Uma das coisas que será dita nos próximos tempos é a ausência, nos
periódicos da praça, de críticos literários com entusiasmo para este ofício. Há
dias falava-se desta necessidade e eu pensei cá para mim: quem, das pessoas que conheço, cairia tão bem nesse papel? Daúde Amade
foi um dos primeiros nomes. Outra coisa que será dita em tais tempos, é que
apesar desse vazio, os jovens de hoje encontraram outros canais para fazer
valer a sua voz, do ponto de vista de crítica literária. Alguém já prestou a devida
atenção para os blogues, revistas e outros meios digitais que pululam neste
país e dizem coisas interessantes, cada um a seu modo, jeito e génio? Pronto.
Falamos disso noutro dia.
Nunca privamos uma conversa “mano a mano”, mas as tecnologias operam estes feitos de as pessoas interagirem de forma tão cordial sem que se tenham visto uma única vez sequer. Mas estas coisas de crítica, ensaios, recensões ou qualquer coisa que valha ficam para outros quinhentos. Hoje o papo é rap. Só rap. Depois desta conversa, poderão surgir outras possibilidades de explorar a relação que a sua escrita tem com o rap, muito além do que ele próprio diz ao longo desta conversa.
A Kulera publicou, recentemente, um conto seu com outros dois de dois
jovens autores; “um conto por mês” é assim que chamam. Ele contribuiu com “Mazemera
Sefreu”. Algo me diz que anda um original seu na gaveta de uma das nossas
editoras. Está para breve a sua estreia. Mas, uma vez, alguém que respeito muitíssimo
disse: “tens de publicar um livro de ensaios”. Podia ter feito a réplica deste
apelo em forma de pergunta: por que não publicas ensaios? Mas não o fiz. Não hoje.
Um dia, a malta fala sobre isso.
Q1.
Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?
Daúde Amade: Entro em contacto com o rap em 2004. Nesta altura, o meu
irmão acabava de adquirir um computador e ele veio com algumas músicas de rap.
Foi assim que me encantei com o rap pela primeira vez. Lembro-me que uma das
primeiras músicas que escutei foi justamente do hiphop moçambicano que era a
remix da música “bangalala” de 3H. Com o tempo fui ouvir a música original e
por aí em diante.
Q2.
EM: Que rappers tem escutado?
DA: Os rappers que eu tenho escutado actualmente são
diversos. No que concerne aos nacionais, tenho ouvido Azagaia, Drifa, Escudo,
Fechadura, Iveth, Rage, Xitiku Ni Mbaula, Flash, etc. Mas também tenho ouvido
outros rappers internacionais, principalmente portugueses, que é o caso de Fuse
e toda Dealema…tenho ouvido Valete, Allen Halloween, Boss Ac, Malabá, DaGun,
Jimmy P e outros.
Q3.
EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique
as suas escolhas.
DA: Primeiramente, no rap nacional, colocaria Azagaia
justamente pela sua posição e a dimensão de encarnar aquilo que é o espírito do
movimento hiphop. Em Azagaia consigo encontrar aquilo que está presente nas
raízes do hiphop enquanto movimento e do rap enquanto faceta do hiphop que mais
se destacou para expor, criticar e propor alternativas de mudança no contexto social.
Em todas as músicas de Azagaia, eu consigo encontrar esta coisa dita desta
forma poética e, principalmente, de forma engajada.
Em segundo lugar, ainda nos rappers nacionais, podia colocar Drifa
justamente pela forma como ele aborda alguns assuntos. É simples e complexo a
um só tempo. As temáticas que ele aborda são do quotidiano, no entanto elas
trazem um lado meio sarcástico…um jeito irónico de dizer as coisas, mas sendo
igualmente frontal.
Em terceiro lugar neste top 5, colocaria a Iveth por ser das poucas female
Mc’s que conseguiu, em meio a esta obliteração da imagem da mulher em
Moçambique, construir, enquanto rapper, o seu posicionamento e uma linha de
intervenção. Dentro do rap, a Iveth fala de mulheres, fala de injustiça e fala
de direitos humanos. São temáticas que, para mim, são pertinentes e, melhor
ainda, quando ditas por uma mulher da forma como ela o faz: é uma poeta! Eu
encarro a Iveth como uma poeta.
