domingo, 14 de abril de 2013

UMA CONVERSA FIADA COM MANUSSE JOSÉ

Encontrei Manusse José pelas ondas da internet. Eu, navegando de Xai-Xai para o mundo, e ele, de Luanda, também para o mundo, passando por Xai-Xai (Moçambique) – sua terra natal. Nestas navegações encontramo-nos. Além de um encontro virtual de dois indivíduos, aquilo era o encontro de duas almas inquietas que na busca da quietude foram se crivar nos braços da literatura. É por esta e outras razões que o convidei a ter uma conversa fiada comigo, Elísio Miambo.



Elísio Miambo: Quem é Manusse José? Um escritor moçambicano residente em Angola ou um escritor angolano que nasceu em Moçambique?
Manusse José: Pois é... antes de mais, diria que sou antes filho de mães que esta África criou, com forças e dores desmedidas. Porém, nesse ser filho das mães que a África criou, sou moçambicano por localização geográfica e, consequentemente, se assim podemos dizer - escritor moçambicano.

E.M: Como é que surgiu o interesse pela literatura?
M.J: Acho que o meu interesse pela literatura é algo inato, no sentido de logo na infância ter me preocupado com os livros. Todavia, com a falta de livro na minha casa e também na escola, para quem conhece as nossas escolas, só vim a desenvolver e aprofundar o meu interesse literário com a leitura de alguns poemas de Luís de Camões, que constava dum livro do 7º ano de escolaridade que a minha mana tinha. Portanto, aí a minha veia literária aguçou-se e parti para a acção... Foi assim, de uma forma simples, algo natural.

E.M: O conceito de intertextualidade veio comprovar que nenhum escritor faz-se do nada. Portanto, a que escritores/obras atribuiria a “culpa” de lho ter tornado no escritor que é hoje?...dito de outro modo, quem o influenciou?
M.J: Embora não de um modo geral, diria que o Cântico dos Cânticos, livro que consta do Primeiro Testamento da Bíblia, foi meu primeiro contacto com algo, assim o digo, literário. Ipso facto, o autor desse livro é o primeiro culpado. E só mais tarde, como já referi, tive uns poemas de Luís de Camões. Entretanto, em lista diria que tenho Rui de Noronha, Rui Nogar, Rui Knopli, Noémia de Sousa, José Craveirinha, como primeiros actores do crime e actualmente tenho Pepetela, Ua Nyenga Xitu, Mia Couto, Paulina Chiziane e Luís Bernardo Honwana como aniquiladores...

E.M: (risos) Por que escreve?
M.J: Escrevo para ser feliz. Não que a minha felicidade se encontre somente na escrita, que me entendam bem. Quando escrevo e quando termino de escrever, por exemplo um poema, fico muito feliz e daí posso dizer que a escrita é um dos centros, de muitos que há, onde habita a minha felicidade. Por isso escrevo...

E.M: Einstein, diz que o trabalho é feito por 1% de inspiração e 99% de transpiração. Qual é o seu conceito de inspiração no exercício da escrita?
M.J: Com certeza... porém, se calhar devamos separar o realmente cientifico (no verdadeiro sentido da palavra ciência) do literário. Pois se não fizermos antes esta separação corremos o risco de cairmos em precipitações desavergonhadas. Eu digo e com total convicção que a escrita é acompanhada por aqueles dois conceitos. Por um lado encontramos uma escrita que é inspiração e no outro que é transpiração. Tomemos como exemplos: uma obra filosófica na sua constituição é transpiração do que inspiração, e uma obra poética é quase na sua constituição, inspiração.
Nesse, ponto ambos conceitos na escrita andam de mãos dadas...E vão se intercalando consoante o tipo de escrito, como o dia sucede a noite e vice-versa.

E.M: O que vem primeiro? Se eu dissesse que inspiração e apenas a origem da trama e a transpiração é o espaço onde notamos "quem é quem"...devido a selecção das palavras, do estilo, da forma, etc...concordaria comigo?
M.J: Decerto que sim... Vem primeiro a inspiração. Eu concebo esses conceitos como os que a filosofia de Platão e Aristóteles trataram de esclarecer, embora não de uma forma sumária, os conceitos de Matéria e Forma.
Estes dois conceitos andam juntos e são por si necessários. Separá-los de uma forma absoluta é pôr em causa a sua harmonia e subordinar cada um deles é pôr é causa a necessidade de cada um deles.

