domingo, 12 de julho de 2015

Umas palavras em torno de “Ao Encontro da Vida ou da Morte” de Deusa D’Africa

Quando alguém é convidado a apresentar uma obra procura aplicar todo o seu manancial de elogios, seja por motivos afectivos ou comerciais. Por via disto, gostaria de agradecer a Deusa D’Africa e ao mesmo tempo lamentar: agradecer pelo convite por ser uma oportunidade para eu aplicar o conjunto de elogios que fui acumulando ao longo dos anos; e lamentar porque ao invés de elogiar, gostaria de tecer algumas críticas à autora do livro (Deusa D’Africa) em relação às circunstâncias em que este convite me foi feito.
O facto é que me é colocada esta proposta faltando poucos dias para a celebração do meu aniversário natalício. Pelo simbolismo que gira em torno deste momento na vida de um ser humano, várias reflexões de caracter existencialista são feitas porque a pessoa não sabe se comemora um certo número de anos em vida ou mais perto da morte ou, talvez, certo número  de anos em que a morte esteve tão atarefada que não se lembrou de si.
Portanto, cá entre nós, remeter alguém à beira do seu aniversário em assuntos ligados à vida e morte é uma atitude um tanto quanto arrojada porque corre-se o risco de o aniversariante recusar-se a soprar as velas, a cortar o bolo e brindar com os amigos.
Convivo com a Deusa D’Africa há 4 anos e esta é a partida mais arrojada que já me pregou. Através da sua obra “Ao Encontro da Vida ou da Morte” está a remeter-me a densas reflexões sobre estes dois monstros existencialistas – a Vida e a Morte – num momento em que estou prestes a celebrar o meu aniversário. 
E, porque são estas partidas arrojadas que nos fazem crescer, sinto-me bastante nutrido depois de ser remetido a estas reflexões por via da obra “Ao encontro da Vida ou da Morte”.
Estas densas reflexões a que me refiro são despertadas a partir do título do livro: “Ao Encontro da Vida ou da Morte” por conter em si duas palavras de elite: vida e morte. São de elite porque não são como as outras palavras nas quais facilmente identificamos os sinónimos e descrevemos os sentidos. O que é morte? O que é vida? Qual é o sinónimo de morte? Qual é o sinónimo de vida?
Por serem enigmáticos, os conceitos vida e morte acabam tendo vários significados, quer objectivos quer subjectivos. É possível pensar na vida como o estado que permite o uso das capacidades psicomotoras de um ser (ex: o João está vivo) ou o facto de uma determinada coisa estar em óptimas condições (ex: o meu comutador caiu mas ainda está vivo). É, igualmente, possível pensar na morte como o estado que não permite o uso das capacidades psicomotoras de um ser (ex: O João morreu) ou o facto de uma determinada coisa estar em más condições (ex: o meu computador caiu e morreu ali mesmo).
Portanto, toda esta diversidade de sentidos é encontrada nesta obra que discute vários assuntos de carácter social, artístico-cultural e existencialista, procurando descrever a forma como se apresentam ao sujeito poético numa atitude pós-moderna caracterizada por um cepticismo, que nos remete reflexões profundas sobre o que somos, o que fazemos e o que sentimos como seres biopsicosocioculturais. 
Em cada poema deparamo-nos com situações em que podemos questionar o seguinte: esta e aquela atitude descrita no poema leva o ser humano ao encontro da vida ou da morte, como um ser biológico, psíquico, social ou cultural?
Esta discussão de assuntos diversos é feita com base numa técnica descritiva mordaz que nos permite dizer que, nesta obra, o sujeito poético “pinta quadros com base em letras”. Temos quadros que retratam:

1. a vida ou a morte da cultura (pag. 13, última estrofe):
 “É preciso ser artista o suficiente
Para suportar o sol fulminante
E mostrar o ânus respeitante
Deste ofício com remuneração deficiente”

A atitude do artista para com a arte é demonstrada na sua complexidade do ponto de sacrifício, a ponto de não se perceber se o exercício artístico é uma caminhada ao encontro da vida da arte ou da morte do artista.

2. A vida ou a morte de valores (pag. 15, 2ª estrofe):
 “É preciso ser sério o suficiente
O senhor dos senhores na sociedade
Para não disputar netas
Com bisnetos sem sequer um dente
Querendo as desposar sem se importar com sua idade”

Aqui observa-se uma situação que melhor exemplifica o conflito vaidade masculina versus dignidade humana. Realmente! A atitude do homem em sociedade pode levá-lo ao encontro da vida da dignidade ou da morte da vaidade ou vice-versa.