Neste top 5, o quarto poderia não ser um rapper moçambicano e seria Fuse,
membro dos Dealema. Eu considero o Fuse como um dos maiores liricistas. As
líricas dele são palavras cortantes. São versos afiados. Ele tem uma concepção
além daquilo que se possa pensar do rap, daí que sempre que eu escuto o rap
dele, arrasta-me para além daquilo que é a música. Arrasta-me para uma
literatura propriamente dita com aquele valor profundo, com aquele valor
dilacerante quando se entra com profundidade naquilo que é dito…naquilo que se
escreve. O Fuse, para mim, é um dos poetas góticos, mas sombrios. Como ele costuma
dizer: é um dos poetas do vocábulo envenenado. Envenenado de profundidade, de
eloquência, desta sapiência que poucos rappers têm. A obscuridade da sua
poesia, as metáforas que ele traz, eu acho que são inigualáveis.
Por fim, para fechar o meu top 5, eu ia eleger Allen Halloween justamente
pela forma como ele traz as suas ideias, a forma como ele escrevia, embora ele
tenha abandonado o movimento, ainda oiço os seus álbuns, desde “Youth Criminal”
até ao mais recente. Continuo a ouvir as músicas justamente pela tonalidade com
que o rap ali é feito. Estávamos habituados um ritmo um pouco mais veloz nas
rimas e em Allen Halloween experienciamos outra coisa. Experienciamos a
possibilidade de pensar no rap como uma outra forma de dizer as coisas, sem que
seja lento, sem que seja tão rápido, mas um estilo engajado para expor aquilo
que é o contexto. Em Allen Halloween ainda consigo encontrar também, ainda que
de forma um pouco mais gangster, diria até um pouco mais de rua, aquilo que é a
própria identidade das raízes do movimento hiphop. Acontece, nas músicas de
Allen Halloween, uma advocacia lírica daquilo que seria a vida dos excluídos,
dos postos à parte, dos colocados à margem dos principais sistemas que norteiam
os valores. O hiphop em Allen Halloween surge como esta condição de afirmação,
de dar voz aos que foram negados voz.
Q4.
EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?
DA: Fiz rap durante 12 anos. Gravei a primeira música em
2007 e a última em 2017. Durante este intervalo eu ia gravando as músicas e
espalhava-as pelas ruas, principalmente porque filiei-me a uma linhagem do dito
rap underground em que as coisas circulam em canais de clandestinidade. Foram
poucas das minhas músicas que passaram pelas rádios, nunca me fiz a TV. Cheguei,
inclusive, a fazer parte de 2 grupos de rap. O primeiro fundado por mim em
2009, era chamado “Império dos Poetas”. A partir de 2014 passei, também, a fazer
parte de um grupo chamado “Ideologia Negra”. No Império dos Poetas eramos
apenas 2. Eu respondia por Diurno Mc, ou Lírico Terror, ou Heliocêntrico
Underground e fazia dupla com o Bala Negra. Tínhamos o nosso productor oficial
que era o Ice The Disciple. Ele é que fazia as instrumentais. No segundo grupo
de que fiz parte (Ideologia Negra) estava o Ice The Disciple, que para além de
ser o pruductor das instrumentais era rapper, estavam também o Sigla Negra e o
Poeta Drástico.
Ainda a este respeito, cabe dizer ainda hoje escrevo letras. Algumas estão
guardadas e outras tenho vendido para algumas pessoas que me pedem para o fazer.
Q5.
EM: Quando e como começou a escrever textos literários?
DA: Eu acho que o percurso dos textos literários chegou-me
um pouco tarde. Conforme disse, entrei em contacto com o rap em 2004. No
entanto, apenas em 2009 é que entro em contacto com a literatura, justamente
porque em casa não tinha manuais de literatura que eu pudesse ler, para além
dos livros didácticos.
