1. Pressupostos da leitura interactiva
O modelo interactivo de leitura
defendido por Bakhtin parte do pressuposto de que “tudo possui um significado, ele compreende as características formais
ou repetidas da linguagem como significados não formais, não repetíveis e
sempre reais.” De tal forma que se pode dizer que, para Bakhtin, no
exercício da linguagem, tudo tem uma
intenção, desde a escolha ao uso, da causa ao efeito que pode advir desse
exercício.
No entanto, esta visão de que toda
selecção lexical de num texto, visa a transmissão de uma determinada “mensagem”
tanto do ponto de vista temático, assim como ideológico, encontra acolhimento
devido quando se está perante uma obra literária em razão da sua (bastante
comum) natureza simbólica na codificação dos significantes.
Em contrapartida, verifica-se que o
exercício da leitura de enunciados literários, por vezes, caracteriza-se pelo
simples acto de descodificação dos signos linguísticos que o texto comporta sem
que se faça uma interligação com os aspectos extralinguísticos que possam
estabelecer alguma relação com o conteúdo do texto e que sejam do conhecimento
do sujeito leitor. O acto de ler assumido nestes termos simplistas compreende, segundo
NASCIMENTO (2011: 2), o modelo de leitura ascendente, “processo no qual a compreensão do texto se pauta nas informações
contidas no próprio texto, facto este que contribui muito pouco para a formação
do leitor, visto que o impede de relacionar seus conhecimentos prévios com o
texto em questão.”
Outro
modelo de leitura que se tem adoptado, e que também tem um carácter monológico
que não é salutar para a leitura de enunciados literários na sua generalidade,
é o modelo descendente de leitura, que contrariamente ao anterior, possibilita que o leitor relacione o texto a
conhecimentos adquiridos anteriormente. (ibdem)
Embora
este modelo considere a natureza subjectiva do leitor, ele “peca” por “centrar o processo de leitura nas opiniões
que leitor emite sobre o que leu, apagando o carácter polissémico, ideológico e
dialógico dos signos linguísticos que compõem o texto.” (AMARAL: 2010 apud
NASCIMENTO: 2011: 2)
O
que significa que, neste modelo de leitura, o leitor constrói, logo nos
primeiros contactos com o texto, hipóteses sobre o texto, que podem ir sendo
aceites ou refutadas à medida que a leitura se estende.
É,
portanto, com a junção destes dois modelos de leitura que se pode obter o conceito
de leitura interactiva defendida por Bakhtin.
O
que se pretende com esta teoria é que haja uma leitura que preconize a acção
interactiva entre o leitor, o autor e o texto, espelhando, para tal, as
contribuições de Bakhtin no estudo da linguagem e o seu carácter dialógico,
considerando que a compreensão para este autor é um processo que envolve o
sujeito e as experiências sócio-históricas e culturais que o constituem.
A
leitura em uma perspectiva interacionista compreende um fluxo de informação,
pois o acto de ler envolve tanto a informação impressa na página quanto a
informação que o leitor traz para o texto. Tendo, também, em conta que o texto
segundo Kristeva (2005) apud CEZERILO (2010: 40) “é uma permutação de textos, uma intertextualidade: no espaço de um
texto, vários enunciados, vindos de outros textos, cruzam-se e neutralizam-se.”
2. O enredo de “A Bíblia dos Pretos”
Lendo
“A Bíblia dos Pretos”
percebe-se que o autor, Dom Midó das Dores, procura trazer uma personagem com
um carácter cómico e uma postura decerto curiosa que está no limiar da loucura
e da lucidez e que se auto-intitula de Cristo Negro. Toda a trama do romance
gira em torno desta personagem que à semelhança de Jesus Cristo procura
libertar o seu povo da “masmorra” em que encontra por causa do colonialismo
europeu e das ideias por si inculcadas em todo o africano.
O
romance inicia com um facto inédito: “O
Cristo Negro sacou o sexo das calças e urinou em frente da multidão que saia da
igreja”. Perante este gesto obsceno, a multidão toma o Cristo Negro como
louco e ridículo, o que certamente vai contrastar com o discurso por si
proferido em torno da religião e do facto de as pessoas frequentarem os
templos. Num discurso questionador que permeia a verdade e a especulação,
Cristo Negro vai procurando engendrar o despertar dos crentes da igreja
Assembleia de Deus ali presentes no seguintes termos: “Porquê rezais, ó irmãos negros? (…) Pensais que há Deus para ouvir as
vossas preces de fome? O Céu é mais longe do que julgais para África. Despertai
ó almas dormentes e cegas”.
