à literatura vai muito além do dinheiro.”
De facto, conversar com editores sobre este assunto é um exercício complexo. Por mais que suspeitemos da existência de ganhos materiais, acabamos sonegando as insinuações, porque é desafiante editar livros num mercado como o nosso. Já agora, temos mercado?
Um outro editor (decano) disse uma vez e replico: “melhor forma de empobrecer não há, que editar livros.” Sim e não, dir-se-ia. Não se empobrece com tanta facilidade com uma contribuição cada mais crescente no mundo literário. O trabalho que tem vindo a fazer através da Editora Kulera, uma verdadeira contracorrente nas mãos de um outsider, ficará, certamente, nos anais da nossa memória literária.
“A minha militância pela literatura e pelo livro enriqueceu a minha vida pessoal, social e profissional de várias maneiras. Pessoalmente, a escrita ajuda-me a entender melhor a mim mesmo e ao mundo ao meu redor. Socialmente, a minha participação na cena literária conecta-me com a comunidade de escritores, académicos e entusiastas do Hip-Hop. Vou, por isso, enriquecendo a minha rede de contactos e proporcionando oportunidades de aprendizagem e colaboração. Profissionalmente, a minha dedicação à literatura fortaleceu as minhas habilidades de comunicação, pesquisa e análise crítica, o que me beneficiou bastante, incluindo no meu trabalho como editor e director executivo da Editora Kulera.”
Vês? Como empobrecer assim? Pelo que diz, não é difícil inferir que a sua contribuição na consciencialização sobre questões relevantes, sobretudo relativas ao Hip-Hop, é cada vez mais crescente. O “quinto elemento” do Hip-Hop encontrou no seu “Ritmo, Alma e Poesia: histórias e estórias do hip-hop em Moçambique” (2019), uma materialização acertada no contexto moçambicano, e não só. “Em suma, embora possa não ter obtido riqueza financeira directa através da literatura, a riqueza imaterial que ela trouxe para minha vida é inestimável.”
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