“Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades”, Luís Vaz de Camões
Torna-se definitivamente inelutável aquela curiosidade, uma vez, expressa por Sebastião Alba que é “onde estava e como se sentia o autor quando escreveu isto?” em referência a alguma mensagem que a gente lê e bate-nos no âmago.
Sobre a obra de Pedro Pereira Lopes, a (in)exacta resposta para tal curiosidade é que o poeta, quando escreveu a poesia, se encontrava algures num mundo carregado de blue (azul), uma cor que, por excelência, inspira saudades, solidão, o inverno, o abandono e a estranha quietude.O livro, especificamente, a primeira parte dele “à beira da ilha: choviam meteoritos no mar” proporciona-nos uma viagem menos quente possível pelos lugares mais belos e menos alegres do mundo do poeta. É um livro que, mesmo lendo-se numa tarde de verão, o ambiente à volta começa a esfriar a cada verso do mundo blue.Uma
vez, Fernando Pessoa sugeriu que houvesse um distanciamento temporal entre o
poeta e o acontecimento, de tal maneira que o poeta dêsse uma expressão madura
dos seus sentimentos e pensamentos sobre o acontecido. Entretanto, Lopes parece
ter quebrado esse princípio de momento de pausa cauteloso para que uma escrita
não se transforme num veículo de pieguices, assim como deliberadamente não
respeita as imposições gramaticais do uso das letras maíusculas em nomes
próprios e em início de parágrafos ou períodos.
Ou
seja, não houve um momento propedêutico. O poeta foi obrigado a escrever ao
mesmo tempo que era acometido pelas saudades “à sua própria
língua” que deve ser de ausências ou mesmo do silêncio. Se calhar
fosse uma forma de o poeta buscar pela catarse,
enganar a própria saudade, tendo confessado, em algum momento da sua expiação
que “é preciso escrever para não adoecer”. Todavia, uma lição
existencial que se pode vislumbrar na poesia de Lopes é que a saudade é sempre
algo inexorável, imponente e repentino. Ela recusa-se a receber ordens de esquecimento
e não tem bons modos, porquanto não costuma anunciar a sua chegada. Vem
invadindo.
Esta
rebeldia e petulância das saudades é que dominam os versos da primeira parte do
livro. Este poeta mostra-nos uma estranha forma de começar e terminar um poema.
Introduz-nos um assunto e, no meio do nada, desvia-nos a lembraças da sua amada,
como se uma força incontrolável o domasse. Porque tal força incontrolável causa
distração ao poeta sobre o que estava a escrever, levando-o repetinamente a
concentrar-se na sua amada, essa força só pode ter o nome de saudades, pois é
da sua natureza criar-nos tais transições ou transcendências em momentos
inesperados. Vejamos este poema ilustrativo sobre essa questão:
os escritores são raça estranha
mas enfadonha seria a vida sem eduardo
white
sangare okapi ou álvaro taruma
disse-me um filósofo – “os poetas são mais
humanos”
(...)
refiz a nossa visita última ao mar
escalei pedregulhos e ofereci teu nome
às águas
num voto afecto náufrago
está a fartar-me a surdez da academia
o resto conto-te quando cá estiveres
apeteceu-me um sorvete – como sempre –
às segundas
o teu ficou embalsamado
com duas lambidelas de ternura.
Neste
poema, o autor começa por retratar a existência excêntrica dos poetas e as suas
funções surreais, mas que tornam a vida sustentável. Entretanto, o poema muda
de objecto repetinamente e passa a concentrar-se na ausência da sua amada como
ilustra a parte amarelada. Houve distração e concentração no poema, ou
vice-versa. O certo é que o arquê
dessa transição dum objecto para outro tem o nome de saudades.
Outro
poema com o “descuido poético” é o que segue:
hoje foi o
dia do bêbado: ministério da cultura
a classe do jat e munhuanense azar onde estrela o brilho
a tarefa do escritor exige do silêncio e –
talvez
mais
ainda da memória
o déjà vu mais sincero consentido ao homem
conheci zeferino coelho – o editor do
saramango
emoção nenhuma. Sonhos literários? Não os
tenho!
pensei em ti tantas ocasiões – igual ao
inúmero
de
vezes de revisitação esdrúxula
como põe omar khayyam – o céu é
incompleto sem um
romance divino”
hoje faz frio no manual do nosso edílio.
O
sujeito lírico fala do silêncio, a melhor companhia do génio poético e dum
encontro não comovente com o editor do Saramango. E, inopinadamente, mergulha nos
pensamentos da sua amada, duma maneira descontextualizada do espírito iniciante
do poema. Esta transição poética é algo intrínseco da saudade no sentido
empírico-existencial. Quem ama e amou vive nesse campo escorregadio de, a
qualquer momento e inesperadamente, ver-se mergulhado na memória flutuante com
o objecto do seu amor, não importando onde se encontre e o que esteja a fazer.
E, várias vezes, não é preciso a ocorrência dum sinal para despertar-nos a
memória da coisa amada. Basta viver para lembrar.