Esta
indefinida disposição comportamental do Cristo Negro, ora tendente para a
loucura, através de atitudes não muito comuns, ora para a lucidez
/intelectualidade através da forma como concebe a religião, por exemplo, e o conhecimento
teológico, facilmente espalha-se pela cidade e todos passam a saber da
existência de um “louco que acredita ser
Cristo”. Por outro lado, o facto de ser detentor de conhecimentos
significativos no que respeita a conhecimentos que à religião dizem respeito
faz com que desperte a curiosidade de parte da sociedade e admiração de apenas
três personagens: um senhor com quem coincidentemente se encontrou e comungou
as ideias no que respeita à religião e à própria religiosidade do negro, um
menino que se simpatizara com as ideias do Cristo Negro (o narrador) e a Maria
Madalena, uma mulher tida como prostituta com quem Cristo Negro teve um
relacionamento íntimo.
Cristo
Negro na sua “investida” como salvador do povo negro chega, ao longo do
romance, ao ponto de não só vilipendiar a religião europeia como o faz também
com as de cariz africana que, na sua óptica, também aprisionam o povo negro. É
esta assunção que o faz interromper uma cerimónia tradicional designada Kuparula expulsando os curandeiros que,
para si são demónios: “Se não quereis
sair daqui e acabar com essa vossa brincadeira de mau gosto, eu queimo-vos à
vós e aos vossos espíritos idiotas. Atiro fogo sobre as vossas cabeças cheias
de impurezas bestiais”. (pag. 81)
É
este o culminar da actividade libertadora do Cristo Negro que fez com que a
população do bairro Patrice Lomumba, onde residia, deixasse de trata-lo como
simplesmente louco e passasse a tê-lo como feiticeiro e, como tal, deveria ser
expulso do bairro, tendo este passado a residir na cidade da Beira onde acabara
perdendo a vida e ressuscitou no terceiro dia:
“Eis-me aqui de carne e osso. Venci a
morte mas a minha missão ainda não terminou. Falta vencer a miséria do meu
rebanho humilhado pela vida mundana.” (pag. 106)
3. Leitura(s) de "A Bíblia dos Pretos"
Esta narrativa configura-se como um romance de personagem
pelo facto de ter a sua trama a girar em torno do universo do Cristo Negro e
das suas acções. Estruturalmente,
trata-se duma narrativa simples que, embora seja um romance, o seu foco
narrativo não se expande para domínios mais amplos, salvo alguns recortes
filosóficos, históricos, teológicos e mitológicos que conferem a verosimilhança
ao próprio enredo. Do ponto de vista temporal, as acções datam aproximadamente
dos anos 90, se formos a imaginar o contexto social com base no inventário de
informações que nos são trazidas. É com a mesma base de informações que podemos
perceber que as acções decorrem na cidade de Xai-Xai (no bairro Patrice
Lomumba, sobretudo) e na cidade da Beira, onde morrera e ressuscitara o Cristo
Negro.
Numa linguagem simples e na voz de um menino (Midó das
Dores) que é narrador participante de "A
bíblia dos pretos" desenrola uma trama que aborda questões religiosas,
tanto do ponto de vista europeu, herdadas pelos negros, assim com as religiões
africanas representadas pelo curandeirismo, que continua sendo praticado até
aos dias de hoje. Esta linguagem simples enriquece-se duma sofisticação no
detalhe e nas referências ligadas a vários domínios científicos e pelos
questionamentos e insinuações que, ora surpreendem ora desafiam a imaginação
humana devido à dessacralização do divino e/ou tradicional.
Esta dessacralização bipolarizada, que não é muito comum,
ocorre, nesta obra, através a negação de um único Deus do branco, conforme
nota-se:
“tudo vos
escraviza de segunda a sábado e reservais ainda o domingo para serdes
humilhados pelo próprio Deus supremo do universo. (…) Deus não nos protege nós
os negros" (pag. 9)
Assim, fica clara a aversão de Cristo Negro em relação a
figura de Deus propalada pelo europeu a ponto de questionar, inclusive, a ideia
de que existe um único Deus Senhor do Universo, ao deixar claro que não se
prevê nenhuma possibilidade de comunicação entre Deus e os negros:
“sois
todos pobres, desgraçados. Viveis mendigando a um Deus que não percebe as
línguas bantu". (pag. 12)
Deste modo, perante este cenário de negação de um Deus
Universal conforme propalam as religiões, vive-se um cenário de inexistência de
um Deus, o que seria inédito na história da humanidade, tanto que em "A Bíblia dos Pretos" está
antevista a existência de um Deus dos Negros, dessacralizando ainda mais as
religiões ocidentais que propalam a existência de apenas um Deus, conforme
podemos observar:
"ó
grande Deus dos Negros, meu Pai, Pai do futuro. Ergo esta voz vil e reles a ver
se pode merecer a atenção dos teus ouvidos dourados, Pai amado (…) estão
sofrendo os pretos de todo o mundo humilhados e colonizados pela injustiça dos
homens de graça divina e pelos seus deuses, só tu pai Deus Negro, Novo Deus dos
homens, só tu podes dar glória à África". (pag. 31)
Dentre acusações, suspeitas, exageros e sensos comuns
elabora-se o discurso questionador de “A
Bíblia dos Pretos” partindo de alguns pressupostos factuais que eram
decerto usuais no discurso colonial por via da produção textual artística ou
mesmo oficial.
