sexta-feira, 5 de junho de 2020

UMA LEITURA INTERACTIVA DE “A BÍBLIA DOS PRETOS” DE DOM MIDÓ DAS DORES


1. Pressupostos da leitura interactiva
O modelo interactivo de leitura defendido por Bakhtin parte do pressuposto de que “tudo possui um significado, ele compreende as características formais ou repetidas da linguagem como significados não formais, não repetíveis e sempre reais.” De tal forma que se pode dizer que, para Bakhtin, no exercício da linguagem, tudo tem uma intenção, desde a escolha ao uso, da causa ao efeito que pode advir desse exercício.
No entanto, esta visão de que toda selecção lexical de num texto, visa a transmissão de uma determinada “mensagem” tanto do ponto de vista temático, assim como ideológico, encontra acolhimento devido quando se está perante uma obra literária em razão da sua (bastante comum) natureza simbólica na codificação dos significantes.
Em contrapartida, verifica-se que o exercício da leitura de enunciados literários, por vezes, caracteriza-se pelo simples acto de descodificação dos signos linguísticos que o texto comporta sem que se faça uma interligação com os aspectos extralinguísticos que possam estabelecer alguma relação com o conteúdo do texto e que sejam do conhecimento do sujeito leitor. O acto de ler assumido nestes termos simplistas compreende, segundo NASCIMENTO (2011: 2), o modelo de leitura ascendente, “processo no qual a compreensão do texto se pauta nas informações contidas no próprio texto, facto este que contribui muito pouco para a formação do leitor, visto que o impede de relacionar seus conhecimentos prévios com o texto em questão.”
Outro modelo de leitura que se tem adoptado, e que também tem um carácter monológico que não é salutar para a leitura de enunciados literários na sua generalidade, é o modelo descendente de leitura, que contrariamente ao anterior, possibilita que o leitor relacione o texto a conhecimentos adquiridos anteriormente. (ibdem)
Embora este modelo considere a natureza subjectiva do leitor, ele “peca” por “centrar o processo de leitura nas opiniões que leitor emite sobre o que leu, apagando o carácter polissémico, ideológico e dialógico dos signos linguísticos que compõem o texto.” (AMARAL: 2010 apud NASCIMENTO: 2011: 2)
O que significa que, neste modelo de leitura, o leitor constrói, logo nos primeiros contactos com o texto, hipóteses sobre o texto, que podem ir sendo aceites ou refutadas à medida que a leitura se estende.
É, portanto, com a junção destes dois modelos de leitura que se pode obter o conceito de leitura interactiva defendida por Bakhtin.
O que se pretende com esta teoria é que haja uma leitura que preconize a acção interactiva entre o leitor, o autor e o texto, espelhando, para tal, as contribuições de Bakhtin no estudo da linguagem e o seu carácter dialógico, considerando que a compreensão para este autor é um processo que envolve o sujeito e as experiências sócio-históricas e culturais que o constituem.
A leitura em uma perspectiva interacionista compreende um fluxo de informação, pois o acto de ler envolve tanto a informação impressa na página quanto a informação que o leitor traz para o texto. Tendo, também, em conta que o texto segundo Kristeva (2005) apud CEZERILO (2010: 40) “é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se.”

