Quando
alguém é convidado a apresentar uma obra procura aplicar todo o seu manancial
de elogios, seja por motivos afectivos ou comerciais. Por
via disto, gostaria de agradecer a Deusa D’Africa e ao mesmo tempo lamentar:
agradecer pelo convite por ser uma oportunidade para eu aplicar o conjunto de
elogios que fui acumulando ao longo dos anos; e lamentar porque ao invés de
elogiar, gostaria de tecer algumas críticas à autora do livro (Deusa D’Africa)
em relação às circunstâncias em que este convite me foi feito.
O
facto é que me é colocada esta proposta faltando poucos dias para a celebração do
meu aniversário natalício. Pelo simbolismo que gira em torno deste momento na vida
de um ser humano, várias reflexões de caracter existencialista são feitas porque a pessoa não sabe se comemora um certo número de anos em vida ou mais perto da morte ou, talvez, certo número de anos em que a morte esteve tão
atarefada que não se lembrou de si.
Portanto,
cá entre nós, remeter alguém à beira do seu aniversário em assuntos ligados à
vida e morte é uma atitude um tanto quanto arrojada porque corre-se o risco de
o aniversariante recusar-se a soprar as velas, a cortar o bolo e brindar com os
amigos.
Convivo com a Deusa D’Africa há 4 anos e esta é a partida mais arrojada que já me pregou. Através da sua obra “Ao Encontro da Vida ou da Morte” está a remeter-me a densas reflexões sobre estes dois monstros existencialistas – a Vida e a Morte – num
momento em que estou prestes a celebrar o meu aniversário.
E, porque são estas partidas arrojadas que nos fazem
crescer, sinto-me bastante nutrido depois de ser remetido a estas reflexões por via da obra “Ao encontro
da Vida ou da Morte”.
Estas densas reflexões a que me refiro são despertadas a partir do título do livro:
“Ao Encontro da Vida ou da Morte” por
conter em si duas palavras de elite: vida e morte. São de elite porque não são
como as outras palavras nas quais facilmente identificamos os sinónimos e
descrevemos os sentidos. O que é morte? O que é vida? Qual é o sinónimo de
morte? Qual é o sinónimo de vida?
Por
serem enigmáticos, os conceitos vida e morte acabam tendo vários significados,
quer objectivos quer subjectivos. É possível pensar na vida como o
estado que permite o uso das capacidades psicomotoras de um ser (ex: o João
está vivo) ou o facto de uma determinada coisa estar em óptimas condições (ex:
o meu comutador caiu mas ainda está vivo). É, igualmente, possível pensar na morte como o
estado que não permite o uso das capacidades psicomotoras de um ser (ex: O João
morreu) ou o facto de uma determinada coisa estar em más condições (ex: o meu
computador caiu e morreu ali mesmo).
Portanto,
toda esta diversidade de sentidos é encontrada nesta obra que discute vários
assuntos de carácter social, artístico-cultural e existencialista,
procurando descrever a forma como se apresentam ao sujeito poético numa atitude
pós-moderna caracterizada por um cepticismo, que nos remete reflexões profundas sobre o que somos, o que fazemos e o que sentimos como seres biopsicosocioculturais.
Em cada poema deparamo-nos com situações em que podemos questionar o
seguinte: esta e aquela atitude descrita
no poema leva o ser humano ao encontro da vida ou da morte, como um ser
biológico, psíquico, social ou cultural?
Esta discussão de assuntos diversos é feita com base numa técnica descritiva
mordaz que nos permite dizer que, nesta obra, o sujeito poético “pinta quadros com base em letras”. Temos
quadros que retratam:
1. a
vida ou a morte da cultura (pag. 13, última
estrofe):
“É preciso ser artista o suficiente
Para suportar o sol
fulminante
E mostrar o ânus
respeitante
Deste ofício com
remuneração deficiente”
A
atitude do artista para com a arte é demonstrada na sua complexidade do ponto
de sacrifício, a ponto de não se perceber se o exercício artístico é uma
caminhada ao encontro da vida da arte ou da morte do artista.
2. A
vida ou a morte de valores (pag. 15, 2ª estrofe):
“É preciso ser sério o suficiente
O senhor dos senhores
na sociedade
Para não disputar netas
Com bisnetos sem sequer
um dente
Querendo as desposar
sem se importar com sua idade”
Aqui observa-se uma situação que melhor exemplifica o conflito vaidade masculina versus dignidade humana. Realmente! A atitude
do homem em sociedade pode levá-lo ao encontro da vida da dignidade ou da morte
da vaidade ou vice-versa.
