Em Choriro narra-se a presença de
um invasor português na condição de soldado de infantaria em terras do vale do
Zambeze, em momentos que antecederam a intensificação e massificação do
comércio de escravos.
Sendo
proveniente de uma outra cultura com outra cosmovisão bem diferente da que fora
encontrar na forma de vida do povo da terra que invadiu, Luíz António Gregódio
(o invasor) não se submete á tendência colonial de opressão e escravização de
outros povos, mas contrariamente, integra-se harmoniosamente na cultura do povo
cujas terras invadiu e estabelece um vínculo muito forte com as tradições
locais a ponto de chegar a ser o rei daquelas terras, não por imposição mas
pela mesma via com que os nativos ascendiam ao poder.
Nesta
integração, Luíz António Gregódio (ou simplesmente Nhabezi, como passara a ser
chamado), é que se envolve no modo de vida do povo invadido sem trazer mudanças
no sentido de alterar as vivências estabelecidas.
É
nesta relação harmoniosa com os modus
vivendi daquela povoação que Nhabezi manifesta o desejo de se transformar
num espírito Mpondoro, um espírito de leão que encarna o soberano para que este continue
a governar espiritualmente os seus homens, mesmo após a morte.
Por
outro lado, a obra apresenta-nos uma personagem secundária (António Gonzaga, de nome, e Chicuacha de
alcunha) compatriota de Nhabezi que embora admire a capacidade do então rei
das vastas terras do vale do Zambeze e tenha abandonado a batina para se
acasalar em terras africanas continua com uma visão ocidentalizada do
continente africano que, em parte, fora paulatinamente se transformando pois,
“nas terras de
Gregódio, viu com todo o espanto do mundo, os cafres a manufacturarem pólvora
(…) perante tal feito, inédito em mentes concebidas como selvagens (…) abjurou
os pecaminosos adjectivos que ainda sobravam no seu diminuto léxico sobre o
modo de vida dos pretos da savana e, sem espantar ninguém, abandonou em
definitivo os incómodos hábitos de padre que trouxera de Lisboa (…)
concubinando-se em seguida (…) com Fita…”
Choriro (p. 13)
Observa-se,
portanto, que do ponto de vista social, António Gonzaga adoptou a vida do povo
do vale do Zambeze, todavia, a sua cosmovisão não se desvincula do universo
ocidental, pois em meio a uma realidade que era desconhecida, manifesta uma
postura diferente da do povo nativo daquele lugar e que, por sua vez, tem uma
outra lógica de explicação dos fenómenos naturais e humanos, tal como demonstra
o seguinte trecho:
“os indígenas,
nas frequentes e animadas conversas em volta da fogueira, de tanto acharem
natural a beleza circundante, não se extasiavam com o intermitente luzir dos
pirilampos, a miríade de estrelas abarrotando o céu, o sussurro das folhas das
árvores, ou o longínquo rugir de um leão na savana dos predadores da noite.
Eles pasmavam-se com o encantamento de Chicuacha ante o nascimento, na entrada
abrupta da noite, das ilhas de fogo com que os canoeiros e carregadores
pintavam as noites ao longo do leito do Zambeze. Na escuridão das águas,
era-lhe possível observar os intrigantes olhos dos crocodilos que à direita e à
esquerda perscrutavam os movimentos humanos. Seguros nos pequenos e
confortantes pedaços de terra, os canoeiros pouca atenção prestavam aos répteis
das águas. Estes, silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo
iam, aos poucos, fenecendo com a madrugada que ia abatendo às estrelas.” Choriro (p, 19-20)
É com este resplandecer das diferenças entre o mundo de
António Gonzaga e o do povo descrito em Choriro que se nota o conflito entre
duas realidades detentoras de cosmologias díspares. Sendo que, pelo facto de
Gonzaga ser uma alegoria da visão ocidental sobre outras lógicas,
todos os fenómenos que não coadunam com o já conhecido mundo são, aos seus
olhos, pura superstição, objecto de espanto ou motivo de hesitação entre
conceber o visto como algo real ou imaginário, tal como manifesta na conversa
com Gregódio (o português que tomara o modo de vida do povo que invadiu):
-
Será?...Será que acreditas no tratamento que venho fazendo?
-
Há áreas que só a Deus pertencem, Gregódio.
