sexta-feira, 7 de abril de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Otildo Justino Guido

“já senti como se estivesse, de uma ou de outra forma, em diálogo com a música. Este diálogo não é só discursivo, material mas também rítmico. Uma espécie de escrever ao ritmo de alguma música, sentir a respiração dos instrumentais e poder escrever”

Gosta de Zaida Chongo. Nunca entendi, mas tenho suspeitas. Só uma é partilhável neste espaço: a metáfora com que construía as suas músicas. Autênticas pirâmides egípcias: firmes e perenes. Outras suspeitas, já partilhei com ele próprio. Quem quiser saber, pode me convidar para um talk show num café, bar ou lounge desta cidade com muitas acácias sem que seja de acácias como a outra que dista a duzentos e pouco quilómetros.

Desse gosto e de outros, evidentemente, bebeu a imagem. Tem com ela uma relação religiosa no seu labor enquanto escritor. Querendo, pode estabelecer uma escola sobre isso. Entre a vontade e o preparo, garantia a façanha.

Sim. Conheço-o já lá vai quase uma década. Mas se os anos fossem contados pelos litros de líquidos misturados com lúpulo, estaríamos a uns tantos…quase 50, para ser mais humilde. Qual é a fórmula para tecer a camaradagem? Arte? Sangue? Tempo? Latitudes? Quotidiano? Gostos? Desgostos? Não sei. O certo é que já foram várias as vivências, tanto quanto o são os litros.

Pronto. Deixemos. Não é sobre isso que aqui estamos, tela a tela. É sobre rap. Dizemos que temos uma conversa por levar sobre as perspectivas de fazer arte, mas tal fica sempre adiado, porque o rap sempre define o curso dos papos. Este foi mais um. A diferença entre este e os outros tantos é que este foi gravado e servirá de amostra.

Além destas bobagens, podíamos encetar uma conversa sóbria e longa sobre “o silêncio da pele” (2019), “o osso da água” (2020), “barca oblonga” (2022) e um belíssimo romance que tive a honra de ler e sugerir vírgulas e reticências já lá vão uns 3 anos. Mas não foi desta. Se tal acontecer, farei uma gravação sem prévio aviso.

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Otildo Justino Guido: Comecei a escutar o rap por volta de 2008. Nesta altura comecei a desenvolver uma relação muito afetuosa com o rap porque foi através de um grupo de amigos com quem me sentava em algum lugar da Vila de Inharrime e escutávamos várias músicas. A coisa foi fluindo por aí…íamos trocando referências. Aquilo que interessava a um partilhava com outro assim fazíamos uma corrente de amizade feita por este género musical. 

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

OJG: Vários tem sido os rappers que têm cruzado a minha vida nesta relação de amor com este género musical. Ao citar aqui os nomes, posso cair no erro de não me lembrar de alguns, porque cada tempo tem as suas nuances, tem os seus rappers, tem as suas artes, tem as suas vibes…

Fui descobrindo…fui conhecendo, mas há aqueles que sempre levo no coração e que são fáceis de aqui dizer, mas não todos. Por exemplo, no rap que nos chega de Moçambique, este país que é nosso, gosto muito do Flash, do Lagacy, Duas Caras, Xitiku Ni Mbaula, Azagaia, Iveth, Rage…prontos, são vários.

Depois vamos para Angola, onde conhecemos o MCK, o Kid Mc, o Fly Squad, Força Suprema (Prodígio, NGA, Masta, Monsta)…esses todos têm ocupado espaço e, portanto, tem dito boas que coisas que nos interessam muito. Depois fomos conhecendo alguns rappers de Portugal: o Sam The Kid, o Valete, Mundo Segundo, Boss Ac, Regula, Allen Halloween…

Mais tarde fomos espreitando as américas: o Nas, o Dr. Dree, Jay Z, MOP, 50 Cent, Eminem, Kendrick Lamar, Rick Ross, Snoop Dog, 2 Pac, DMX, Fat Joe, Notorious BIG…são vários rappers que não iam caber numa única linha.

Em suma é isto: escuto sempre rappers de Moçambique, de Angola, de Portugal e dos EUA. Fui esquecendo-me de alguns que agora me vêem em mente, porque são vários…contudo, a lusofonia ocupa mais espaço porque podia incluir também os brasileiros. Ainda na lista dos moçambicanos, não posso deixar de fora o Allan que é um rapper que tem sabido explorar muito bem o que ele sabe fazer de melhor que é contar histórias com palavras; que é introduzir todo o seu fôlego na criação das suas músicas. Tem lançado pouco, mas o que lança é muito bom.

