Faço este backshift não só para estabelecer uma âncora satisfatória como já o disse mas para justificar o que me faz abordar "casa 30" de K7’s Azuis (um grupo moçambicano de fazedores de Rap/Hip-Hop) e "30 anos" de Gasso (músico moçambicano) como textos no sentido mais lato possível. Ambos registos musicais foram tornados públicos no primeiro semestre de 2018. Atentemos, portanto, que a sequencialidade com que as músicas foram lançadas desinteressa-me, valendo-me só o facto de saber que foram produzidas em volta do mesmo contexto sócio-cultural.
Sobre a intertextualidade (diálogo que se inscreve nestas músicas na qualidade de textos) vale referir que este conceito foi cunhado por Julia Kristeva (1974: 64), sob o pressuposto de que “todo texto se constrói como mosaico de citações, todo texto é absorção e transformação de um outro texto.” Surge, portanto, que estas constatações levam-nos a crer na impossibilidade de existência de uma obra artística num contexto alheio à intertextualidade. E, mesmo que exista tal possibilidade, resulta que a mesma seria incompreensível durante o “convívio” com diferentes leitores porque “só se apreende o sentido e a estrutura de uma obra literária se a relacionamos com seus arquétipos que são abstraídos de textos anteriores que constituem a constante” Jenny (1979) apud BARBOSA (2005: 27)
Este diálogo entre textos pode manifestar-se de diferentes formas, contudo, neste texto importa-nos tecer brevíssimas considerações a respeito da paráfrase e da paródia que além de serem muito comuns, são basilares para os nossos comentários acerca de “casa 30” de K7’s Azuis e “30 anos” de Gasso.
Indo ao encontro do que nos revela GOUVÊA (2007: 60), diríamos que:
a paródia inova, inaugura um novo paradigma e constrói a evolução de um discurso. Na paródia, há uma tomada de consciência crítica, de algo que foi recalcado e posteriormente emergiu. Uma nova maneira de ler o convencional.
em contrapartida, a paráfrase é um discurso em repouso em que alguém abre mão de sua voz para deixar a voz do outro falar. Não há conflito, pois não há oposição. Funciona como se fosse um espelho que reflecte o discurso do outro.
Portanto, em composições rítmicas diferentes, “ casa 30” ao ritmo de um bom Hip-Hop e “30 anos” em Kizomba, ambas modalizam um debate cada vez mais frequente nos fóruns de conversa sobretudo juvenis em que a tônica da conversa cinge-se na idade ideal para que o/a jovem "saia da casa da velha", mas essa é outra conversa que este texto não pretende dar vazão.
O que me chama atenção nas músicas de K7’s Azuis e Gasso é a forma como este debate é tomado com nuances diferentes embora com um ponto de intersecção: a casa 30 é um deadline para tomar um rumo próprio. Quanto a este aspecto, a relação dialógica que se inscreve é de um paralelismo indiscutível. Ora, K7’s Azuis esgotam-se na abordagem fazendo do seu texto um sermão do qual ninguém escapa pelos desafios que se lhe impõem enquanto jovem na “casa 30” ou os que a sociedade institui como sendo próprios dessa idade: desde a casa própria, a profissão, o matrimónio até a procriação, assuntos pelos quais os rappers gravitam e dramatizam em função da criatividade lírica que o Hip-Hop permite e, para conferir um toque mais melódico, aparece o corro na voz de Hot Blaze, e sentencia:
“tens a tua vida mano/ para o ano fazes 30 anos/ ainda estás em casa do papá/ ainda és filhinho da mamã/ cada passarinho faz o seu ninho/ mana até já tens o teu filho/ mano sai daí, sai daí e vai fazer sua vida”.
Na sua globalidade, o teor deste texto traça um deadline inflexível e generalista que independe das especificidades decorrentes da (ir) regularidade da vida que é já uma premissa que todos conhecemos de cor.
É neste quesito que a antítese de Gasso se inscreve para nos reenviar a uma janela reflexiva na qual a generalização cede ante o relato de uma especificidade em que o "insucesso" perante o deadline instituído tem um motivo tão impensável quanto peculiar: o amor ou ausência dele, o que fez com que o eu-lírico tivesse a sua vida errante pelos corredores da indefinição.
Diz-nos o autor no seu refrão: “depois dos 30 / é que a minha vida/ ganhou sentido/ por ter te conhecido”. Ao que se depreende que antes disso a vida do sujeito lírico resvalava pelos túneis da marginalidade e indiferença para com a vida e os seus ditames típicos de alguém que esteja na “casa 30”. O amor surge, para Gasso, como o mote para um “renascimento” mas em boa análise podemos inferir que podia ter sido uma outra razão.
Portanto, quando se diz, nas reflexões sobre a arte sobretudo literária, que esta é concebida para gerar beleza e encantamento, vale acrescer que, na estética da sua recepção, é preciso prestar atenção à simplicidade com que os fenómenos da arte se manifestam porque além de ser peculiar, passa-nos, por vezes, de forma bastante despercebida. E, quanto a estes textos, cabe realçar que é preciso olhar para as especificidades na concepção dos nossos deadlines e também reter que entre "casa 30" de K7’s de Azuis e "30 anos" de Gasso inscreve-se uma das mais belas manifestações da intertextualidade.
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