“o problema dos géneros literários tem constituído,
desde
Platão até à actualidade, uma das questões mais
controversas
da teoria e da praxis da
literatura.”
AGUIAR
& SILVA (2007: 339)
Incitar um debate sobre géneros literários ou outro princípio de segmentação discursiva nestes tempos em que reina a liberdade de criação e a volúpia da inovação à reboque da miscigenação que há séculos faz endereço na Literatura, é cutucar um dragão há muito adormecido e enxovalhado pelas colinas.
Inicio
a redacção deste texto com a citação de Victor Manuel de Aguiar e Silva, cujo
texto pode ser lido na íntegra em sua Teoria de Literatura (oitavo volume), e endosso-a
com uma introdução algo tímida por reconhecer a sinuosidade que grassa nesta
discussão antiga porém pertinente, por estar ciente da pluralidade de opiniões
a seu respeito que, além da inibição, desperta em mim um desembaraço que
assenta no princípio segundo o qual “na contradição
surge o conhecimento.”
Este
interesse inusitado de versar sobre este assunto, vem-me da recorrente alusão à
prosa poética em chamadas para antologias, tertúlias e interações entre
escritores (senão aspirantes ao ofício), de tal modo que não são poucas as
dúvidas sobre as linhas fronteiriças da prosa poética relativamente à poesia ou
à prosa. Haja vista que alguns teóricos reservam algum distanciamento
relativamente a esta denominação como se em si não coubesse informação
suficiente para abordar o conceito/estilo com alguma segurança a ponto de o
autor (op. cit) referir-se nos seguintes termos:
a substância e a forma da expressão do sistema
modelizante primário proporcionam os elementos materiais e semióticos sobre os
quais se realiza um processo de semiotização literária que pode alcançar um
grau elevado de codificação (e.g., o
ritmo da chamada prosa poética, etc.)
A
despeito do que se pretende transmitir com a proposição acima, o que a mim
chama atenção é o distanciamento a que me referi. Dizer “da chamada prosa poética” diz muito sobre o olhar que este e
outros teóricos têm sobre esta forma peculiar de segmentação discursiva.
Embora
tenha iniciado o diálogo com a assunção de uma controvérsia secular sobre
géneros literários, importa aclarar que a prosa poética não é um género
literário. Tal contextualização vem com o propósito de demostrar que na
literatura há sempre aproximações e distanciamentos quando se pretende
estabelecer parâmetros de classificação de textos.
De
uma forma ou de outra, na prosa poética já foram alcançados alguns consensos
que a tomam mais como um princípio de segmentação do discurso. Dito de outra
forma, a prosa poética é resultado da fusão entre a poesia (segmentação do discurso
em verso) e a prosa (segmentação do discurso em parágrafos/períodos).
Na
busca pelos pressupostos do surgimento deste estilo de escrita, o nome de
Charles Baudelaire é consensualmente associado à sua génese. Com o seu “petits poéms en prose”, publicado a
título póstumo, Baudelaire denuncia, não só pelo título, a sua intenção
criativa numa carta endereçada ao seu amigo Arsène
Houssaye em que é possível ler:
qual de nós, em seus dias de
ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem
rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos
movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?
Ao
fazer esta colocação num viés metapoético, Baudelaire descortinava novos
horizontes de escrita que, séculos depois, voltam a ganhar forma no exercício
da escrita em Moçambique. Sem querer vestir a toga e assumir funções que ela
representa, observo que no nosso meio há uma tendência de experimentar novas
posturas na escrita e muitos são os que encontram na prosa poética um alento
para materializar os seus movimentos líricos, as ondulações do devaneio e
os sobressaltos da consciência. Contudo, há cada vez mais razões para
subscrever as palavras de Luis Dolhnikoff
(proferidas numa entrevista concedida a André di Bernardi e publicada na
SIBILA: revista de poesia e crítica literária) que embora se refiram a um
contexto particular podem, em certa medida, aplicar-se ao que se observa em
Moçambique, e passo a citar:
no final do século XX, depois do fim das
certezas clássicas, das grandes utopias políticas e das vanguardas artísticas,
os poetas ficaram sozinhos, atomizados, por sua conta, cara a cara com o
confuso mundo contemporâneo, esvaziado de todas as referências, tanto temáticas
quanto formais. As duas principais reacções foram o retorno a um eu lírico
apequenado, a uma poesia centrada no próprio poeta e em seu cotidiano, uma reacção
fácil, autoexplicativa, e explicativa também do facto de a poesia actual
interessar quase que somente aos próprios poetas, e uma nova poesia engajada,
aquela que “se desengaja da linguagem poética para servir à mensagem de uma
causa” (hoje, o politicamente-correcto). Ambas alicerçadas em certo
retaguardismo formal, que no limite não passa de prosa cortada aleatoriamente e
margeada à esquerda.
Há
muitas zonas de penumbra que Dolhnikoff levanta mas o que vai ao encontro do
que me proponho abordar é o aludido “retaguardismo
formal” que muitas vezes faz com que tomemos uma prosa margeada à esquerda
como prosa poética propriamente dita.
No
âmbito dos consensos, a que já me referi, é cada vez mais destacado que (1) a prosa poética é prosodicamente sempre
prosa; (2) O que a diferencia das duas formas de segmentação discursiva que
a originam é o facto de a ética narrativa perder o protagonismo para dar lugar
ao devaneio poético que toma nuances equivalentes a um aporte no texto
dramático; (3) Há na prosa poética um interesse, ainda que não expresso, de dar
primazia à forma e ao ritmo em detrimento da semântica como elementos
constituintes do discurso literário; (4) há uma atenção à subjectividade e ao
mundo dos objectos ao redor resultando disso uma mescla imagética que dá muita
primazia à experiência sensorial podendo, por vezes, interferir na coerência
lógico-semântica; (5) alto grau de reflexão sobre questões bastante peculiares
mas partindo de um mote aparentemente corriqueiro.
Portanto,
a prosa poética surge no meio do binómio _ prosa & poesia _ e guarda
algumas características dos dois princípios de segmentação discursiva que a
originam. Longe da mera disposição do texto em parágrafos e períodos, há neste
princípio de segmentação do discurso elementos semânticos e pragmáticos que
devem ser levados em conta para que não tomemos o verso livre em parágrafos/períodos
ou prosa margeada à esquerda por prosa poética.
um debate cheio de entretantos.
ResponderEliminarde facto. Tinha de começar de algum modo.
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