-
Não acreditas mesmo nos espíritos?
-
Com o alcance do Senhor, não.
-
O que fazes aqui, então?
-
Respirar e viver este presente que pode fugir. Os assuntos depois da morte não
estão nas mãos dos homens.
-
Só o teu Deus é que os pode decifrar?
-
Ele é que separa as águas da vida e da morte, Gregódio.
-
O trabalho dos curandeiros é uma palhaçada, então?...
Choriro (p. 23)
Neste confronto, nota-se aqui uma
atitude segregadora por parte de Gonzaga (que representa a visão ocidental), o
que não ocorre com Gregódio (que representa, de forma geral, todas as lógicas
de raciocínio tidas como periféricas), tal como podemos observar no seguinte
diálogo:
-
(…) Aqui as regras são mais simples. Não são precisas missas e orações chatas
para que tenhas a protecção dos espíritos. A fé está em aceitares as regras que
a dura vida nos impõe.
-
São maneiras diferentes de encarar a fé.
-
Sim…São maneiras diferentes…Aqui não são precisas batinas, Chicuacha.
-
Tens a tua razão.
-
Se tenho… Choriro (p. 32)
Portanto,
regista-se aqui o confronto entre cosmologias que poderão definir as diferentes
formas com que os leitores irão conceber a realidade retratada na obra, gerando
uma certa relatividade na noção que se terá do carácter fantástico ou não da
mesma realidade. Tendo, no entanto, em conta que na óptica de Todorov “a principal característica do fantástico e
que o diferencia dos demais géneros que tratam do mesmo assunto (o maravilhoso
e o estranho) é a hesitação” pressupõe-se que para António Gonzaga, sendo
representativo da visão ocidental, os factos retratados em Choriro seriam lidos como fantásticos (devido à sua hesitação na
assunção do carácter real ou ilusório dos factos). Portanto, não havendo esta
hesitação, ir-se-ia conceber tais factos ou como estranhos (devido à assunção
do carácter real mas espantoso do curandeirismo, por exemplo) ou como
maravilhosos (pela simples admiração em presenciar algo que para si era
insólito e irreal).
Contudo,
Choriro apresenta-nos outro leitor
implícito no qual o efeito fantástico não se manifesta nem através das suas
correlações (estranho e maravilhoso). Estamos perante um leitor que,
diferentemente do primeiro, tem sobre os factos uma visão indiferente pois não
hesita entre o valor real ou imaginário do que vê (não estranha a realidade
descrita nem se maravilha) por ser algo intrínseco à sua própria visão do mundo
que tem uma lógica diferente da do racionalismo ocidental.
Observa-se,
também, que o narrador joga um papel importante neste aspecto porque embora
recorra ao imperfeito em alguns casos, este não tem carácter de geração de
dúvida mas sim de um singelo relato do que por aquelas terras se vivia. Note-se
ainda que o narrador não envereda nem pela modalização e, muito menos, pela
descrição cómica dos factos. Portanto, tal como alerta TODOROV (1970) a
modalização e o imperfeito (empregue no sentido de gerar dúvida) fundamentariam
o fantástico e, na óptica de FURTADO (1980) a comicidade acabaria com a
hesitação que é imprescindível para a ocorrência do fantástico.
Diante
destes aspectos observados na óptica das personagens, do leitor/narratário
(sobretudo) e do narrador, fica indefinido o carácter fantástico dos factos
retratados em “Choriro” seja por via
da fundamentação seja por via da anulação, se tomarmos como ponto de referência
a cosmovisão do povo retratado na obra. Todavia, não teríamos igual inferência
caso tivéssemos como pressuposto a visão do racionalismo ocidental.
Este
facto remete-nos à assunção da existência de uma Relatividade na noção que se
pode ter do fantástico tradicional, tal como postula MATUSSE (1998: 171) apud MANJATE (2011) admitindo que
“Não
há (…) um padrão válido para todas as sociedades e civilizações a partir do
qual se possa traçar uma fronteira entre o que é e o que não é fantástico. As
nossas reflexões partem de uma visão do mundo assente no modelo racionalista
ocidental, mas os universos retratados nas obras pertencem a civilizações onde
imperam outros modelos de pensamento, outras crenças, enfim, outras concepções
do que é a ordem natural.”
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