É
exactamente nesta senda que a questão supracitada encontra o enquadramento
devido: Será verdade que nós matamos o Cão tinhoso?!... E, considerando que o
mesmo já estava débil, com os ossos a chiar de fragilidade, envelhecido, fraco
e doente…enfim já era um moribundo, qualquer tipo de acidente porque passasse
(um tropeçamento, por exemplo) seria a causa da sua morte que já era certa e,
nesta perspectiva é natural considerar-se que o Cão tinhoso não tenha sido
morto e que o seu desaparecimento físico tenha sido fruto de uma morte natural,
visto que este não tinha mais como se esquivar __ Atenção: não estou sendo
antipatriótico, estou sim, fazendo uso da lucidez que ainda cabe em mim.
Pode-se
ainda cogitar a possibilidade de o Cão tinhoso, ter se entregue à uma morte
latente, isto é, ter forjado a sua própria morte por saber que introduziu em
todos nós uma bomba-relógio que poderia explodir a curto, médio ou, se calhar,
longo prazo. Afinal, que bomba-relógio é esta? Não vejo outra forma de
responder esta pergunta se não recorrer aos pronunciamentos de uma pessoa
próxima que numa conversa fiada dizia, “A
maior colonização daqueles gajos (os colonos) foi fazer-nos acreditar que eles são superiores que nós”, isto é,
que nós éramos um povo bárbaro e que eles estiveram aqui para civilizar-nos,
evangelizar e, claro, salvar-nos do mal que nos
corroía as entranhas. E, que mal é este? __ Ah! Essa é fácil de
responder…são os nossos valores culturais. E, algo muito interessante nisto
tudo é que muitos compatriotas nossos, se calhar, deram por si quando já
estavam em meio ao que chamaria de PROTISTUIÇÃO IDEOLÓGICA.
Deixem-me
sustentar esta constatação afrontosa, baseando-me nas seguintes palavras da
Bíblia, “nenhum servo pode servir a dois
senhores; porque, ou há-de aborrecer um e amar o outro, ou se há-de chegar a um
e desprezar o outro (…). LUCAS 16: 13. No contexto a que me refiro, após
uma análise minuciosa e __ devo confessar isto__ viciada por uma concepção algo
pessoal dos factos, assumamos que um dos senhores aqui referenciados é o cristianismo/catolicismo,
e outro são
os nossos antepassados. Este facto de colocar os antepassados numa dimensão
divina subjaz na crença da sobrevivência da alma depois da morte, pois, acredita-se
que quando morre um membro da família, o seu espírito continua acompanhando os
vivos, podendo ser um antepassado protector.
Bem,
além da perspectiva de prostituição ideológica a que me referia, considerando
que um pouco de lucidez pairava no intelecto de alguns compatriotas nossos,
quero acreditar que proferissem para os seus botões mas dedicando aos seus
antepassados, a seguinte oração:
“Senhor (referindo-se
a um determinado antepassado): fazei com
que eu seja sempre diante de ti e daqueles que trazem o teu selo, nada mais que
uma simples ovelha de seu rebanho. Entretanto perante os lobos (referindo-se
aos evangelizadores e evangelizados); fazei
com que eu adquira a aparência do tigre audacioso e voraz, para que assim
parecendo, eu não seja devorado por eles”.
Francisco Ferreira (Mr. Smith) in Vivências de um
Aprendiz, 126.
Com a suposta morte do Cão tinhoso, o que parecia
que fosse feito só para o inglês ver,
continuou acontecendo, ou seja, tal como afirma um companheiro de guerra poetizada,
onde as armas são as rectas letras postas em acção com vista um escrever certo,
fecundo e sem ambiguidades, Hosvaldo Rios em um
poema seu:
Eles rezaram, não em
nome dos Nyacuavanis/ Invocaram e recitaram as Ave Marias quando o que
queríamos/ Eram as Ndzinga-Mbandis/ Invocaram Abrahão e Moiséis, o Emanuel e
todo o reino de Deus/ Quando Ngungunhana estava bem mais por perto.
E,
o mais engraçado ainda é que este Nyacuavani não era deixado completamente de
lado, pois, era invocado aquando das realizações de cerimónias familiares. E
mais uma vez assiste-se a uma prostituição ideológica sistemática.
Começava
assim a explodir a bomba-relógio deixada pelo Cão tinhoso!
Permitam-me
trazer a seguinte frase:
“Um povo sem
conhecimento, saliência de seu passado histórico, origem e Cultura, é como uma
árvore sem raízes”__ Bob Marley
Analisando
os factos nesta perspectiva, noto que actualmente algumas raízes estão a ser
ameaçadas de extermínio, por gente que, vestida de um ocidentalismo tal,
volta-se com machados e tudo que há de destruidor para as suas próprias raízes,
entregando-se de corpo e alma (que parecem ter vendido) na matança do que
restou da sua raiz, seus valores culturais e sua dignidade!
