sábado, 21 de março de 2015

A Relatividade da Noção do Fantástico em Choriro de Ungulani Ba Ka Khosa

Em Choriro, narra-se a presença de um invasor português na condição de soldado de infantaria em terras do vale do Zambeze, em momentos que antecederam a intensificação e massificação do comércio de escravos.
Sendo proveniente de uma outra cultura com outra cosmovisão bem diferente da que fora encontrar na forma de vida do povo da terra que invadiu, Luíz António Gregódio (o invasor) não se submete á tendência colonial de opressão e escravização de outros povos, mas contrariamente, integra-se harmoniosamente na cultura do povo cujas terras invadiu e estabelece um vínculo muito forte com as tradições locais a ponto de chegar a ser o rei daquelas terras, não por imposição mas pela mesma via com que os nativos ascendiam ao poder.
Nesta integração, Luíz António Gregódio (ou simplesmente Nhabezi, como passara a ser chamado), é que se envolve no modo de vida do povo invadido sem trazer mudanças no sentido de alterar as vivências estabelecidas.
É nesta relação harmoniosa com os modus vivendi daquela povoação que Nhabezi manifesta o desejo de se transformar num espírito Mpondoro, um espírito de leão que encarna o soberano para que este continue a governar espiritualmente os seus homens, mesmo após a morte.
Por outro lado, a obra apresenta-nos uma personagem secundária (António Gonzaga, de nome, e Chicuacha de alcunha) compatriota de Nhabezi que embora admire a capacidade do então rei das vastas terras do vale do Zambeze e tenha abandonado a batina para se acasalar em terras africanas continua com uma visão ocidentalizada do continente africano que, em parte, fora paulatinamente se transformando pois,
“nas terras de Gregódio, viu com todo o espanto do mundo, os cafres a manufacturarem pólvora (…) perante tal feito, inédito em mentes concebidas como selvagens (…) abjurou os pecaminosos adjectivos que ainda sobravam no seu diminuto léxico sobre o modo de vida dos pretos da savana e, sem espantar ninguém, abandonou em definitivo os incómodos hábitos de padre que trouxera de Lisboa (…) concubinando-se em seguida (…) com Fita…” Choriro (p. 13)
Observa-se, portanto, que do ponto de vista social, António Gonzaga adoptou a vida do povo do vale do Zambeze, todavia, a sua cosmovisão não se desvincula do universo ocidental, pois em meio a uma realidade que era desconhecida, manifesta uma postura diferente da do povo nativo daquele lugar e que, por sua vez, tem uma outra lógica de explicação dos fenómenos naturais e humanos, tal como demonstra o seguinte trecho:
“os indígenas, nas frequentes e animadas conversas em volta da fogueira, de tanto acharem natural a beleza circundante, não se extasiavam com o intermitente luzir dos pirilampos, a miríade de estrelas abarrotando o céu, o sussurro das folhas das árvores, ou o longínquo rugir de um leão na savana dos predadores da noite. Eles pasmavam-se com o encantamento de Chicuacha ante o nascimento, na entrada abrupta da noite, das ilhas de fogo com que os canoeiros e carregadores pintavam as noites ao longo do leito do Zambeze. Na escuridão das águas, era-lhe possível observar os intrigantes olhos dos crocodilos que à direita e à esquerda perscrutavam os movimentos humanos. Seguros nos pequenos e confortantes pedaços de terra, os canoeiros pouca atenção prestavam aos répteis das águas. Estes, silenciosos, reluziam os olhos enquanto as línguas de fogo iam, aos poucos, fenecendo com a madrugada que ia abatendo às estrelas.” Choriro (p, 19-20)
É com este resplandecer das diferenças entre o mundo de António Gonzaga e o do povo descrito em Choriro que se nota o conflito entre duas realidades detentoras de cosmologias díspares. Sendo que, pelo facto de Gonzaga ser uma alegoria da visão ocidental sobre outras lógicas, todos os fenómenos que não coadunam com o já conhecido mundo são, aos seus olhos, pura superstição, objecto de espanto ou motivo de hesitação entre conceber o visto como algo real ou imaginário, tal como manifesta na conversa com Gregódio (o português que tomara o modo de vida do povo que invadiu):
- Será?...Será que acreditas no tratamento que venho fazendo?