Só quando passo para o ensino secundário é que começo a entrar neste mundo
da literatura, porque na escola, onde passei a estudar havia uma biblioteca na
qual passei a ter acesso aos livros. Lembro-me que os primeiros manuais a que
tive acesso foram, inclusive, de José Craveirinha “Karingana Wa Karingana”,
“Babalaze das Hienas” e “Cela 1”. Mas, também tardiamente, tive o privilégio de
ser oferecido alguns panfletos que eram produzidos pela AMOLP (Associação
Moçambicana de Língua Portuguesa).
Esta associação produzia alguns folhetos em que colocavam textos de
escritores moçambicanos. Foi neste contexto que tive novamente o contacto com
alguns textos de José Craveirinha, bem como a sua biografia. Tive também
contacto com textos da Noémia de Sousa. Começo a lê-la não no seu livro “Sangue
Negro”, mas nesses folhetos que a AMOLP produzia em coordenação com a AEMO.
Quem me ofereceu esses folhetos, foi o escritor Stélio Maperre a quem
conheci numa visita que fez a um dos meus irmãos na nossa casa. Ele
encontrou-me no quintal a escrever a letra de uma música intitulada “vida
suburbana” na qual narrava o contexto da vida suburbana. Ele pediu vê-la e
elogiou o que estava ali a fazer dizendo que “é agradável saber que há jovens que tendem a enveredar por esta
postura de escrever coisas conscientes, que tendem a despertar a dimensão
crítica daquilo que é a sociedade ou procura algumas melhorias ou mudanças na
sociedade, por isso tenho alguns textos que gostava de compartilhar contigo, a
partir deles podias ler e te podem ajudar a enriquecer as tuas ideias”. Foi
assim que ele me ofereceu os folhetos de José Craveirinha e de Noémia de Sousa.
Assim, comecei a escrever nos finais de 2013. De 2009 a 2012 eu ainda era
tímido para me encarar como alguém que pudesse escrever um texto literário.
Somente a partir de 2013 é que começo as escrever poemas, mas eram poemas
incrustados à dimensão do rap. Eu ainda colocava muita rima, muita musicalidade
para que aqueles poemas pudessem ser convertidos em letras de rap, caso não
resultassem em textos literários propriamente ditos.
Já em 2012/2013 eu já tinha começado a fazer algumas leituras. Para além de
José Craveirinha e da Noémia de Sousa, passei também a ler Paulina Chiziane,
Ungulani Ba Ka Kossa, passei a ler Suleiman Cassamo, não a obra toda mas o
texto “o regresso do morto” e “Laurinda, tu vais mbunhar” e tantos outros
escritores.
Embora já tivesse acrescentado esta coisa de escrever poesia e alguns
contos (tímidos), ainda continuava convicto de que não sou poeta, nem contista.
Eu ainda me identificava como rapper. Apenas em 2017/2018 é que fui assumindo
esta coisa de propriamente me afastar do rap por conta de outras questões que
fizeram com que não tivesse mais a possibilidade de entrar com constância no
estúdio e gravar. Comecei a achar o seguinte: “já que não há possibilidade de entrar no estúdio e constantemente
gravar, era bom que eu enveredasse, também, pela escrita e publicasse, quem
sabe, os meus textos, primeiramente, em alguns blogs nacionais e, depois, em
blogs brasileiros.” Neste contexto, passei, desde 2015, a publicar em
antologias tanto de poesia assim como de contos.
Q6.
EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória.
Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de
forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a
dialogar com o universo rap na sua produção literária?
DA: Posso considerar que embora tivesse sempre como fonte de
inspiração o exercício de leitura no seu todo, nalguns momentos eu me sentia
arrastado, ainda que de forma involuntária, a visitar algumas ideias de um
rapper. Mesmo a escrever um poema ou um conto, sentia-me invadido a sair daquele
universo propriamente de escrita e a devagar nas ideias que me foram
apresentadas numa música rap. Então, considero que nalgum momento, embora sejam
poucas as vezes em que isto acontecia, o rap fazia parte do meu exercício de
escrita. Inspirava-me e fazia-me revisitar as noções de construção dos meus
personagens; o meu universo poético era encrustado na música rap. Mas, também,
é de mencionar que quando estou a escrever coloco clássicos como Beethoven, Shopin…Amy
Winehouse, Nina Simone…mas há vezes em que sou arrastado, ainda no processo da
escrita, a ter de ouvir o rap.
