sábado, 10 de novembro de 2012

Será que nós matamos o Cão tinhoso?

Quem leu Nós matamos o cão tinhoso de Luís Bernardo Honwana, percebe neste conto (que dá título à obra que se apresentara como proposta da emancipação da narrativa em relação à preponderância da poesia no seio da literatura moçambicana), algum tom confessional e que perpassa questões de ordem político-ideológica. Vejamos: com o desenrolar da leitura, somos encaminhados a um sistema de equivalências no qual o Cão Tinhoso (feio, de pele velha, nojento, ossos a chiar de fragilidade, débil, envelhecido, fraco e doente,) representa, assim, o sistema colonial, o colonizador decadente, em vias de ser destruído.
É exactamente nesta senda que a questão supracitada encontra o enquadramento devido: Será verdade que nós matamos o Cão tinhoso?!... E, considerando que o mesmo já estava débil, com os ossos a chiar de fragilidade, envelhecido, fraco e doente…enfim já era um moribundo, qualquer tipo de acidente porque passasse (um tropeçamento, por exemplo) seria a causa da sua morte que já era certa e, nesta perspectiva é natural considerar-se que o Cão tinhoso não tenha sido morto e que o seu desaparecimento físico tenha sido fruto de uma morte natural, visto que este não tinha mais como se esquivar __ Atenção: não estou sendo antipatriótico, estou sim, fazendo uso da lucidez que ainda cabe em mim.
Pode-se ainda cogitar a possibilidade de o Cão tinhoso, ter se entregue à uma morte latente, isto é, ter forjado a sua própria morte por saber que introduziu em todos nós uma bomba-relógio que poderia explodir a curto, médio ou, se calhar, longo prazo. Afinal, que bomba-relógio é esta? Não vejo outra forma de responder esta pergunta se não recorrer aos pronunciamentos de uma pessoa próxima que numa conversa fiada dizia, “A maior colonização daqueles gajos (os colonos) foi fazer-nos acreditar que eles são superiores que nós”, isto é, que nós éramos um povo bárbaro e que eles estiveram aqui para civilizar-nos, evangelizar e, claro, salvar-nos do mal que nos corroía as entranhas. E, que mal é este? __ Ah! Essa é fácil de responder…são os nossos valores culturais. E, algo muito interessante nisto tudo é que muitos compatriotas nossos, se calhar, deram por si quando já estavam em meio ao que chamaria de PROTISTUIÇÃO IDEOLÓGICA.
Deixem-me sustentar esta constatação afrontosa, baseando-me nas seguintes palavras da Bíblia, “nenhum servo pode servir a dois senhores; porque, ou há-de aborrecer um e amar o outro, ou se há-de chegar a um e desprezar o outro (…). LUCAS 16: 13. No contexto a que me refiro, após uma análise minuciosa e __ devo confessar isto__ viciada por uma concepção algo pessoal dos factos, assumamos que um dos senhores aqui referenciados é o cristianismo/catolicismo, e outro são os nossos antepassados. Este facto de colocar os antepassados numa dimensão divina subjaz na crença da sobrevivência da alma depois da morte, pois, acredita-se que quando morre um membro da família, o seu espírito continua acompanhando os vivos, podendo ser um antepassado protector.
Bem, além da perspectiva de prostituição ideológica a que me referia, considerando que um pouco de lucidez pairava no intelecto de alguns compatriotas nossos, quero acreditar que proferissem para os seus botões mas dedicando aos seus antepassados, a seguinte oração:
“Senhor (referindo-se a um determinado antepassado): fazei com que eu seja sempre diante de ti e daqueles que trazem o teu selo, nada mais que uma simples ovelha de seu rebanho. Entretanto perante os lobos (referindo-se aos evangelizadores e evangelizados); fazei com que eu adquira a aparência do tigre audacioso e voraz, para que assim parecendo, eu não seja devorado por eles”.
Francisco Ferreira (Mr. Smith) in Vivências de um Aprendiz, 126.