- Há áreas que só a Deus pertencem, Gregódio.
- Não acreditas mesmo nos espíritos?
- Com o alcance do Senhor, não.
- O que fazes aqui, então?
- Respirar e viver este presente que pode fugir. Os assuntos depois da morte não estão nas mãos dos homens.
- Só o teu Deus é que os pode decifrar?
- Ele é que separa as águas da vida e da morte, Gregódio.
- O trabalho dos curandeiros é uma palhaçada, então?... Choriro (p. 23)
Neste confronto, nota-se aqui uma atitude segregadora por parte de Gonzaga (que representa a visão ocidental), o que não ocorre com Gregódio (que representa, de forma geral, todas as lógicas de raciocínio tidas como periféricas), tal como podemos observar no seguinte diálogo:
- (…) Aqui as regras são mais simples. Não são precisas missas e orações chatas para que tenhas a protecção dos espíritos. A fé está em aceitares as regras que a dura vida nos impõe.
- São maneiras diferentes de encarar a fé.
- Sim…São maneiras diferentes…Aqui não são precisas batinas, Chicuacha.
- Tens a tua razão.
- Se tenho… Choriro (p. 32)
Portanto, regista-se aqui o confronto entre cosmologias que poderão definir as diferentes formas com que os leitores irão conceber a realidade retratada na obra, gerando uma certa relatividade na noção que se terá do carácter fantástico ou não da mesma realidade. Tendo, no entanto, em conta que na óptica de Todorov “a principal característica do fantástico e que o diferencia dos demais géneros que tratam do mesmo assunto (o maravilhoso e o estranho) é a hesitação” pressupõe-se que para António Gonzaga, sendo representativo da visão ocidental, os factos retratados em Choriro seriam lidos como fantásticos (devido à sua hesitação na assunção do carácter real ou ilusório dos factos). Portanto, não havendo esta hesitação, ir-se-ia conceber tais factos ou como estranhos (devido à assunção do carácter real mas espantoso do curandeirismo, por exemplo) ou como maravilhosos (pela simples admiração em presenciar algo que para si era insólito e irreal).
Contudo, Choriro apresenta-nos outro leitor implícito no qual o efeito fantástico não se manifesta nem através das suas correlações (estranho e maravilhoso). Estamos perante um leitor que, diferentemente do primeiro, tem sobre os factos uma visão indiferente pois não hesita entre o valor real ou imaginário do que vê (não estranha a realidade descrita nem se maravilha) por ser algo intrínseco à sua própria visão do mundo que tem uma lógica diferente da do racionalismo ocidental.
Observa-se, também, que o narrador joga um papel importante neste aspecto porque embora recorra ao imperfeito em alguns casos, este não tem carácter de geração de dúvida mas sim de um singelo relato do que por aquelas terras se vivia. Note-se ainda que o narrador não envereda nem pela modalização e, muito menos, pela descrição cómica dos factos. Portanto, tal como alerta TODOROV (1970) a modalização e o imperfeito (empregue no sentido de gerar dúvida) fundamentariam o fantástico e, na óptica de FURTADO (1980) a comicidade acabaria com a hesitação que é imprescindível para a ocorrência do fantástico.
Diante destes aspectos observados na óptica das personagens, do leitor/narratário (sobretudo) e do narrador, fica indefinido o carácter fantástico dos factos retratados em “Choriro” seja por via da fundamentação seja por via da anulação, se tomarmos como ponto de referência a cosmovisão do povo retratado na obra. Todavia, não teríamos igual inferência caso tivéssemos como pressuposto a visão do racionalismo ocidental.
Este facto remete-nos à assunção da existência de uma Relatividade na noção que se pode ter do fantástico tradicional, tal como postula MATUSSE (1998: 171) apud MANJATE (2011) admitindo que
“Não há (…) um padrão válido para todas as sociedades e civilizações a partir do qual se possa traçar uma fronteira entre o que é e o que não é fantástico. As nossas reflexões partem de uma visão do mundo assente no modelo racionalista ocidental, mas os universos retratados nas obras pertencem a civilizações onde imperam outros modelos de pensamento, outras crenças, enfim, outras concepções do que é a ordem natural.”

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