E.M: Obviamente!
Existe hoje em dia uma distinção entre os escritores: diz-se que existem os que escrevem para serem lidos (os das massas) e existem os que escrevem para serem estudados (os da elite académica).
Como é que se posiciona em relação a esse aspecto?
M.J: Eu lamento muito em tomar partido nestas quase absurdas discussões. Porque para mim, escrever tem outro sentido, por isso é que disse mais acima que escrevo para ser feliz. Ora, dizer que há uns que escrevem para serem lidos e outros que escrevem para serem estudados, é pôr em causa a própria escrita. A questão que eu vejo logo que está em discussão é de conceitos.
Eu diria que todos os que escrevem, deveriam escrever para serem lidos pois este é primeiro processo... Pois se quisermos pôr em questão estes conceitos diríamos que não se estuda o que não se leu... Isto é, eu não posso partir para análise de um texto sem antes o ter lido.

E.M: Moçambique é um país com uma considerável maioria de gente que não lê, ou por falta de domínio da língua portuguesa ou mesmo por falta de interesse…não falemos do preço do livro que isso fica para outra conversa…
Como é que vê a sobrevivência duma literatura que se quer massiva, num cenário destes?
M.J: Para que a literatura sobreviva precisamos de pôr condimentos necessários. Isto é, educarmos as massas, porque não é que estas não podem, mas encontram-se ante uma dificuldade passageira. Para mim concentrar a literatura somente no âmbito académico é cortar-lhe a sua essência. Ela é do povo e não de uma parte do povo.

E.M: Qual é a leitura que faz da literatura feita actualmente em Moçambique e em Angola?
M.J: Bom... a literatura dos dois países está assente sobre as bases do passado. Ou seja, tem o seu ponto de partida nos escritores do passado. Daí que encontramos, hoje em dia, no mesmo escritor, vários escritores. Um escritor desdobra-se em vários para tentar ser ele mesmo nesses vários.
A literatura dos dois países está num bom caminho. E gozam de fortes agentes fazedores da escrita. Ainda muito jovens, embora não tenham penetrado os espaços consagrados. Porque para lá chegar é preciso transpirar.

E.M: Parece-me que convive com alguns novos escritores tanto física como virtualmente. Há alguns traços semelhantes entre eles? Se sim, quais?
M.J: Pois é... Diria que os traços unificadores dos escritores com que tenho convivido são, em número, três: a escrita memorialista, descritiva e intimista...
Estes traços são apenas os que abundam entre os meus contemporâneos… e em com maior tónica a intimista e descritiva...

E.M: Pois, pois, pois!!! Há entre eles um a quem admira pela qualidade na escrita?
M.J: Olha, eu admiro a todos. Todos me atraem. Tenho muitos admirados em Moçambique, cá em Angola e também no Brasil. Portanto, listá-los seria um tempo perdido.

E.M: Se tivesse que agrupar os novos escritores numa escola literária ou ideologia…que directrizes acha que estes deveriam seguir no que concerne à temática e até ao estilo? Ao exemplo do realismo português, modernismo brasileiro, negritude, etc...
M.J: Agrupá-los-ia nos dois últimos, isto é. Modernismo brasileiro e Negritude.

E.M: Porquê? Há alguma razão específica para tal?
M.J: Pois é... Há uma grande tendência de colocar enfoque naquilo que caracteriza a cultura, o estado social onde tais escritores estão inseridos. Sem quase nenhuma grande preocupação com balizas postas pelos cultores do realismo…
E isso é uma característica do modernismo brasileiro. E em muitos textos entre os nossos há invocação profunda da negritude. Afirmação da identidade negra...

E.M: Acha que textos que invocam a África como mãe-negra, ao estilo da negritude, continuam tendo enquadramento hoje?
M.J: Decerto que sim. Para mim são os textos que deixarão em pé as colunas de africanidade perante o grande monstro que é globalização. Agora não serão usados como protestos, como procurar de identidade, mas como colunas angulares.
Por exemplo eu, tenho entre meus poemas um intitulado "Nostra Mater Africa"... um poema no qual fico ligado de profunda alma com a minha africanidade...

