A Negritude nasceu de um
protesto intelectual de negros de formação cultural europeia que tomavam
consciência da diferença e da inferiorização que os europeus impunham aos
descendentes da África. Foi Aimé Césaire que, no seu Cahier d'un
retour au pays natal, em 1939, empregou o termo “negritude” pela primeira
vez.
No entanto, as
discussões em torno da negritude em termos do seu foco como movimento e seus
aspectos ideológicos perante o negro e sua relação com o branco causaram
diversas reflexões, por vezes contraditórias: “o tom exaltado que as discussões sobre a Negritude atinge é produto da
indissolubilidade dos aspectos políticos, culturais e ideológicos de que ela é
fato e factor”. GOMES (2011)
Alguns teóricos da negritude como Aimé Césaire, Léon
Gontran Damas e Léopold Sédar Senghor, manifestavam o desejo de revitalizar no
plano teórico e conceitual a herança cultural africana fundada na valorização
da pureza racial ou étnica, motivo maior da crítica ferrenha de Stanislas
Adotevi.
Nesta perspectiva supracitada assenta a maior crítica
feita à negritude pelo facto de se ter tornado objecto da sua própria crítica. Ao criticar o racismo e sobrevalorizando o negro em relação ao branco
mostra-se, também, racista pelo tipo de discurso que propala por defender um
certo purismo negro e que incorre a um certo etnocentrismo que foi a razão da
divergência de alguns defensores deste movimento.
Propondo
uma solução conciliadora, Kabengele Munanga apud
GOMES (2011)
afirma:
Na história da humanidade, os negros são os últimos
a serem escravizados e colonizados. E todos, no continente como na diáspora,
são vítimas do racismo branco. Ao nível emocional, essa situação comum é um
factor de unidade. (...) Portanto, cada grupo de negros deve adaptar-se e
reajustar o conteúdo de sua NEGRITUDE, respeitando sua especificidade social, económica, política e racial. (1988, p. 57).
Independentemente dos conflitos em termos de alinhamento ideológico entre os mentores da negritude, pode-se
destacar que do ponto de vista literário e ideológico a Negritude constituiu-se como o processo de busca de identidade,
de conduta de defesa do património e do humanismo dos povos negros. Assim, este
movimento recusou a assimilação de modelos externos à história negra _ africana pois pretendia a criação de um estilo próprio, no desejo de se demarcar dos
modelos e motivos históricos das literaturas ocidentais.
A poesia da Negritude
distingue-se da restante literatura africana de língua portuguesa pelo obsessivo tratamento da raça e da cor negras,
qualificando-as com valores reais e simbólicos, reagindo, desse modo, ao
racismo branco.
O discurso da Negritude constitui, portanto, a emergência
estética da ampla doutrina da africanidade e da ideologia pan-africanista,
contributo inestimável para o fazer literário segundo uma concepção autonomista
que, embora aceitando naturalmente os contributos culturais variados
(políticos, ideológicos, científicos, étnicos, populares, eruditos, etc.),
incluindo os europeus, se atém a princípios autonomistas, africanos,
anti-colonialistas, recusando a submissão aos padrões impostos pelas potências
dominantes. LARANJEIRA (2001: 53).
Nota-se no entanto que esta valorização do que se entende
por eminentemente negro existe o repúdio ao que se considera propriedade e
herança do branco como forma de traçar linhas divisórias entre as duas
realidades.
A Negritude em “Deixa passar o
meu povo”
Em “Deixa passar o
meu povo” é explícita a presença da ideologia negritudinista. O texto está
recheado de referências também explícitas a elementos que denotam a apologia
que o texto faz à negritude, não puramente num sentido estritamente nacional, e
sim, numa perspectiva transnacional que é denunciada a partir do título “Deixa passar o meu povo” que é uma
imitação de “Let my people go” de vários vocalistas de Jazz e Blues, cujo teor é relativo a uma exigência no sentido de
libertação de um povo em terras Egípcias “go down Moses/ Way down in Egypt land/ Tell old Pharaoh/ To let my people go!/ Oh when Israel was in Egypt land/ Oppressed so hard, they could not stand/ Let my people go!/ o que na mesma acepção
em “deixa
passar o meu povo” nota-se esta exigência pela libertação do povo negro.
