sexta-feira, 21 de maio de 2021

A literatura e a estranha imortalidade das obras

 

“Alguns livros são imerecidamente esquecidos, nenhum é imerecidamente lembrado”, Frederich Nietszche

“Catorze mil versos de sermões assim, quem poderia lê-los sem desmaiar de cansaço ou de sono? (…) nada faltou a Dante senão um bom gosto e discernimento na arte”, lê-se nas cartas virgilianas (1758)  escritas pelo douto jesuíta Saverio Bettinelli (apud ECCO:2007) sobre a Divina Comédia.

Por ocasião da morte do poeta Baudelaire, o escritor francês Émile Zola escreveu “dentro de cem anos Les Fleurs du mal serão apenas recordadas como uma curiosidade”. Já the London Critic (1855) chegou a afirmar que “Walt Whitman tem a mesma relação com a arte que um porco com a matemática”. Mediante tais observações desagradáveis dos críticos literários renomados daqueles tempos, quem dos consumidores de literatura ousaria protestar e prever o sucesso desses autores clássicos sem ser tido como ridículo?!

Entretanto, ao longo do tempo, o belo da arte dos autores supracitados prevaleceu sobre a crítica mordaz de quem naquele tempo afigurava-se uma autoridade da literatura.  Como se explica essa estranha imortalidade de certas obras literárias que sobrevivem ao tempo e à crítica dos maiores doutos da arte? Se calhar fosse o caso para dizer-se que o valor estético não é definitivamente relativo quanto ao tempo e espaço, como convencionalmente se pensa. Ou talvez tenhamos de aceitar o aspecto óbvio de que toda a obra de arte tem um valor intrínseco, por conseguinte, não carece de nenhuma validação do crítico literário. Aliás, o real papel dum crítico literário é lançar a luz sobre o enredo textual, descortinando a graciosidade da sua estrutura, a problemática do seu tema e as implicações do seu assunto sobre a nossa actual condição humana.

Ainda retomando o questionamento do relativismo do belo artístico, se concordarmos que a literatura é um meio de narrar nossas imaginações, sentimentos e pensamentos da maneira mais bela possível, e o belo é um valor estético que varia em cada época, como se pode responder ao facto de, por exemplo, a Odisseia e Ilíada de Homero granjear admiração desde antiguidade grega até aos nossos dias? Mostra-se, deste modo, necessária a compreensão de que a literatura seja imbuído doutros valores e interesses, além do belo na sua forma. A ideia de que a literatura seja bela, mas inútil já não é mais uma conclusão convincente num debate sobre o poder da arte. Houve tempo em que se mostrava conveniente defender-se a ideia de fazer-se arte pela arte, ou seja uma arte totalmente desinteressada, de tal maneira que ela não sucumbisse ao moralismo social, político e, ou, religioso. Porém, sujeitar-se a arte a esse sacrifício de inutilidade afigura-se-me um auto-engano de quem assim a sentencia, pois ela jamais se revelou inútil ao mundo. A arte, especificamente, a literatura, em seu modo desinteressado e ficcional, sempre sugeriu as virtudes da vida, sem precisar de dize-las ou defini-las.

O desafio que se nos impõe a todos nós como consumidores da arte é a capacidade de interpretação. Na literatura assim como na própria vida é disfuncional o adágio de que “contra factos, não há argumentos”. Esses dois mundos, um carregado de ficção e outro de realidade, têm a mesma exigência de interpretação que é um exercício em busca do sentido das coisas. E quando a literatura, em particular, assim o exige, ela torna-se o objecto do pensamento, porquanto o acto de pensar configura-se como este exercício (inexorável) em busca do sentido. Por essa razão, pode atribuir-se à literatura a função primordial de instigar a reflexão sobre a condição humana. Haverá outras funções não menos importantes nas quais se destaca a catarse, empatia, autorreconhecimento e autossuperação perante modelos regenerativos e degenerativos fornecidos pela literatura.

Diria que a função primordial da literatura que é de provocar pensamentos despoleta automaticamente funções secundárias, algumas delas já supramencionadas. A múltipla funcionalidade dos textos literários tem a ver com a própria natureza da literatura que é miscelanicamente holística.  Ou seja, a literatura configura-se como um conhecimento que aborda a vida em quase todos os seus aspectos. Diferente das ciências que tendem a compreender a vida num só ângulo, como a psicologia o faz, focando-se em reacções comportamentais, a sociologia em relações sociais, a biologia em termos da funcionalidade dos órgãos, a literatura não fragmenta, apresenta-nos a vida sob influência de vários aspectos, incluindo os principais aspectos biopsicossociais.