3. A
vida ou a morte da unidade nacional (pag. 30, 1ª
estrofe)
“Na auto-estrada, seus vizinhos gritam
E se violam porque uns
dizem querer
Escutar a música Pandza
outros marrabenta
Enquanto outros exigem
estilos cujos nomes
Ainda jazem em
sepulturas.”
Este
é o retrato da mesquinhez a que a sociedade se remeteu. Neste caso, é
referente à música, mas poder-se-ia estender a uma infinidade de aspectos, que, por distinguirem as pessoas em termos de afectos e desafectos, faz com que se
abram querelas sociais que guiam os homens ao encontro da vida duma unidade
nacional (que tende para a unicidade) ou ao encontro da morte da unidade nacional
no seu verdadeiro sentido.
4. A
vida ou a morte do bem-estar na cidade
(pag. 30, 3ª estrofe):
“O sol adormece na cidade
Estações aglomeradas de
gente
Estradas congestionadas
E o sono volta mesmo
sendo perturbado pela vizinhança.”
Aqui
somos levados a reflectir em torno do nosso comportamento como citadinos por
estar a habitar um sítio em que a priori
pensa-se que seja o bastião da vida plena, quando o ambiente que nós próprios
criamos em termos de vivências remete-nos a um caminho em que não se sabe se
vamos ao encontro da vida do bem-estar no sítio onde vivemos ou da morte deste
mesmo bem-estar.
5. A
vida ou a morte do bom senso (pag. 35, 1ª estrofe):
“Dizem
antes de o ver
Soltando os versos da
boca
Como se diz a um
mendigo
- Estamos cientes da
vossa miséria
Mas há
indisponibilidade de recursos financeiros em nossa casa
Uma vez que priorizamos
Projectos da educação e
da cultura
E não dispomos de
recursos para a literatura!”
É
aqui retratada uma situação, quiçá concreta que as palavras a tornaram em
poesia, em que a Literatura é vista erroneamente como uma futilidade que não
tem cabimento orçamental em contextos ligados à educação e cultura, o que faz
com que se pense que estamos perante uma caminhada ao encontro da morte do bom-senso ou, ainda, ao encontro da sua vida pelo facto de dar alguma
independência à Literatura para que, possivelmente, se beneficie de tratamento
especial numa ocasião que, se calhar, nunca se irá materializar.
6. A
vida ou a morte do amor à pátria (pag. 80, 4ª e 5ª
estrofes)
“Ver a família a tomar
um rumo errado
Jovens juntando-se à
oposição
Só para lutar ao lado
do vírus do HIV/Sida
Declarando nossa
derrota nesta luta.
E não puder dar de algumas
palmatoadas
Aos mesmos só para
mudarem de atitude e crescerem num mundo
Onde possam construí-lo
em vez de cruzar os braços
E críticas aos que o
tentam edificar!”
Esta
atitude indiferente no momento em que determinadas acções são levadas a cabo
contrasta com a atitude crítica e destrutiva da maioria dos jovens. Assim, fica-se
sem saber se o amor pátrio ganha vida através de acções concretas ou através de
discursos destrutivos.
Ao
percorrer as páginas de “Ao Encontro da
Vida ou da Morte” percebo o carácter múltiplo da poesia que nos é
“servida”. E, ciente de tal multiplicidade, Deusa D’Africa cria uma igualdade
na diferença. Sendo que os poemas foram garimpados em diferentes
lugares têm, no que há de mais íntimo, alguma coisa inconfundível que lhes
confere a irmandade.
Esta irmandade é cunhada com base no realismo grotesco que
perpassa toda a obra através da caracterização de situações macabras e insólitas,
uso de vocábulos que não são comumente usados no dia-a-dia, a ponto de se dizer que são
insultuosos quando na verdade o que é insultuoso não é o vocábulo e sim os
sentidos que a sociedade cria em torno dele.
Regista-se também a carnavalização de
determinados aspectos sociais que não têm o objectivo de gerar um riso inocente
mas sarcástico. É esta atitude perante as situações sociais, do ponto de
vista literário, que faz jus às referências registadas nesta obra a autores
hegemónicos na literatura mundial como: Arthur Rimbaud, Charles Baudelaire,
Paul Verlaine, Conde de Lautréamont e Rainer Maria Rilkie.
Por
estas e outras, “Ao Encontro da Vida ou
da Morte” revela ser uma obra que vale a pena ler, mesmo para os que primam
pelo saudosismo e dizem não consumir a Literatura produzida pela nova geração de escritores moçambicanos.
À todos,
uma boa leitura de “Ao Encontro da Vida
ou da Morte”.
Texto apresentado no lançamento
de “Ao Encontro da Vida ou da Morte”
na Universidade Politécnica A Politécnica (Polo de Xai-Xai, Unidade de Gaza)
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