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

OJG: Sinto-me incapaz de fazer um top 5 de rappers no geral. Para mim existem muitas variáveis que acho que não seria justo comparar, por exemplo, um rapper que canta em português e um rapper que canta em inglês. São muitas variáveis que precisam de uma equivalência que eu não conseguiria estabelecer. Portanto, se me permite, vou fazer um top 5 da lusofonia/dos países falantes da língua portuguesa.

Em primeiro lugar, Allen Halloween. Coloco-o nesta posição pelas seguintes razões: é um rapper com muita simplicidade. Ele conseguiu trazer aquilo que é o cerne da escrita, a representatividade do povo, a vida gangster, as ruas não só de Portugal, mas do mundo em geral…todo país se revê nisto de alguém que está à beira da cova e quer sair disto mas não consegue. O Allen Halloween, com o seu jeito gangster conseguiu trazer isto de um jeito muito simples, sem com isto banalizar a escrita. E esta é a coisa mais difícil na escrita: ser simples, mas profundo.

Na segunda posição coloco Mundo Segundo. Ele é oposto de tudo que eu falei do Allen Halloween. E é por esta razão que está a ocupar esta posição. Ele traz o incomum. O trabalho com a linguagem. Quando ele fala, por exemplo, de assuntos sociais, ele não precisa de banalizar esses assuntos. Ele busca da mais profunda forma e cultiva a palavra para poder expressar esta coisa com um certo ritmo, com um certo estilo, com uma certa harmonia que nos agrada os ouvidos.

Na terceira posição vou colocar o Kid Mc. Este angolano, esta voz incorrigível…é um rapper que, acima de tudo, confronta os assuntos do quotidiano, políticos, assuntos que afectam vários países para não dizer todos países africanos. Ele coloca dentro da música este espaço de reflexão desses assuntos com uma certa dicção, uma certa calmaria que agrada a todos e depois tem uma certa tonalidade…a sua voz vai subindo, vai descendo e ele não perde o fôlego e vai tecendo estes paradigmas sociais, políticos e económicos de vários países africanos.

Em quarto lugar temos o Flash, este moçambicano que traz uma outra forma de fazer rap do que nós estamos habituados dentro do nosso círculo de rappers. Esta é a coisa que o destaca. Temos vários rappers pelo país e, na verdade, em termos de poesia e de rap, este é o país que mais faz bem. Ao nível da lusofonia está no mesmo nível de robustez com Portugal. Portanto, o Flash sai dos eixos por onde passa toda gente e desdobra a palavra. Ele sai do comum, sai da caixa e não diz as coisas como toda gente diz, porque o rap é assim…é uma forma de intervenção. Ele vai fazendo esta intervenção de um outro jeito, de uma outra forma irreverente na própria construção. Uma outra forma misteriosa…temos de estar neste processo de busca pelo conteúdo, de busca pela compreensão do que ele diz e isto destaca-lhe dos restantes rappers que estão aqui dentro do nosso país. E, também, o flow, a dicção, a harmonia com que ele manipula a instrumental…

Na minha quinta posição vem o Sam The Kid. É um rapper fenomenal que seria um erro não coloca-lo nesta lista, porque ele, por si, é uma escola. Ele introduz fórmulas dentro da sua escrita que precisam de ser decifradas. A sua escrita é uma equação de palavras que precisa de ser calculada, compreendida e decifrada. Ele tem um jeito muito único de subir na instrumental e dizer as coisas e por aí em diante.

Se me permitires como bacela, vou deixar aqui o Valete. Ele está no mesmo nível de escrita que os outros top 5, mas não os posso colocar todos tal já havia dito: são vários. E, se eu coloco o Valete, coloco automaticamente o Azagaia. É impossível dissociar o Valete do Azagaia. Há quem diga que o Valete é o Azagaia de Moçambique e o Azagaia é o Valete de Portugal. O que o Valete busca é um rap consciente, um rap “académico”, um rap didáctico e isto também o leva a um certo patamar. O Azagaia faz esta intervenção, sobretudo, política e já vem fazendo isto mesmo quando isso custava caro aos artistas, mas ele se manteve firme com este género apesar das perseguições que teve. Ele usa este estilo musical para o bem da sociedade e, realmente, coloca o povo no poder.

Q4.

EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?

OJG: Já escrevi e já gravei várias músicas neste género musical desde quando comecei a gostar disto. Fiz parte de dois grupos musicais que faziam rap. Fui continuando a gravar mesmo quando estes grupos se desfizeram e até hoje o faço quando recebo um convite para o efeito.