Sendo assim, a literatura mostra-se a ferramenta mais aprimorada e completa em relação às ciências para compreensão da vida. Entretanto, a sua anomalia benigna consiste em ser incapaz de definir ou sistematizar, mas apenas contar, descrever e insinuar. Jamais a literatura ousará definir com logicidade o que é amor, mas atrever-se-á a contar alguma coisa sobre este sentimento, tal como o faz com a justiça, a morte, a dor, a solidão, a amizade, a crise existencial, etc. E a sua glória reside especialmente quando ela fala desses elementos, sem ter de se impor como uma autoridade do saber, mas o fazendo com a beleza das palavras, a metáfora dos sentidos, a originalidade do estilo e a coerência das ideias. Ao todo, julgo serem esses elementos que tornam a obra literária agradável e memorável de ler-se. Perdendo-se a beleza das palavras, a obra literária torna-se seca ou entediante de ler, dificultando a compreensão das metáforas. Com a escassez das metáforas, a obra literária mostra-se pobre na matéria de imaginação e dessensorialização do mundo físico. E a ausência da originalidade do estilo faz da obra um elemento totalmente confundível. A falta da coerência das ideias deixa a obra literária desprovida do pensamento. E sem pensamento, não há significado. Sendo assim, todas as razões para que obra literária sobreviva ao teste do tempo tornam-se nulas.

A ideia de que a imortalidade da obra literária seja, em grande parte, garantida pelo pensamento fundamenta-se com a própria natureza do pensamentoque é intemporal. Todo e qualquer pensamento tem a tendência de tornar-seuniversal, não somente pela sua constituição lógica, mas pelo seu poder deabstração. Ou seja, todo o acto de pensar envolve abstração que é o processo que permite a mente descurar-se da realidade sensível e passar a lidar com as formas e conceitos. E, ao contrário das impressões que variam de acordo com o tempo e espaço, as formas e conceitos mantêm-se inalteráveis de tal modo que, por exemplo, se alguém nos fala da árvore ou montanha, não precisamos de lembrar-nos da primeira ou última árvore ou montanha que a gente viu no mundo, mas chegamos ao entendimento do enunciado, pois dispomos do conceito e forma destes dois elementos independentemente do tempo e espaço em que estivermos.

Deste modo, a glória da literatura sobre o tempo deve-se basicamente ao pensamento fundido nela de maneira inobjectiva e sob os condimentos estéticos. Normalmente, o pensamento dentro das obras literárias revela-se-nos através das famosas lições morais que desde os tempos do ensino primário éramos obrigados a retirar dos contos e poemas. Obviamente que haja mais lições que se podem tirar dum texto literário, mas a ideia duma lição moral configura-se como aquele valor que se aprende duma experiência para toda a vida. Por conseguinte, um livro com uma lição moral tem asas para desprender-se duma experiência limitada pelo tempo e espaço rumo ao universo metafísico. Tratando-se da literatura, é preciso que essa lição moral (pensamento) tenha sido estabelecido num exemplo indutivo (poema, romance, conto, etc) adornado de elementos estéticos inéditos. Sem os elementos estéticos, corre-se o risco de, no lugar da literatura, ter-se um livro deformado de filosofia, um ensaio científico ou uma auto-ajuda totalmente desprazerosos (ou pouco prazerosos), mas úteis de lerem-se. Se calhar, seja essa a grande diferença existente entre a maioria dos best-sellers e a maioria dos escritores talentosos, porém menos populares. Ou seja, quem lê Paulo Coelho ou José Rodrigues dos Santos, best-sellers lusófonos, pode notar que nas suas obras o nível de erudição supera o domínio estético da língua, enquanto escritores como Ernest Hemingway, Ungulani Baka Khosa, Mia Couto ou Machado de Assis procuram manter equilíbrio entre a estética da palavra e a erudição, um exercício tão imperfeito em que o domínio estético da palavra se mostra normalmente avantajado em relação à erudição.