Tendo em conta que a negritude na literatura se manifesta sobretudo pelo repúdio ao que se considera herança do colonizador, em “deixa passar o meu povo” este aspecto
também é notável, tal como podemos observar nos seguintes versos:
“E enquanto me
vierem do Harlem
vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
vozes de lamentação
e meus vultos familiares me visitarem
em longas noites de insônia,
não poderei
deixar-me embalar pela música fútil
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go,”
das valsas de Strauss.
Escreverei, escreverei,
com Robeson e Marian gritando comigo:
Let my people go,”
Observa-se aqui o repúdio explicitamente expresso em
relação à “valsa” que é tida como
música fútil e herança do colono, em detrimento do blues/jazz que são estilos musicais cultivados pelos artistas Paul Robeson e Marian Anderson que a partir de Harlem, nos
anos 30, empreenderam uma intensa produção artística conhecida como Black
Reinaissance. Percebe-se, portanto, que além de um produto cultural com
que (possivelmente) convivera por largo tempo devido à imposição do colono, o
sujeito poético dá primazia às “vozes” com quem tem as mesmas inquietações e
que partilha do mesmo sonho: let my people go.
A referência reiterada a Robeson e Marian faz jus à consciência
transnacional do sentimento de ser negro a que nos referimos e que é expressa
em:
“abro o rádio e deixo-me embalar...
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlem.
Mas as vozes da América remexem-me a alma e os nervos.
E Robeson e Maria cantam para mim
spirituals negros do Harlem.
Dentro de mim soam-me Anderson e Paul
e não são doces vozes de embalo.
Let my people go”
e não são doces vozes de embalo.
Let my people go”
Esta relação entre o sujeito poético e
estes cantores com quem lida através do rádio é manifesta não por puro
embalamento sinfónico e sim por um estímulo para, também, empreender uma
“revolução ideológica” através da escrita. Ao invés de se deixar embalar pela
música tal como era de se esperar, o sujeito poético tem a sua alma e os nervos
remexidos porque são músicas de negros, sobre os negros para o mundo.
Neste discurso apologista da negritude podemos observar
uma característica bem mais amadurecida em termos ideológicos e que,
notavelmente, contrasta com os discursos poéticos antes proferidos, quando o
sujeito poético afirma o seguinte:
“E já não sou mais que instrumento
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda -- minha Irmã”
do meu sangue em turbilhão
com Marian me ajudando
com sua voz profunda -- minha Irmã”
Observa-se que o valor desta negritude suplanta o sentido
de mera bravura física (que fora excessivamente propalada inclusive por alguns
“militantes” da negritude como forma de se impor perante o branco) e perpassa
questões de ordem subjectiva que inauguram uma nova forma de se assumir como
negros, postura para a qual os músicos do Black Reinaissance
contribuíram deveras, daí a referência, mais uma vez, a Marian.
Por esta postura ser de caracter transnacional e sendo
pertença de todas as pessoas inseridas no sonho de ver o negro em condições
melhores, nota-se a alusão que o sujeito poético faz em relação às pessoas que
o acompanham nesta “luta” de fazer com que o seu povo passe:
“Escrevo...
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
Na minha mesa, vultos familiares se vêm debruçar.
Minha Mãe de mãos rudes e rosto cansado
e revoltas,
dores, humilhações,
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
-- let my people go,”
tatuando de negro o virgem papel branco.
E Paulo, que não conheço
mas é do mesmo sangue e da mesma seiva amada de Moçambique,
Todos se vêm debruçar sobre o meu ombro,
enquanto escrevo, noite adiante,
com Marian e Robeson vigiando pelo olho luminoso do rádio
-- let my people go,”
Muito profunda a análise.
ResponderEliminarMuito obrigado. Visite sempre!
EliminarEste comentário foi removido pelo autor.
Eliminar