Os
poemas 6, 7, 9, 11 e 12 da primeira parte do livro são o reflexo deste poder
maníaco exercido pelas saudades. Nesta condição de maus tratos nostálgicos, o
abandono do sujeito lírico no mundo blue é vísivel através das imagens metafóricas
bem conjugadas pelo poeta que são, por exemplo, de (dois) sorvetes que derretem
“sobre a mesa/ entre a pilha de louça suja e o tecto sem vida/. Outra imagem profunda, bela e triste
vê-se na confissão do poeta que diz “rir sozinho é ruína de graça”.
A
inexorabilidade desta saudade que acomete o autor é provada no poema 15: saudade não me falta porém desfez-se com/ excessiva pena o nutriente
destas linhas que/ sempre importariam a priori a mim/ uma espécie de libertação
áfona. Nestes versos, o poeta aceita a inexorabilidade das saudades,
porém insinua que a a sua intensidade possa diminuir com escrita – ou, se
calhar, o tempo.
Entretanto,
a saudade é deveras severa que não se rende à distância e, se dependesse da
vontade do autor, ele preferiria preterir a viagem a Lilongwe por um quarto com
a sua amada: agora estou noutro buraco da minhoca/ melhor
decisão não teria – se estivesse/ no nosso quarto/ ainda impregnado de ti –
jamais pararia de escrever-te. (quantas vezes, amor, já te esqueci,/ para mais
doidamente me lembrar./ mas doidamente me lembrar de ti?)
Como
se a única forma de curar-se das mazelas do amor fosse buscar outro novo amor,
o poeta tenta provocar a sua amada, dizendo “conheci alguém como tu. Terás
tu ciúme?” Porém, no fundo, ele é abatido pela ideia de que “o amor não se desvanece fácil/ é como fé”, e por fim o
sujeito lírico escolhe parar de escrever qualquer coisa que diz respeito à sua
amada, como se isso fosse mais um meio controverso de salvar-se dessa saudade
inexorável e repentina que o acompanha em todos os lugares do seu mundo blue. É
deveras um processo árduo de cura, porém, provavelmente eficaz como prova a
segunda parte do livro “névoa seca”.
Os cerca de 20 poemas que compõe a segunda parte da obra não fazem nenhuma referência à amada nem a saudades. Eles discorrem em vários assuntos, denunciando-nos um poeta que resolveu fazer pazes com o seu passado, aliás com a própria vida, - o palco de acontecimentos - tal como se adivinha no poema 7:
(“de tal maneira a vida nos excede”)
a
vida não me roubou estrelas
nem mar ou canto dos pássaros
a
vida não me roubou cores
nem sons ou ainda o pasmo
a
vida não me roubou quase nada
deu-me dentes e um par de calças
amor
utopias e palavras também
foi
tudo lucro e nada mais
(...)
No poema supracitado, pode verificar-se o sentimento de gratidão em relação a todas as vicissitudes que acometeram o poeta bem como aceitação da vida como ela é. No fundo, o autor mostra-se consciente sobre a importância de abraçar-se o amor fati como fonte da construção e alimentação do seu sujeito poético. O testemunho desta aceitação e assunção do amor fati sob o pretexto de ser algo indispensável para construção do ser poeta é deixado pelo próprio autor nos seguintes versos:
(...)
gente
há que viveu
gente
há que amou
uns
mais outros menos
fizeram-se
poetas
(...)
_______________
*Hélder
Tsemba é escritor e crítico literário, graduado em filosofia.
e-mail:
tsembah@gmail.com
cell:
84 41 61 956/ 87 41 61 954
Pedro Pereira Lopes é um monstro a romper a madrugada. Um jovem que caminha por entre as gigabtescas ondas, e o mais justo que Deus lhe deu, é esse dom de ajudar os pequenos escribas que têm essa fome de escrever alguma coisa. Eu sou um deles. Portanto, quando pego o Mundo Blue e outras obras dele vejo uma coisa diferente de outros tantos poetas da sua idade. Podia colocar a mão no fogo, PPL é e vai ser outro Craveirinha.
ResponderEliminarRoberto de Sotela
Pedro Pereira Lopes é um monstro a romper a madrugada. Um jovem que caminha por entre as gigabtescas ondas, e o mais justo que Deus lhe deu, é esse dom de ajudar os pequenos escribas que têm essa fome de escrever alguma coisa. Eu sou um deles. Portanto, quando pego o Mundo Blue e outras obras dele vejo uma coisa diferente de outros tantos poetas da sua idade. Podia colocar a mão no fogo, PPL é e vai ser outro Craveirinha.
ResponderEliminarRoberto de Sotela
nao esta a querer endeusar de mais? deixe o puto crescer...
Eliminar...de facto. Li a construção imagética que PPL faz ou fez?) em mundo blue num texto publicado há meses neste blog. O processo encantou-me. Observo, com um misto de prazer e espanto, a leitura que Helder Tsemba faz do mote dos poemas do livro e outra conclusão não posso ter: mundo blue é.
ResponderEliminar