2. O enredo de “A Bíblia dos Pretos”
Lendo “A Bíblia dos Pretos” percebe-se que o autor, Dom Midó das Dores, procura trazer uma personagem com um carácter cómico e uma postura decerto curiosa que está no limiar da loucura e da lucidez e que se auto-intitula de Cristo Negro. Toda a trama do romance gira em torno desta personagem que à semelhança de Jesus Cristo procura libertar o seu povo da “masmorra” em que encontra por causa do colonialismo europeu e das ideias por si inculcadas em todo o africano.
O romance inicia com um facto inédito: “O Cristo Negro sacou o sexo das calças e urinou em frente da multidão que saia da igreja”. Perante este gesto obsceno, a multidão toma o Cristo Negro como louco e ridículo, o que certamente vai contrastar com o discurso por si proferido em torno da religião e do facto de as pessoas frequentarem os templos. Num discurso questionador que permeia a verdade e a especulação, Cristo Negro vai procurando engendrar o despertar dos crentes da igreja Assembleia de Deus ali presentes no seguintes termos: “Porquê rezais, ó irmãos negros? (…) Pensais que há Deus para ouvir as vossas preces de fome? O Céu é mais longe do que julgais para África. Despertai ó almas dormentes e cegas”.
Esta indefinida disposição comportamental do Cristo Negro, ora tendente para a loucura, através de atitudes não muito comuns, ora para a lucidez /intelectualidade através da forma como concebe a religião, por exemplo, e o conhecimento teológico, facilmente espalha-se pela cidade e todos passam a saber da existência de um “louco que acredita ser Cristo”. Por outro lado, o facto de ser detentor de conhecimentos significativos no que respeita a conhecimentos que à religião dizem respeito faz com que desperte a curiosidade de parte da sociedade e admiração de apenas três personagens: um senhor com quem coincidentemente se encontrou e comungou as ideias no que respeita à religião e à própria religiosidade do negro, um menino que se simpatizara com as ideias do Cristo Negro (o narrador) e a Maria Madalena, uma mulher tida como prostituta com quem Cristo Negro teve um relacionamento íntimo.
Cristo Negro na sua “investida” como salvador do povo negro chega, ao longo do romance, ao ponto de não só vilipendiar a religião europeia como o faz também com as de cariz africana que, na sua óptica, também aprisionam o povo negro. É esta assunção que o faz interromper uma cerimónia tradicional designada Kuparula expulsando os curandeiros que, para si são demónios: “Se não quereis sair daqui e acabar com essa vossa brincadeira de mau gosto, eu queimo-vos à vós e aos vossos espíritos idiotas. Atiro fogo sobre as vossas cabeças cheias de impurezas bestiais”. (pag. 81)
É este o culminar da actividade libertadora do Cristo Negro que fez com que a população do bairro Patrice Lomumba, onde residia, deixasse de trata-lo como simplesmente louco e passasse a tê-lo como feiticeiro e, como tal, deveria ser expulso do bairro, tendo este passado a residir na cidade da Beira onde acabara perdendo a vida e ressuscitou no terceiro dia:
“Eis-me aqui de carne e osso. Venci a morte mas a minha missão ainda não terminou. Falta vencer a miséria do meu rebanho humilhado pela vida mundana.” (pag. 106)

