não seria a principal finalidade
da boa literatura?
É
com esta questão que se encerra o prefácio que a professora Vanessa Riambau
Pinheiro faz do livro “cães à estrada e
poetas à margem” de Deusa d’Africa. O que está em voga pode não ser a mera
busca pela intencionalidade textual e sim um lançamento do olhar ao que
realmente importa para que o texto seja efectivamente literário.
Longe da falsa divisória da forma e do conteúdo, que se tem tornado norma na actual poesia moçambicana, “cães à estrada e poetas à morgue” é uma intercessão entre o real e o imaginário. O sonho e a realidade. A memória e o devaneio. O mundo exterior e o interior. Uma poética imagética surreal e mimética.
Depois
de se ter estreado com “A voz das minhas
entranhas” (poesia), em 2014, e publicado (Equidade no Reino Celestial” (romance)
e “Ao encontro da vida ou da morte” (poesia), em 2016, Deusa d’Africa traz-nos,
seis anos depois, este “Cães à estrada e
poetas à morgue” que, pelo título, já antevê um lirismo mordaz e acutilante
como se nos dissesse: se os cães ladram e os poetas vivem na letargia, que vão
os primeiros à rua e os últimos à morgue.
De
facto, tal como uma vez asseverou o poeta cabo-verdiano José Luís Tavares, um poeta que não é uma inconveniência social é apenas um
reprodutor da ordem vigente mesmo se comprazendo em sofisticados jogos de
máscaras.
Este
lirismo votado à sociedade e suas mazelas quotidianas experimenta um contínuo
apelo ao grotesco e uma aura escatológica em todas suas dimensões. A
escatologia deve ser vista, aqui, na sua dupla significação. Primeiro, enquanto
discurso da irreversibilidade do destino e do esvaimento da própria existência,
individual e colectiva.[1]
Não
se quer com isso assumir que em “cães à
estrada e poetas à morgue” a poeta esteja em contínuo exercício de
demonstração da ausência de fé na regeneração da sociedade, até porque o estudo
directo da psicologia do autor e o estabelecimento de uma relação de
causalidade entre o seu meio, a sua vida, a sua classe social e as suas obras é
uma via particularmente incerta.[2]
Pretende-se,
sim, realçar que os cenários, modos, hábitos e práticas que os Homens adoptam
socialmente conduzem, inevitavelmente, à corrosão da sociedade senão deles
próprios. Estes cenários. Estes modos. Estes hábitos. Estas práticas são
descritas com uma minúcia a que a poeta já nos habituou em “Ao encontro da vida ou da morte” que recorrentemente nos remete ao
(realismo) grotesco.
Mesmo
antes da viagem poética a que o livro se propõe, é-nos apresentada uma epígrafe
que nos antecipa relativamente ao que iremos encontrar ao longo dessa viagem:
os homens se
vestem de ternos perfumados e engomadinhos, com vinco quente às calças, flor
campestre e almiscarada na lapela, urinam sobre as acácias da cidade tal como
tutelam o meio-ambiente, bebem tal como se defecam nos bares, comem nacos
gigantescos de carnes tal como os seus vivem à míngua, se deitam com suas
filhas tal como os macacos o fazem, lêem manchetes em jornais dos ardinas
encenando haver interesse mesmo que nunca os comprem (p. 13)
Refira-se,
antes de mais, que o grotesco existia já desde a Antiguidade greco-romana, mas
o termo grotesco surge no final do século XV. Entre os teóricos que se
debruçaram sobre este fenómeno da arte, tem sido consensual destacar-se Mikhail
Bakhtin (com a denominação de realismo grotesco) Wolfgang Kayser (com a denominação
de grotesco romântico) e Vsevolod Meyerhold (com a denominação de cómico-sério)
que, na qualidade de director de teatro, se dedicou a esta característica no
exercício do seu trabalho.
Não
caberá, obviamente, nesta recensão toda a discussão possível de fazer em
relação a este conceito mas vale referir que a sua categorização como corrente,
género ou estilo está relativamente longe de granjear consensos. Ao que,
enquanto não tomo um lugar nesta mesa de debate, procurarei a denominação mais
ecléctica possível.