Q7.
EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua
produção literária? Se sim, de que forma?
DA: Sim. Conforme já dizia, eu acho que, de uma ou de outra
forma, o rap acaba entrando naquilo que é a minha produção literária, de forma
explícita ou implícita. Há vezes em que algumas ideias ditas numa música,
arrastam-me à produção de uma ideia mais extensa, a pensar de uma determinada
forma ou a olhar para o universo em que vivo de uma forma mais crítica.
Por isso que considero que o rap contribui de uma ou de outra forma na
minha produção literária. Seja porque me incentiva em ideias, na forma de
pensar…seja também porque na medida em que oiço a música rap e estou a
escrever, eu acho que o rap acaba contribuindo. Se não fosse a música rap que
me estivesse a acompanhar na altura em que estou a produzir as minhas ideias,
acredito que teria um resultado diferente.
Q8.
EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura
produzida actualmente em Moçambique?
DA: É interessante esta questão que coloca. Eu penso que há
um determinado paralelo, embora não se tenha feito estudos substanciais acerca
deste paralelismo, eu considero que o rap feito em Moçambique tem as suas bases
naquilo que é a literatura e tem legado. Tem deixado alguma coisa para aquilo
que é a própria literatura.
Vejamos: há músicas de Azagaia, Iveth, Flash, Rei Bravo e tantos outros
rappers como o Drifa, que são letras produzidas necessariamente em contacto com
a literatura moçambicana. Quem ouve, por exemplo, Azagaia em Babalazi bem como
em Cubaliwa, certamente não lhe fica a dúvida de que há ali referências
trazidas da literatura moçambicana.
Em Azagaia, de forma presente, encontramos sempre referências de, por
exemplo, Paulina Chiziane, principalmente, de Craveirinha, mas também, de Luís
Bernardo Honwana. Eu lembro da música em que Azagaia participa, penso que é de
Drifa e Fechadura intitulada “Cão para o
meu quintal: eu quero um cão para o meu quintal, um cão nice”. Naquela
música, à dada altura, lembro-me de Azagaia a dizer que precisa de um cão que
não seja um vira-lata, que o outro cão que dali foi expulso era um cão tinhoso,
que ao invés de defender, colocava a casa em perigo.
Estas leituras que eu trago aqui tal como as referências que Flash traz na
música “liberdade de sonhar” em que fala de Paulina Chiziane, Mia Couto…eu acho
que estes nomes, estas referências, esta intertextualidade, este dialogismo que
às vezes ocorre no rap moçambicano para com a literatura é fundamental e é necessário,
embora não haja muitos estudos neste sentido.
Há, ainda, um aspecto a acrescentar acerca deste paralelismo entre o rap e
a literatura. Há alguns que consideram as letras de rap como poesia menor do
ponto de vista de profundidade, de eloquência, mas, lidas com atenção, as
letras dos rappers moçambicanos como é o caso de Iveth, Xitiku Ni Mbaula,
Azagaia, Flash, Drifa, Fechadura e outros, conseguimos encontrar uma
determinada posição literária que eles tomam.
Eles não constroem suas letras simplesmente como um exercício dado ao
acaso; como uma construção esporádica. São letras que ao serem lidas,
conseguimos encontrar aqueles elementos definem a literariedade de um texto.
Nalgumas vezes encontramos em Azagaia, Iveth, Flash e tantos outros rappers, figuras
de estilo, de linguagem e de retórica presentes na literatura. Portanto, eu
consigo, a partir da escuta destas músicas, encontrar indícios que me levem a
compreender que, na verdade, os rappers não estão a produzir as suas ideias
apenas se focando na dimensão social, na dimensão de quotidianidade daquilo que
são as suas experiências existenciais, mas eles também lêem a literatura;
conseguem encontrar na literatura, elementos que os inspirem a escrever. Daí
que consigo testemunhar este paralelismo presente entre o rap e a literatura
produzida em Moçambique, principalmente.
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