Q5.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

OJG: Eu já escrevia letras de música e ficava com muitas delas em casa. Algumas delas não gravava por várias razões, uma delas era por falta de dinheiro para pagar no estúdio (risos). Por outro lado porque não podia importunar o produtor com novas músicas enquanto ele estivesse a masterizar outras. Portanto, era um momento em que me dedicava muito a escrever, a escutar e a gravar. Esta foi a minha brincadeira de infância. Outros brincavam com carrinhos, outros com futebol e eu brincava com rap. Neste processo de escrever e guardar, alguns amigos diziam que algumas letras tinham alguma coisa que pudéssemos equiparar com o poema. Não só a métrica, mas o próprio conteúdo. Daí eu percebi que podia levar aquilo para um outro sentido de trabalho, para uma outra direcção. Foi assim que entro para o universo literário. Isto ocorre por volta dos anos 2012/2013 e fui me dedicando seriamente que até hoje sou cultor deste género literário que é a poesia e vou aperfeiçoando ao longo do tempo. É inalcançável, eu sei, mas é um processo duro e que estou até agora aprendendo, falhando, acertando, pensando, apagando e por aí em diante…

Q6.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo rap na sua produção literária?

OJG: Neste processo de escrita de um texto poético, eu já senti como se estivesse, de uma ou de outra forma, em diálogo com a música. Este diálogo não é só discursivo, material mas também rítmico. Uma espécie de escrever ao ritmo de alguma música, sentir a respiração dos instrumentais e poder escrever. Mas também já senti que estivesse a dialogar com alguma matéria que os rappers vão abordando e que também me interessa abordar a mesma linha, porque neste processo de escrita, de canto e de outras artes compartilhamos o mesmo espaço e experimentamos aquilo que os outros experimentam e as artes se apoiam a esses utensílios para poderem se autoconstruírem. Por isso várias vezes já senti este diálogo constante entre o que escrevo e o rap.

Q7.

EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

OJG: É afirmativo. O facto de eu escutar rap contribui, de certa forma, na minha produção literária. Eu digo de certa forma porque o rap é uma arte e carrega algumas características próprias. O rap que eu fui escutando desde a minha génese neste processo de construção de textos literários, foi sempre o rap underground. E isto possibilitou-me olhar o mundo de um jeito interventivo. Se formos aí a ver os meus primeiros textos, pode se verificar este cunho social…esta força humana interventiva e isto fui aprendendo com o rap. E esta forma de dizer as coisas de um jeito espontâneo sem medo e respeitando também este espaço dos textos literários, sobretudo a poesia, como um lugar de vozes onde não só cabe quem o faz mas os outros que escutam, porque o rap assim como a poesia tem este poder de emprestar a fala do povo para construir uma arte e dizer “não” mas o “não” não ser do artista, mas representar o povo. Então, esta representatividade que as artes têm, sobretudo a poesia que escrevo, foi inspirada pelo hiphop.

Q8.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do RAP e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

OJG: Eu não sei se sou a pessoa certa para poder fazer esta linha de análise, este paralelismo entre o rap e a produção literária. Mas o que tenho a dizer é o seguinte: há uma produção massiva de textos literários. Mas nesta produção há aquilo que é bom e o que não é bom. Ficando aqui o tempo por julgar aquilo que é literariamente funcional e não funcional, porque é tudo uma questão de contextos.

Verifica-se, também, dois prismas: o primeiro é uma situação em que rappers vão citando obras literárias de escritores consagrados (Mia Couto, Paulina Chiziane, etc.), isto mostra uma certa aproximação entre o rap e a literatura. Mesmo que seja só por citar uma obra literária, isto mostra que há este afecto, este acarinhamento por esta obra.

O que resta saber é se há leitura ou não. Nota-se, também, casos em que alguns rappers vão escrevendo livros. Verificamos recentemente o Allen Halloween que escreveu um livro que reunia algumas letras musicais do seu percurso e verificamos rappers de outros quadrantes que foram escrevendo livros. Isto mostra que há este interesse que é de génese e que não se pode dissociar o rap da produção literária.

Estes são dois caminhos que se cruzam, que se unem e que, de certa forma, todos ganham o espaço da intervenção, porque tanto o rap assim como a literatura têm esta missão de fazer uma intervenção social e “política”. Há, contudo, alguns aspectos estéticos que são ressaltados no seu processo da construção. Repare que tenho estado em Inharrime e em Xai-Xai, onde eu vivo agora, e o meu círculo de amizades é composto por músicos e escritores. Os assuntos que são discutidos à mesa são os mesmos tanto com uns assim como com os outros, o que revela esta irmandade existente entre a literatura e a música, no seu todo, e o rap, em particular.

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