Não
há nada mais patético que acreditar que todos podemos tudo. É, em contrapartida, exactamente esta a ideia difundida por toda a máquina democratizante que
entende a noção de igualdade de direitos como igualdade de oportunidades. E, cá
entre nós, esta ideia encontrou na política um difusor perfeito, do qual ora se
beneficia, ora se envergonha.
Antes
de sustentar a bipolaridade desta relação (política/democracia), importa
discorrer sobre o conceito de Democracia.
A priori,
tal como TORRES (2003) replico a visão do sociólogo italiano Humberto Cerroni,
assumindo a Democracia com método e como conteúdo. Para o primeiro caso, o
autor (op. cit) postula que a Democracia é relativa a métodos de representação
política, as regras de eleição dos governantes, os direitos de fazer oposição
ao governo, etc. Diríamos, em virtude disso, que esta é a “democracia de
escritório”. No segundo caso, que melhor se encaixa nas intenções discursivas
deste texto, a democracia relaciona-se com a ideia de participação política do
povo nos assuntos públicos. Portanto, esta última noção de democracia desloca-se
da burocracia administrativa e materializa-se no fazer diário das pessoas.
E,
é nesta materialização quotidiana em que a
Democracia se beneficia da política ou se envergonha. Isto explica-se pelo
facto de a política servir-se desta ideia democrática do “nós podemos” (yes, we can)
para engendrar uma revolução popular em prol dum certo objectivo dando assim
uma oportunidade para que a ideia do “nós
podemos” venha à tona: nós podemos
mudar o regime; nós podemos combater
a pobreza; nós podemos combater o
terrorismo, etc.
Entretanto,
esta azáfama do “nós podemos”
envergonha-se perante o seu maior difusor quando, por exemplo, concretiza-se o
objectivo traçado porque, automaticamente, emerge um discurso destoante do
primeiro que é: “nem todos podemos” (nem todos podemos governar, nem todos podemos alcançar isto ou
aquilo, nem todos podemo-nos
beneficiar disto ou aquilo, etc.)
Neste
sentido, estes discursos nada harmónicos e abafadores um do outro não se
esgotam numa compreensão ou condescendência pacifista, pois, a mesma mente que
nutriu a ideia promissora de que podia tudo e, em seguida, foi obrigada a
conceber as suas próprias limitações de que se havia esquecido, remete-se a reflexões
comparatistas como: “porquê ele pode e eu
não posso?”, “o que ele tem que não
tenho?”, “porquê todos podíamos e
agora só ele pode?”, etc.
É
esta a tónica de comparações que desagua num sentimento que é tido como um dos
sete pecados capitais: a inveja. O que significa que a ideia de que uma
sociedade democrática é um mundinho de “yes,
we can” é deveras prejudicial num mundo em que o oligarquismo se enraizou e
perante uma realidade tão desconforme quanto a humanidade.
Per se,
a situação agrava-se ainda mais em sociedades capitalistas por serem
extraordinariamente consumistas e competitivas. Nestas sociedades é constantemente
reavivada a filosofia do ganhar/perder, onde
o discurso que reina é "Eu quero
ganhar e não me importo se você perder".
Tal
como afirma John Gray em “Homens são de
Marte, Mulheres são de Vênus”, embora seja num contexto deferente deste,
“na maioria dos desportos hoje em dia nós podemos
ver uma extensão desse código competitivo (…). Por exemplo, no tênis, eu não só
quero ganhar, mas também tentar fazer meu parceiro perder, fazendo com que seja
difícil para ele devolver minhas bolas. Eu me divirto ganhando, apesar do meu
parceiro perder.”
Desta
feita, quando o espírito competitivo diz “já
não vale a pena” gera-se a melancolia, a depressão e, claro, a inveja: “porquê ele tem/consegue/ganha se, na
verdade, todos podemos tudo?”
A
meu ver, esta venda da marca democratizante “yes,
we can” (nós podemos) que já
tomou conta não só dos políticos como dos religiosos e palestrantes com os seus
discursos motivacionais, devia comportar, em jeito de reboque, uma visão
funcionalista da sociedade. Segundo esta forma de raciocínio, “a sociedade é formada por partes
componentes, diferenciadas, inter-relacionadas e interdependentes,
satisfazendo, cada uma, funções essenciais da vida social”.
Engraçado!
Esta forma de conceber os agentes sociais remete-me a uma narrativa muito curta
porém rica em conteúdo intitulada “os
membros e o estômago”. O facto é que:
“As mãos e os
pés revoltaram-se um dia. Trabalhamos tanto, estamos em contínuo lidar e tudo é
em proveito do estômago, que aí fica folgado, empregando em vantagem sua quanto
adquirimos. Não estamos mais por isso, queremos folgar, e viva o estômago como
puder. Admoestações, rogos, instâncias, nada valeu. O estâmago ficou em jejum;
mas para logo todo o corpo caiu em debilidade; braços, pernas, pés e mãos foram
dos primeiros a sentir um entorpecimento, uma languidez que os assustou;
compreenderam que iam morrendo; voltaram pois ao seu antigo ofício, e dentro em
pouco, graças ao condescendente estômago, se acharam restituídos à antiga
robustez.”
Moral
da estória: todos somos membros de um vasto corpo, que é a sociedade; cada um
exerce funções especiais, mais privilegiadas, mais humildes, porém todas
indispensáveis para a prosperidade e até para a existência de todos.
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