quinta-feira, 2 de março de 2023

Caminhos da interdiscursividade: a influência do rap na produção literária de Alerto Bia

"de alguma forma, acabo fazendo uso das ferramentas que encontramos no rap na minha própria produção literária"

Já tinha lido o nome em 2014 quando co-organizava uma antologia que publicou poesia feita em Gaza e Niassa. Só em 2021 associei o nome ao rosto. Foi numa feira do livro, em Inharrime. Disse que me queria ler em livro, passei-lhe um dos últimos exemplares que levava comigo. Ainda irei procurar outro fórum para saber da impressão que terá tido daquelas coisas que lá andam. Hoje o papo é outro.

Ando, há já algum tempo, com esta ideia de seguir as pegadas da interdiscursividade que se inscreve entre o rap e a literatura feita nestes dias. Incluí-lo neste experimento era inevitável. Primeiro, pela vivência em Niassa, onde se deu parte da sua amizade com as letras e, segundo, pelo seu afecto com o rap. Não foi difícil perceber isso durante a viagem que fizemos de Inharrime a Quissico. Estávamos ali com Celso Muianga, Almeida Cumbane e Emílio Cossa. Com este último deu para dialogar sobre rap que passava pelo rádio do carro. Com os dois primeiros, só a natureza à beira do asfalto virava tema de conversa e outras tantas coisas. Mas nada de rap.

Demorei perceber, mas não precisava de tanto. Dois minutos de conversa seriam necessários. Mas, cá entre nós, ter mais do que isso é um labor. O homem é de poucas palavras. Deve ser pelo facto de haver, na sua escrita, sinais claros de uma genica para haicais. Se nunca o considerou, devia pensar seriamente nisso.

Nunca o disse a ele. Talvez o pudesse dizer se esta conversa tivesse ocorrido nas imediações do rio Inharrime com um aroma de lúpulo à mistura. Esse era o plano. Mas não deu. Fiz outras viagens sentado numa esteira em Xai-Xai e com um telemóvel à mão. Não foi desta, mas em breve iremos conversar sobre os seus escritos dispersos em antologias e periódicos pelo mundo afora e, sobretudo, reunidos em “Sonhar é Ressuscitar” (2016); “Sombras Cálidas” (2017), “O Desassossego por Dentro” (2021) e “O Ardina de Sapatos Gastos” (2022).  

Q1.

Elísio Miambo: Quando e como começou a escutar rap?

Alerto Bia: Digamos que eu comece a ouvir rap em 2009, sobretudo quando vivia em Lichinga. Desenvolvo este gosto por influência de um primo meu: o T Key. Ele tinha, dentro do quintal, um cubico que servia de estúdio. Quando não fosse para fazer as suas composições, sempre tocava a música rap. Foi nesta senda que eu acabo me envolvendo com este estilo musical que tem um fazer poético muito interessante. Talvez destaque-se o facto de que neste período havia uma proliferação da música rap, pelo menos na mídia moçambicana. Houve, na mesma altura, o surgimento de muitas labels/agrupamentos musicais ligados ao rap. Por isso, ficávamos em casa a escutar estas músicas. Penso que é neste contexto que acabo desenvolvendo o gosto pelo rap e, consequentemente, pela poesia. Repare que as minhas tentativas de entrar no mundo literário cingiam-se na prosa, mas a partir do momento em que passo a lidar com rap, desvio as atenções para a poesia.

Q2.

EM: Que rappers tem escutado?

AB: Em princípio, escuto todos os rappers, mas tenho uma preferência por NGA, Drake, Sam The Kid, Azagaia, Hernani, Slim Nigga, Duas Caras, sobretudo quando fazia o duo com Sem Paus, Nicki Minaj, enfim…vou oscilando por aí.

Q3.

EM: Faça um top 5 de rappers da sua preferência e justifique as suas escolhas.

AB: Para evitar que eu caia no precipício, prefiro fazer um top 5 de rappers moçambicanos. Começo logo com Azagaia, Flash, Hernani da Silva, Slim Nigga e Dama do Bling.

Q4.

EM: Já escreveu/gravou algum material neste género?

AB: Pois é. Escrevi e cheguei mesmo a gravar no intervalo de 2009 a 2011, mas depois percebi que aquilo não ia comigo. Foi daí que comecei a me dedicar à escrita.

Q5.

EM: Quando e como começou a escrever textos literários?

AB: Eu começo a escrever, precisamente em 2012. É quando se dá o meu encontro com as letras. É claro que eu já vinha rabiscando um e outro texto nos anos em que estava no ensino secundário, mas era tudo uma espécie de decalque. Havia, por exemplo, um manual de português, 9ª classe, cheio de textos literários. Então, o que eu escrevia era uma espécie de decalque daqueles textos. Já em 2012, além de escrever músicas de rap, começo a escrever textos de natureza estritamente literária. Lembro-me que lia muito a bíblia naquela altura e o meu primeiro texto surgiu na igreja depois de ter ficado tanto tempo a ler textos esparsos de Provérbios e Salmos. Daí fui exercitando e aperfeiçoando a minha escrita.

Q6.

EM: A escrita é, por excelência, um exercício de memória. Muitas vezes o escritor dialoga com as suas vivências. Tal pode ocorrer de forma consciente ou inconsciente. Já sentiu que, em algum momento, estivesse a dialogar com o universo rap na sua produção literária?

AB: Penso que sim, embora, talvez, o faça de maneira inconsciente. Isto ocorre devido à força expressiva que o rap tem na forma como trabalha o ritmo e, também, o valor estético da linguagem. De alguma forma, acabo fazendo uso destas ferramentas que encontramos no rap na minha própria produção literária.

Q7.

EM: Acha que o facto de escutar rap contribua para a sua produção literária? Se sim, de que forma?

AB: Tal como referi há bocado, de tantas vezes que escuto rap, acabo ficando com estes elementos que dão mais vida a minha produção literária.

Q8.

EM: Que paralelos pode traçar acerca do rap e da literatura produzida actualmente em Moçambique?

AB: Esta pergunta é a mais difícil. Mas para traçar este paralelo, eu diria que a literatura assim como o rap estão em alta no sentido em que as duas artes tendem a dar voz ao povo, trazendo estas vivências do nosso dia-a-dia como forma de despertar as massas para pensarem de maneira diferente. Olhamos, também, para a literatura considerando esta produção e publicação massiva: a cada dia saem novos livros. Embora seja difícil fazer o devido acompanhamento de tudo que é produzido, julgo que seja algo positivo. Agora, o rap, em si, talvez esteja numa espécie de decadência porque há abordagens temáticas não muito ricas: há pouca reflexão. Mas isto talvez esteja ligado à nossa educação que está de pernas para o ar: é isto que se reflecte na música. O que acontece na música é que nós podemos acompanhar todos os lançamentos, o que não acontece com os livros. Então, facilmente notamos que apesar de o rap ter conhecido um progresso, há, agora, este bloqueio de repetição temática. Portanto, de uma forma genérica, tanto a literatura como o rap estão firmes, no sentido em que as duas manifestações artísticas estão empenhadas em dar voz ao povo e, para mim, este é o papel das artes.

 

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