E.M: Está haver um pequeno desgaste no uso dos “atropelos” na língua portuguesa como marca identitária, como estilo ou até como forma de subversão ao padrão (português europeu) que é teoricamente seguido aqui. Não acha que há outras formas de explorar a identidade do povo moçambicano, do ponto de vista linguístico, sem esses “atropelos” que já estão praticamente "fora de moda"?...sem contar que acabam acomodando os não amadurecidos o suficiente para escrever…
M.J: De facto é uma questão de per si actual e atuante. Sinceramente, para mim, embora esteja entre os que atropelam o português europeu, não somos mais moçambicanos quando atropelamos a português. Embora haja quem diga que não há português padrão, para mim em particular o português europeu é ainda significativo.
Não sou menos moçambicano quando uso português europeu e nem sou mais moçambicano quando o atropelo.

E.M: Há muito exercício literário em redes sociais, blogs…não acha que as editoras moçambicanas, os críticos e outros agentes de toda a instituição literária saem a perder ao se manterem distantes desse “arrebatamento” todo?
M.J: Certamente saem a perder. Mas também há que termos em conta que uma obra em papel (uma obra editada) é muito melhor que as que encontramos aqui nas redes sociais, em blog etc... Não é imperativo que as editoras e os críticos literários engajem-se nesta onda, mas o imperativo é que fiquem atentos a este novo espectáculo.
Eu vejo as redes sociais como meios de exposição. Onde cada um expõe o que é seu e pelo número das exposições acabamos por ler poucos ou quase nada... Todavia, é muito importante estar em alerta...

E.M: Pode “segredar-nos” os seus planos e projectos literários?
M.J: (risos) Acho que esta é a pergunta mais difícil. Eu não gosto tanto de projectos e planos, porque são fatigantes. Mas nem com isso deixo de me projectar. Estou na linha de poesia, gostaria de recuperar o classicismo, embora seja já entre nós caduco, mas eu ainda sinto uma grande atracção por ele. Tenho planos de dentro em breve editar os meus guardados poemas e com isso entrar no mundo...

E.M: E se, porventura, pudesse tomar a autoria de um livro de um determinado escritor, quem seria? E que obra seria?
M.J: O autor seria Pepetela…e a obra seria  "A Geração da Utopia"
Olha, não sei porquê gostei dessa obra... mas marcou-me profundamente...

E.M: Pode deixar um poema ou uma mensagem para os leitores do RectasLetras?
M.J: Olha, deixo este poema para o RectasLetras e dizer que escrevamos sem pretensões, porque estas aniquilam o homem interior que habita em nós. Sejamos simples escritores e não escritores pretensos.

Amar Para Além Duma Vingança…

Que morra quem da dor d´amar se vinga,
Acusando de infidelidade o amor que teve,
Confessando-se como pecador neste amar,
E julgando-se pecador quando houvesse amado.

Não que se suicide, nem que sofra homicídio,
Como muitos, neste mundo feito, o fizeram,
Mas que encontre como se deve o amor certo,
Que cure aquela dor, génio de vingança, em si.

E nada em vida ache tão fácil quanto morrer,
Por uma causa nobre que é, de facto, amor.
Sentimento puro quanto os anjos, tal divindade,
E de sofrer pare, assim como Deus ao domingo,

Que coisas do mundo dispensou e relaxe tomou.
Porque nada em vida se apresenta, assim, facílimo,
Nem aquela dor, que sempre esteve presente,
Fingindo surgir do nada, com sua causa passada.

2 comentários:

  1. Opa…num encontro de literatos, há sempre um acontecimento. A partir "disto" (não sei dizer se seja entrevista/ conversa ou meta-conversa), bebemos pedaços de ciência e estilhaços de arte literária. Confesso que estou engolido nesta conversa e, ela só teve refúgio na varanda da minha mente. Força aí!

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  2. Olha Dzowo, custa-me crer se até o mais bem entoado e expresso khanimambo seria algo que baste para dirigir a ti os agradecimentos devidos por se ter deixado "engolir" por esta bula-bula de gentes entardecidas como tu e os outros mufanas que se escondem entre os anoitecidos...
    Sabe, esta caravana está no começo...um dia te vai bater a porta...be ready! Abraços!

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