Voltando
ao suicídio cultural a que se assiste, deixem-me, pelo menos, trazer 3 exemplos
que possam dar sustento a esta tese:
Primeiro:
Quando
decidimos contrair o matrimónio, é clara a forma como nos prostituímos:
passamos pela cerimónia dita tradicional, mas que é na verdade a nossa real
religião, e depois para a cerimónia religiosa (que é do ocidente) como se Deus não tivesse posto a mão
no queixo para acompanhar atentamente a primeira cerimónia e, claro, dar a tão
esperada bênção. Porquê rogar a mesma bênção, da mesma figura divina, no mesmo
casamento das mesmas pessoas?
Segundo:
Em
caso de morte de um parente, normalmente são realizados rituais para que o
morto seja um antepassado protector dos que estiverem ainda em vida. Por
exemplo, na comunidade tsonga no sul de Moçambique, em caso de morte de seu
marido, a viúva entra na palhota,
deita tabaco no chão junto da cabeça
do morto e diz: Ntirho wu helile. Loko va thakula va pfumelele. Unga tiki,
unga yali, ungasukeli maxaka ya wena hi xiviti __ traduzindo:
a cerimónia acabou. Tente ser transparente até a sua sepultura. Não crie
obstáculos à sua família, não guarde rancor __ Se for uma mulher que morreu, é o marido ou a sogra quem
realiza este ritual. E, depois o defunto é levado à igreja para as cerimónias
religiosas, quando Deus já recebeu seu filho, mostrou os seus novos aposentos
e, talvez, já estivesse transmitindo as regras do funcionamento da casa.
Terceiro:
A
banalização e diabolização da figura do médico tradicional/curandeiro, é uma de
tantas formas que os pretos ocidentais forjados, ou seja, os suicidas culturais
acharam para perpetrar a sua auto-destruição sem se darem conta disso, quando é
este curandeiro que muitas vezes “apaga as chamas” provocadas por negligência
ou mesmo por ignorância de muitos de nós, em relação a realidades
sócio-culturais só e só inerentes a nós e às nossas gentes que de boca cheia e
em tão viva voz (que não se circunscreve apenas nos templos) diz que constituem
superstições infundadas, são rusticidades, enfim é tudo relativo ao mais
medíocre folclore __ tal como o Cão tinhoso ensinou. E, mais uma vez
constata-se um exemplo da mais infame prostituição ideológica. Após estes
pronunciamentos era de se esperar que estas figuras tivessem abandonado a
prostituição,
embora passando para uma posição não muito salutar. Para a surpresa de tudo e
todos são as mesmas figuras que partilham com os demais gigolôs e prostitutas
ideológicos, a “sala de espera” no cantinho dos curandeiros, aliás, dos
doutores da medicina tradicional. Quando este acaso os surpreende, lá no fundo
do cérebro que ainda lhes resta (porque a outra parte fora formatada pelo Cão
tinhoso) germina a vontade de esconder pelo menos a cabeça nenhures,
ou se calhar, a crença que alimenta as suas descrenças no que há de mais
sagrado no curandeirismo manda-lhes rogar a uma suposta Santa Desesperança para
que lhes passe em mãos o pó-de-pirlimpimpim, para se desfazerem do local, num
triz.
Meus
senhores:
Das
duas uma, melhor dizendo, ou um ou outro, pois é de senso comum que “nenhum servo pode servir a dois senhores;
porque, ou há-de aborrecer um e amar o outro, ou se há-de chegar a um e
desprezar o outro”. Há lá no fundo de nós mesmos uma realidade que nos
espera incansavelmente e, se calhar, já com as pernas bambas __ são os nossos
valores culturais __ entijolemo-nos a eles. Claro, “nós devemos estar para a realidade como o tijolo está para a parede: a
linha certa, a aresta medida.” (Mia Couto, Inventar Palavras, in
Cronicando). Não se entende o porquê da sublimação de ocidentalidades que,
aliás, constituem parte da bomba-relógio deixada pelo Cão tinhoso que
supostamente matamos. Será que eles são realmente por nós? Será que eles nos
ouvem?
Subitamente,
apareceram-me estas questões enquanto revisitava o poema “Reza, Maria” de José Craveirinha (o Mestre Zé), observe a quarta e
última estrofes do mesmo, respectivamente:
(…)
Crias morrem à mingua
de pão,
Vermes nas ruas
estendem a mão à caridade,
E nem crias nem vermes
são,
Mas aleijados meninos
sem casa, Maria!
(…)
Ah, Maria
Põe as mãos e reza,
Pelos homens todos
E negros de todo a
parte
Põe as mãos
E reza, Maria!
Lá
se foram os anos, Craveirinha clamou por rezas e quantas Marias rezaram? Mil, duas
mil, milhares e basta levar os olhos à rua para ver crias e os vermes que não
são crias nem vermes.
Talvez seja este um indicador da reinvenção das nossas rezas e dedicarmo-las
a quem nos possa ouvir. A este propósito, num poema intitulado “Subversão” ocorreu-me a seguinte reza:
Se as rezas realmente resultam em África,
Reza Maria,
pelos seus filhos,
e rogue a Nyakwanvani
que os arranque do sonambulismo que os devora!
Reza Maria, se for preciso, ajoelhe-se exorcismando!
Reza Maria,
mas não se esqueça de vestes, comes e bebes
__ nossos Tinguluves gostam!
Reza Maria, mas não catolicamente…
Eles não atendem as preces dos pretos!
Sem comentários:
Enviar um comentário