Entretanto, quando o domínio estético da língua suplanta a erudição, a obra literária tem menos chances de sobreviver ao seu tempo, pelo facto de não ter nenhum valor a transmitir a novas gerações, senão experiências corriqueiras que, embora contadas de maneira requintada, não agregam nenhuma lição ao desenvolvimento da consciência humana. E quando é a erudição a suplantar a dimensão estética da obra, ela tem relativamente mais chances de sobreviver ao teste do tempo, pois apesar de ser uma obra austera na beleza da palavra, ela torna-se útil à humanidade pelo conhecimento e reflexão envolvidos na sua composição. Todavia, tal obra jamais vai ser considerada uma referência literária, mesmo que seja enquadrada na estante da literatura, pela razão de ter-se descuidado consideravelmente dos elementos estéticos que causam fruição na leitura. Deste modo, para imortalidade duma obra literária, em stricto sensu, é necessário um meio-termo ou equilíbrio ainda que não perfeito entre o pensamento e a estética da palavra. Quando um se sobrepõe gravemente sobre o outro, ou viola-se a imortalidade da obra ou dissolve-se a literariedade da mesma. Para uma intemporal obra literária urge sempre a união entre o útil e o agradável, parafraseando o poeta romano Horácio.


2 comentários:

  1. "A literatura configura-se como um conhecimento que aborda a vida em quase todos os seus aspectos. Diferente das ciências que tendem a compreender a vida num só ângulo, como a psicologia o faz, focando-se em reacções comportamentais, a sociologia em relações sociais, a biologia em termos da funcionalidade dos órgãos, a literatura não fragmenta, apresenta-nos a vida sob influência de vários aspectos, incluindo os principais aspectos biopsicossociais.
    A literatura mostra-se a ferramenta mais aprimorada e completa em relação às ciências para compreensão da vida."

    Esta última frase e curiosa, similar com a de um texto que escrevi, mas diferente na compreensão ou interpretação deve ser muito cuidada.
    Quando a enunciamos devemos nos situar nos primórdios da filosofia até ao período da sua fragmentação em muitas ciências. Diógenes, um filosofo cínico, teria dito algo sobre as dificuldades de acesso ao conhecimento, que o maior desafio é "a grandeza da questão e a brevidade da vida".
    A não foi por acaso que a filosofia se fragmentou, reservou para si actualmente o trabalho da síntese do conhecimento de outras áreas de conhecimento e, por isso, deve haver sempre o cuidado de nunca pensar que a literatura substituiria ou superaria as outras formas de conhecimento. Se ela for humilde deve reconhecer que tem uma abordagem diferente da que é a usada por outras vias, assim defendo no meu texto.
    São várias as vias de acesso ao mundo e nenhuma consegue ter autoridade acima da outras:
    a) a via cientifica
    b) a via Filosófica ou Metafisica
    c) o Senso comum
    d) a via Mística ou contemplativa de que pode fazer parte a arte.

    A todas estas vias o que é pedido é humildade e o compromisso na compreensão da realidade e não com ideologias, pois qualquer outro procedimento contrário a esse há de ser forma corrompida de conhecimento e nunca será caminho de compreensão da realidade.
    Então a literatura não é o caminho, mas um dos caminhos...

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  2. Caro leitor, compreendo o teu interesse de nivelar vários conhecimentos, sem um sobrepor-se noutro. Entretanto, isso se afigura-me um apelo moral que, não obstante cauteloso, causa obstrução sobre a real superioridade de certos conhecimentos em relação a outros sobre determinado objecto. Se concordarmos que para compreensão dum dado objecto, não é possível o fazer apenas estudando-lhe uma parte do seu todo. Mas requer o estudo das partes para compreender o todo, e estudar-se o todo para compreender-se cada parte. E a literatura em comparação com as ciências, é holística, pois através dum conto, dá-nos a compreensão (quase) integral da vida sob várias influências que incluem relações familiares, religiosas, político-econômicas, sociais e intrapessoais. Já há está acepção de que o homem não é um somente um ser biológico, social, psicológico, ou político. Mas sim uma miscelânea desses todos conceitos. E a literatura não é descriminatória como o são as ciências. Ela revela-nos um ser biopsicosocial em todos os seus géneros. E é nisto que consiste a sua irrefutável glória sobre outras ciências que tendem a explicar as ações do homem por via duma e única perspectiva. A síntese é mais produtiva que análise. As ciências tendem a ser reducionista na compreensão do homem e a literatura, filosofia, poesia, teatro, filme, música e outras artes São transversais.

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