Com a suposta morte do Cão tinhoso, o que parecia que fosse feito só para o inglês ver, continuou acontecendo, ou seja, tal como afirma um companheiro de guerra poetizada, onde as armas são as rectas letras postas em acção com vista um escrever certo, fecundo e sem ambiguidades, Hosvaldo Rios em um poema seu:
Eles rezaram, não em nome dos Nyacuavanis/ Invocaram e recitaram as Ave Marias quando o que queríamos/ Eram as Ndzinga-Mbandis/ Invocaram Abrahão e Moiséis, o Emanuel e todo o reino de Deus/ Quando Ngungunhana estava bem mais por perto.
E, o mais engraçado ainda é que este Nyacuavani não era deixado completamente de lado, pois, era invocado aquando das realizações de cerimónias familiares. E mais uma vez assiste-se a uma prostituição ideológica sistemática.
Começava assim a explodir a bomba-relógio deixada pelo Cão tinhoso!
Permitam-me trazer a seguinte frase:
“Um povo sem conhecimento, saliência de seu passado histórico, origem e Cultura, é como uma árvore sem raízes”__ Bob Marley
Analisando os factos nesta perspectiva, noto que actualmente algumas raízes estão a ser ameaçadas de extermínio, por gente que, vestida de um ocidentalismo tal, volta-se com machados e tudo que há de destruidor para as suas próprias raízes, entregando-se de corpo e alma (que parecem ter vendido) na matança do que restou da sua raiz, seus valores culturais e sua dignidade!
Voltando ao suicídio cultural a que se assiste, deixem-me, pelo menos, trazer 3 exemplos que possam dar sustento a esta tese:
Primeiro:
Quando decidimos contrair o matrimónio, é clara a forma como nos prostituímos: passamos pela cerimónia dita tradicional, mas que é na verdade a nossa real religião, e depois para a cerimónia religiosa (que é do ocidente) como se Deus não tivesse posto a mão no queixo para acompanhar atentamente a primeira cerimónia e, claro, dar a tão esperada bênção. Porquê rogar a mesma bênção, da mesma figura divina, no mesmo casamento das mesmas pessoas?
Segundo:
Em caso de morte de um parente, normalmente são realizados rituais para que o morto seja um antepassado protector dos que estiverem ainda em vida. Por exemplo, na comunidade tsonga no sul de Moçambique, em caso de morte de seu marido, a viúva entra na palhota, deita tabaco no chão junto da cabeça do morto e diz: Ntirho wu helile. Loko va thakula va pfumelele. Unga tiki, unga yali, ungasukeli maxaka ya wena hi xiviti __ traduzindo: a cerimónia acabou. Tente ser transparente até a sua sepultura. Não crie obstáculos à sua família, não guarde rancor __ Se for uma mulher que morreu, é o marido ou a sogra quem realiza este ritual. E, depois o defunto é levado à igreja para as cerimónias religiosas, quando Deus já recebeu seu filho, mostrou os seus novos aposentos e, talvez, já estivesse transmitindo as regras do funcionamento da casa.
Terceiro:
A banalização e diabolização da figura do médico tradicional/curandeiro, é uma de tantas formas que os pretos ocidentais forjados, ou seja, os suicidas culturais acharam para perpetrar a sua auto-destruição sem se darem conta disso, quando é este curandeiro que muitas vezes “apaga as chamas” provocadas por negligência ou mesmo por ignorância de muitos de nós, em relação a realidades sócio-culturais só e só inerentes a nós e às nossas gentes que de boca cheia e em tão viva voz (que não se circunscreve apenas nos templos) diz que constituem superstições infundadas, são rusticidades, enfim é tudo relativo ao mais medíocre folclore __ tal como o Cão tinhoso ensinou. E, mais uma vez constata-se um exemplo da mais infame prostituição ideológica. Após estes pronunciamentos era de se esperar que estas figuras tivessem abandonado a prostituição, embora passando para uma posição não muito salutar. Para a surpresa de tudo e todos são as mesmas figuras que partilham com os demais gigolôs e prostitutas ideológicos, a “sala de espera” no cantinho dos curandeiros, aliás, dos doutores da medicina tradicional. Quando este acaso os surpreende, lá no fundo do cérebro que ainda lhes resta (porque a outra parte fora formatada pelo Cão tinhoso) germina a vontade de esconder pelo menos a cabeça nenhures, ou se calhar, a crença que alimenta as suas descrenças no que há de mais sagrado no curandeirismo manda-lhes rogar a uma suposta Santa Desesperança para que lhes passe em mãos o pó-de-pirlimpimpim, para se desfazerem do local, num triz.
Meus senhores:
Das duas uma, melhor dizendo, ou um ou outro, pois é de senso comum que “nenhum servo pode servir a dois senhores; porque, ou há-de aborrecer um e amar o outro, ou se há-de chegar a um e desprezar o outro”. Há lá no fundo de nós mesmos uma realidade que nos espera incansavelmente e, se calhar, já com as pernas bambas __ são os nossos valores culturais __ entijolemo-nos a eles. Claro, “nós devemos estar para a realidade como o tijolo está para a parede: a linha certa, a aresta medida.” (Mia Couto, Inventar Palavras, in Cronicando). Não se entende o porquê da sublimação de ocidentalidades que, aliás, constituem parte da bomba-relógio deixada pelo Cão tinhoso que supostamente matamos. Será que eles são realmente por nós? Será que eles nos ouvem?
Subitamente, apareceram-me estas questões enquanto revisitava o poema “Reza, Maria” de José Craveirinha (o Mestre Zé), observe a quarta e última estrofes do mesmo, respectivamente:
(…)
Crias morrem à mingua de pão,
Vermes nas ruas estendem a mão à caridade,
E nem crias nem vermes são,
Mas aleijados meninos sem casa, Maria!
(…)
Ah, Maria
Põe as mãos e reza,
Pelos homens todos
E negros de todo a parte
Põe as mãos
E reza, Maria!
Lá se foram os anos, Craveirinha clamou por rezas e quantas Marias rezaram? Mil, duas mil, milhares e basta levar os olhos à rua para ver crias e os vermes que não são crias nem vermes. 
Talvez seja este um indicador da reinvenção das nossas rezas e dedicarmo-las a quem nos possa ouvir. A este propósito, num poema intitulado “Subversão” ocorreu-me a seguinte reza:
Se as rezas realmente resultam em África,
Reza Maria,
pelos seus filhos,
e rogue a Nyakwanvani
que os arranque do sonambulismo que os devora!
Reza Maria, se for preciso, ajoelhe-se exorcismando!
Reza Maria,
mas não se esqueça de vestes, comes e bebes
 __ nossos Tinguluves gostam!
Reza Maria, mas não catolicamente…

Eles não atendem as preces dos pretos!

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