3. A vida ou a morte da unidade nacional (pag. 30, 1ª estrofe)
 “Na auto-estrada, seus vizinhos gritam
E se violam porque uns dizem querer
Escutar a música Pandza outros marrabenta
Enquanto outros exigem estilos cujos nomes
Ainda jazem em sepulturas.”

Este é o retrato da mesquinhez a que a sociedade se remeteu. Neste caso, é referente à música, mas poder-se-ia estender a uma infinidade de aspectos, que, por distinguirem as pessoas em termos de afectos e desafectos, faz com que se abram querelas sociais que guiam os homens ao encontro da vida duma unidade nacional (que tende para a unicidade) ou ao encontro da morte da unidade nacional no seu verdadeiro sentido.

4. A vida ou a morte do bem-estar na cidade (pag. 30, 3ª estrofe):
 “O sol adormece na cidade
Estações aglomeradas de gente
Estradas congestionadas
E o sono volta mesmo sendo perturbado pela vizinhança.”

Aqui somos levados a reflectir em torno do nosso comportamento como citadinos por estar a habitar um sítio em que a priori pensa-se que seja o bastião da vida plena, quando o ambiente que nós próprios criamos em termos de vivências remete-nos a um caminho em que não se sabe se vamos ao encontro da vida do bem-estar no sítio onde vivemos ou da morte deste mesmo bem-estar.

5. A vida ou a morte do bom senso (pag. 35, 1ª estrofe):
 “Dizem antes de o ver
Soltando os versos da boca
Como se diz a um mendigo
- Estamos cientes da vossa miséria
Mas há indisponibilidade de recursos financeiros em nossa casa
Uma vez que priorizamos
Projectos da educação e da cultura
E não dispomos de recursos para a literatura!”

É aqui retratada uma situação, quiçá concreta que as palavras a tornaram em poesia, em que a Literatura é vista erroneamente como uma futilidade que não tem cabimento orçamental em contextos ligados à educação e cultura, o que faz com que se pense que estamos perante uma caminhada ao encontro da morte do bom-senso ou, ainda, ao encontro da sua vida pelo facto de dar alguma independência à Literatura para que, possivelmente, se beneficie de tratamento especial numa ocasião que, se calhar, nunca se irá materializar.

6.  A vida ou a morte do amor à pátria (pag. 80, 4ª e 5ª estrofes)
“Ver a família a tomar um rumo errado
Jovens juntando-se à oposição
Só para lutar ao lado do vírus do HIV/Sida
Declarando nossa derrota nesta luta.
E não puder dar de algumas palmatoadas
Aos mesmos só para mudarem de atitude e crescerem num mundo
Onde possam construí-lo em vez de cruzar os braços
E críticas aos que o tentam edificar!”

Esta atitude indiferente no momento em que determinadas acções são levadas a cabo contrasta com a atitude crítica e destrutiva da maioria dos jovens. Assim, fica-se sem saber se o amor pátrio ganha vida através de acções concretas ou através de discursos destrutivos.

Ao percorrer as páginas de “Ao Encontro da Vida ou da Morte” percebo o carácter múltiplo da poesia que nos é “servida”. E, ciente de tal multiplicidade, Deusa D’Africa cria uma igualdade na diferença.  Sendo que os poemas foram garimpados em diferentes lugares têm, no que há de mais íntimo, alguma coisa inconfundível que lhes confere a irmandade. 
Esta irmandade é cunhada com base no realismo grotesco que perpassa toda a obra através da caracterização de situações macabras e insólitas, uso de vocábulos que não são comumente usados no dia-a-dia, a ponto de se dizer que são insultuosos quando na verdade o que é insultuoso não é o vocábulo e sim os sentidos que a sociedade cria em torno dele. 
Regista-se também a carnavalização de determinados aspectos sociais que não têm o objectivo de gerar um riso inocente mas sarcástico. É esta atitude perante as situações sociais, do ponto de vista literário, que faz jus às referências registadas nesta obra a autores hegemónicos na literatura mundial como: Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire, Paul Verlaine, Conde de Lautréamont e Rainer Maria Rilkie.
Por estas e outras, “Ao Encontro da Vida ou da Morte” revela ser uma obra que vale a pena ler, mesmo para os que primam pelo saudosismo e dizem não consumir a Literatura produzida pela nova geração de escritores moçambicanos.
À todos, uma boa leitura de “Ao Encontro da Vida ou da Morte”.

Texto apresentado no lançamento de “Ao Encontro da Vida ou da Morte” na Universidade Politécnica A Politécnica (Polo de Xai-Xai, Unidade de Gaza)

Sem comentários:

Enviar um comentário