Em
geral, trata-se de uma postura estética que se caracteriza por uma
verisimilhança vivaz (e de certo modo, hiperbólica) que se detém aos pormenores
do macabro, real ou imaginário, dando ênfase a actividades como comer,
excretar, o sexo, o parir, etc. gerando, com efeito, a estranheza. O
desassossego.
Ler
“cães defecam/ poetas cagam/ Cães
vomitam/ poetas engolem o vómito/ Cães comem guelras/Poetas chupam ossos/ na
página 114 deste livro, pode, indubitavelmente, dar-nos provas deste efeito
estético.
Ao
contrário do cánon clássico que representa o corpo harmonioso, rigorosamente
fechado e solitário, o corpo grotesco será sempre representado em seu devir, em
seu inacabamento, nas múltiplas protuberâncias, nos orifícios, e em seu
funcionamento interno.[3]
De
forma consciente ou não, Deusa d’Africa toma propriedade deste ímpeto do
grotesco e permeia o seu “cães à estrada
e poetas à morgue” de imagens que a nossa mente ou conhece ou passa a
conhecer pela construção imagética que as palavras trazem e nos faz reviver o
caos que grassa a nossa sociedade (e não só) do mesmo modo que incita a
dimensão catártica do nosso íntimo perante a penosa situação escatológica em
nos encontramos.
uma agência funerária vende a
promoção flores mortas na entrada do hospital,
a enfermeira de bata da impaciência
sobe ao cimo do hospital como se escalasse cadáveres
soldados com granadas e espingardas
matam uma pétala por um tiro sangrento
e servem a calda de sangue num
prato para uma criança recém-nascida
enquanto se resseca literalmente o
leito numa mão com o ventre rasgado pelo medo
(p. 26)
uma mulher nua fere com seus
espinhos a fome no cemitério onde mora
uma criança cospe sangue sobre a
fome e encerra centros de saúde insanos
uma mulher menstruada urina sobre a
flor e condena com a sua impureza
um poeta segue o percurso da urina
e é preso no bar de palavras confidenciais (p. 33)
Embora
se trate de problemas quotidianos e, em certa medida, corriqueiros, a forma
como são descritos transmitem, decerto, a imagem do mórbido que se despe e nos
desassossega.
Tendo
despontado nas artes cénicas e plásticas, sobretudo, o grotesco entra na
literatura pela mão de Charles Baudelaire (1821 – 1867). Até então, era tido
como uma manifestação até certo ponto marginal ante o que se tinha como
sublime. Contudo, nos dias de hoje e pela sua recorrência quanto na prosa como
na poesia, o grotesco ocupa o mainstream.
Deusa
d’Africa, neste tempo e nestas latitudes, reclama, com este livro, um pódio que
lhe é merecido na manipulação da palavra neste viés estilístico para
representar o real que a cerca e os devaneios que o seu ego, enquanto poeta e
ser social, não ignora e se deixa transparecer no poema com algum hiperbolismo
à mistura. Mas, que isso mal tem? Nenhum! Porque bem mesmo antes destes tempos,
Dostoievski escrevia que em arte, para mostrar o objecto, é preciso proceder
por exageração, é preciso deformar a sua aparência precedente, é preciso
colori-lo.[4]
É
através desta coloração que em alguns textos o escatológico se dilui e é
reavivada a sagrada esperança sem que com isso o grotesco se iniba de dar ares
de sua graça:
Amanhã cessará o fogo das armas
bocas munidas de saliva que cospem
sangue e almejam tudo à sua volta.
Amanhã não haverá facas espetando
as gengivas
para que a sangue-frio se tolhe a
alegria de viver e ser. (p. 47)
[1] NOA, Francisco. A Escrita Infinita. Maputo: Livraria Universitária,
1998
[2] TYNIANOV, J. “Da Evolução Literária.” In EIKHENBAUM et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Lisboa: Edições 70, 1999.
[4] JAKOBSON, R. “Do Realismo Artístico”. In EIKHENBAUM et al. Teoria da literatura: formalistas russos. Lisboa: Edições 70, 1999.
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