3. Leitura(s) de "A Bíblia dos Pretos"
Esta narrativa configura-se como um romance de personagem pelo facto de ter a sua trama a girar em torno do universo do Cristo Negro e das suas acções. Estruturalmente, trata-se duma narrativa simples que, embora seja um romance, o seu foco narrativo não se expande para domínios mais amplos, salvo alguns recortes filosóficos, históricos, teológicos e mitológicos que conferem a verosimilhança ao próprio enredo. Do ponto de vista temporal, as acções datam aproximadamente dos anos 90, se formos a imaginar o contexto social com base no inventário de informações que nos são trazidas. É com a mesma base de informações que podemos perceber que as acções decorrem na cidade de Xai-Xai (no bairro Patrice Lomumba, sobretudo) e na cidade da Beira, onde morrera e ressuscitara o Cristo Negro.
Numa linguagem simples e na voz de um menino (Midó das Dores) que é narrador participante de "A bíblia dos pretos" desenrola uma trama que aborda questões religiosas, tanto do ponto de vista europeu, herdadas pelos negros, assim com as religiões africanas representadas pelo curandeirismo, que continua sendo praticado até aos dias de hoje. Esta linguagem simples enriquece-se duma sofisticação no detalhe e nas referências ligadas a vários domínios científicos e pelos questionamentos e insinuações que, ora surpreendem ora desafiam a imaginação humana devido à dessacralização do divino e/ou tradicional.
Esta dessacralização bipolarizada, que não é muito comum, ocorre, nesta obra, através a negação de um único Deus do branco, conforme nota-se:
“tudo vos escraviza de segunda a sábado e reservais ainda o domingo para serdes humilhados pelo próprio Deus supremo do universo. (…) Deus não nos protege nós os negros" (pag. 9)
Assim, fica clara a aversão de Cristo Negro em relação a figura de Deus propalada pelo europeu a ponto de questionar, inclusive, a ideia de que existe um único Deus Senhor do Universo, ao deixar claro que não se prevê nenhuma possibilidade de comunicação entre Deus e os negros:
“sois todos pobres, desgraçados. Viveis mendigando a um Deus que não percebe as línguas bantu". (pag. 12)
Deste modo, perante este cenário de negação de um Deus Universal conforme propalam as religiões, vive-se um cenário de inexistência de um Deus, o que seria inédito na história da humanidade, tanto que em "A Bíblia dos Pretos" está antevista a existência de um Deus dos Negros, dessacralizando ainda mais as religiões ocidentais que propalam a existência de apenas um Deus, conforme podemos observar:
"ó grande Deus dos Negros, meu Pai, Pai do futuro. Ergo esta voz vil e reles a ver se pode merecer a atenção dos teus ouvidos dourados, Pai amado (…) estão sofrendo os pretos de todo o mundo humilhados e colonizados pela injustiça dos homens de graça divina e pelos seus deuses, só tu pai Deus Negro, Novo Deus dos homens, só tu podes dar glória à África". (pag. 31)
Dentre acusações, suspeitas, exageros e sensos comuns elabora-se o discurso questionador de “A Bíblia dos Pretos” partindo de alguns pressupostos factuais que eram decerto usuais no discurso colonial por via da produção textual artística ou mesmo oficial.
"olha isto, senhor padre, Adão e Eva, eram brancos. Como é que explica que este casal tenha gerado pessoas negras?" (pag. 44)
Repara-se aqui que o discurso que fora usado como forma de opressão, volta a ser retomado com o intento de questioná-lo e procurar fundamentos para sustentar novas propostas de visão do mundo relativamente à africanidade.
É com este rol de informações acima que se dessacraliza a religião do ponto de vista europeu que, aliás, foi um dos instrumentos mais poderosos para a opressão do povo negro, tanto que a própria bíblia que foi o instrumento basilar para esta opressão é retomada e questionada:
"a bíblia foi censurada já vão muitos anos, séculos. Há certos textos (...) suprimidos da bíblia, esses é que tinham a essência da religião" (pag. 48)
É neste contexto que se esgota a dessacralização da religião europeia que norteou por muitos anos a ideia de Negritude, contudo, o discurso de "A Bíblia dos Pretos" não se esgota aqui, perpassa questionamentos das religiões africanas, também, inscrevendo assim uma outra significação à identidade negra, ora vejamos:
“o culto dos mortos é tão absurdo e selvagem como qualquer outro culto destinado a qualquer Deus, que não aconteceria se os nossos avós tivessem cruzado o mundo para dilatar o poder e espalhar a fé nos defuntos por todos os povos. Os nossos ancestrais se ao invés de receber a Bíblia pelas mãos de Gama, Livingstone e outros bandidos, tivessem se armado para impor aos europeus e outros povos que o espírito de Zinga Bandy, de Nhatsimba Mutota, de Lobengula, de Shaka Zulu, de Lumumba, de Neto, de Maherero e outros que são os verdadeiros deuses do universo, cordeiros salvadores de toda humanidade e superior a qualquer Buda, a qualquer Jeová, a qualquer Alá, achas que hoje continuaríamos bárbaros” (pag. 57) 
Além evidenciar a religiosidade dos cultos africanos e da divindade de algumas individualidades africanas, há neste texto uma visão para além da verdade estabelecida através da assunção da possibilidade de a expansão mercantil ter seguido um movimento contrário ao que ocorreu, mostrando, desta forma, que a barbaridade a que os africanos são relegados é fruto duma leitura unilateral da verdade que não é inaugural neste fenómeno e se faz recorrer numa infinidade de aspectos e domínios.
Observa-se de forma muito clara que a proposta do autor de “A Bíblia dos Pretos” suplanta a primeira ideia de Renascimento africano que defendia a rebusca da africanidade nos valores tradicionais que, de uma forma ou de outra, retratam-se no curandeirismo num processo de abandono dos dogmas impostos pelas religiões europeias através do colonialismo. Notamos, portanto, que nesta obra o cenário vai um pouco mais além, pois tal como demonstra o excerto acima, a rebusca da africanidade, do orgulho de ser negro e, resumidamente, do Renascimento africano, na perspectiva desta obra, é condicionada pela libertação do negro de todos os “absurdos” que o cercam, abrindo-se assim espaço para afirmar que em “A Bíblia dos Pretos” contraria-se o discurso inicial de refutação de tudo que seja herança branca em detrimento do que é negro para se sugerir um cenário em que inclusive o que se acredita que seja sagrado do ponto de vista dos anteriores defensores da Negritude deva passar pelo mesmo exercício: o questionamento.
É, portanto, este o exercício de questionamento que se implementa em “A Bíblia dos Pretos” como forma de fazer jus ao facto de que “a Literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialecticamente os problemas.” CÂNDIDO (1965, p. 36) apud CEZERILO (2010: 64)
A forma dialéctica de viver os fenómenos a que se refere CÂNDIDO (1965), verifica-se em “A Bíblia dos Pretos” pela contrasteação de dois polos de percepção de um mesmo problema, demonstrando os absurdos existentes em cada polo e buscando desse confronto dialéctico um meio-termo para que africanidade se erga num contexto pós-colonial, tendo em conta que este conceito não designa um conceito histórico ou diacrónico, mas antes um conceito analítico que (…) se esforça por (…) propor uma nova visão de um mundo, caracterizado pela coexistência e negociação de línguas e de culturas.” (LEITE: 2003, p. 5)

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