"olha
isto, senhor padre, Adão e Eva, eram brancos. Como é que explica que este casal
tenha gerado pessoas negras?"
(pag. 44)
Repara-se aqui que o discurso que fora usado como forma de
opressão, volta a ser retomado com o intento de questioná-lo e procurar
fundamentos para sustentar novas propostas de visão do mundo relativamente à
africanidade.
É com este rol de informações acima que se dessacraliza a
religião do ponto de vista europeu que, aliás, foi um dos instrumentos mais
poderosos para a opressão do povo negro, tanto que a própria bíblia que foi o
instrumento basilar para esta opressão é retomada e questionada:
"a
bíblia foi censurada já vão muitos anos, séculos. Há certos textos (...) suprimidos
da bíblia, esses é que tinham a essência da religião" (pag. 48)
É neste contexto que se esgota a dessacralização da
religião europeia que norteou por muitos anos a ideia de Negritude, contudo, o
discurso de "A Bíblia dos Pretos"
não se esgota aqui, perpassa questionamentos das religiões africanas, também,
inscrevendo assim uma outra significação à identidade negra, ora vejamos:
“o
culto dos mortos é tão absurdo e selvagem como qualquer outro culto destinado a
qualquer Deus, que não aconteceria se os nossos avós tivessem cruzado o mundo
para dilatar o poder e espalhar a fé nos defuntos por todos os povos. Os nossos
ancestrais se ao invés de receber a Bíblia pelas mãos de Gama, Livingstone e
outros bandidos, tivessem se armado para impor aos europeus e outros povos que
o espírito de Zinga Bandy, de Nhatsimba Mutota, de Lobengula, de Shaka Zulu, de
Lumumba, de Neto, de Maherero e outros que são os verdadeiros deuses do
universo, cordeiros salvadores de toda humanidade e superior a qualquer Buda, a
qualquer Jeová, a qualquer Alá, achas que hoje continuaríamos bárbaros” (pag. 57)
Além evidenciar a religiosidade dos cultos africanos e da
divindade de algumas individualidades africanas, há neste texto uma visão para
além da verdade estabelecida através da assunção da possibilidade de a expansão
mercantil ter seguido um movimento contrário ao que ocorreu, mostrando, desta
forma, que a barbaridade a que os africanos são relegados é fruto duma leitura
unilateral da verdade que não é inaugural neste fenómeno e se faz recorrer numa
infinidade de aspectos e domínios.
Observa-se de forma muito clara que a proposta do autor de “A Bíblia dos Pretos” suplanta a
primeira ideia de Renascimento africano que defendia a rebusca da africanidade
nos valores tradicionais que, de uma forma ou de outra, retratam-se no
curandeirismo num processo de abandono dos dogmas impostos pelas religiões
europeias através do colonialismo. Notamos, portanto, que nesta obra o cenário
vai um pouco mais além, pois tal como demonstra o excerto acima, a rebusca da
africanidade, do orgulho de ser negro e, resumidamente, do Renascimento
africano, na perspectiva desta obra, é condicionada pela libertação do negro de
todos os “absurdos” que o cercam, abrindo-se assim espaço para afirmar que em
“A Bíblia dos Pretos” contraria-se o discurso inicial de refutação de tudo que
seja herança branca em detrimento do que é negro para se sugerir um cenário em
que inclusive o que se acredita que seja sagrado do ponto de vista dos
anteriores defensores da Negritude deva passar pelo mesmo exercício: o
questionamento.
É, portanto, este o exercício de questionamento que se
implementa em “A Bíblia dos Pretos”
como forma de fazer jus ao facto de que “a Literatura confirma e nega, propõe e denuncia, apoia e
combate, fornecendo a possibilidade de vivermos dialecticamente os problemas.” CÂNDIDO (1965, p. 36) apud
CEZERILO (2010: 64)
A forma dialéctica
de viver os fenómenos a que se refere CÂNDIDO (1965),
verifica-se em “A Bíblia dos Pretos” pela
contrasteação de dois polos de percepção de um mesmo problema, demonstrando os
absurdos existentes em cada polo e buscando desse confronto dialéctico um
meio-termo para que africanidade se erga num contexto pós-colonial, tendo em
conta que este conceito “não designa um conceito histórico
ou diacrónico, mas antes um conceito analítico que (…) se esforça por (…)
propor uma nova visão de um mundo, caracterizado pela coexistência e negociação
de línguas e de culturas.” (LEITE: 2003, p. 5)
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