terça-feira, 25 de janeiro de 2022

prosa poética ou prosa margeada à esquerda?

“o problema dos géneros literários tem constituído,

desde Platão até à actualidade, uma das questões mais

controversas da teoria e da praxis da literatura.”

AGUIAR & SILVA (2007: 339)

Incitar um debate sobre géneros literários ou outro princípio de segmentação discursiva nestes tempos em que reina a liberdade de criação e a volúpia da inovação à reboque da miscigenação que há séculos faz endereço na Literatura, é cutucar um dragão há muito adormecido e enxovalhado pelas colinas.

Inicio a redacção deste texto com a citação de Victor Manuel de Aguiar e Silva, cujo texto pode ser lido na íntegra em sua Teoria de Literatura (oitavo volume), e endosso-a com uma introdução algo tímida por reconhecer a sinuosidade que grassa nesta discussão antiga porém pertinente, por estar ciente da pluralidade de opiniões a seu respeito que, além da inibição, desperta em mim um desembaraço que assenta no princípio segundo o qual “na contradição surge o conhecimento.”

Este interesse inusitado de versar sobre este assunto, vem-me da recorrente alusão à prosa poética em chamadas para antologias, tertúlias e interações entre escritores (senão aspirantes ao ofício), de tal modo que não são poucas as dúvidas sobre as linhas fronteiriças da prosa poética relativamente à poesia ou à prosa. Haja vista que alguns teóricos reservam algum distanciamento relativamente a esta denominação como se em si não coubesse informação suficiente para abordar o conceito/estilo com alguma segurança a ponto de o autor (op. cit) referir-se nos seguintes termos:

a substância e a forma da expressão do sistema modelizante primário proporcionam os elementos materiais e semióticos sobre os quais se realiza um processo de semiotização literária que pode alcançar um grau elevado de codificação (e.g., o ritmo da chamada prosa poética, etc.)

A despeito do que se pretende transmitir com a proposição acima, o que a mim chama atenção é o distanciamento a que me referi. Dizer “da chamada prosa poética” diz muito sobre o olhar que este e outros teóricos têm sobre esta forma peculiar de segmentação discursiva.

Embora tenha iniciado o diálogo com a assunção de uma controvérsia secular sobre géneros literários, importa aclarar que a prosa poética não é um género literário. Tal contextualização vem com o propósito de demostrar que na literatura há sempre aproximações e distanciamentos quando se pretende estabelecer parâmetros de classificação de textos.

De uma forma ou de outra, na prosa poética já foram alcançados alguns consensos que a tomam mais como um princípio de segmentação do discurso. Dito de outra forma, a prosa poética é resultado da fusão entre a poesia (segmentação do discurso em verso) e a prosa (segmentação do discurso em parágrafos/períodos).

Na busca pelos pressupostos do surgimento deste estilo de escrita, o nome de Charles Baudelaire é consensualmente associado à sua génese. Com o seu “petits poéms en prose”, publicado a título póstumo, Baudelaire denuncia, não só pelo título, a sua intenção criativa numa carta endereçada ao seu amigo Arsène Houssaye em que é possível ler:

qual de nós, em seus dias de ambição, não sonhou com o milagre de uma prosa poética, musical sem ritmo e sem rima, bastante maleável e bastante rica em contrastes para se adaptar aos movimentos líricos da alma, às ondulações do devaneio, aos sobressaltos da consciência?

Ao fazer esta colocação num viés metapoético, Baudelaire descortinava novos horizontes de escrita que, séculos depois, voltam a ganhar forma no exercício da escrita em Moçambique. Sem querer vestir a toga e assumir funções que ela representa, observo que no nosso meio há uma tendência de experimentar novas posturas na escrita e muitos são os que encontram na prosa poética um alento para materializar os seus movimentos líricos, as ondulações do devaneio e os sobressaltos da consciência. Contudo, há cada vez mais razões para subscrever as palavras de Luis Dolhnikoff (proferidas numa entrevista concedida a André di Bernardi e publicada na SIBILA: revista de poesia e crítica literária) que embora se refiram a um contexto particular podem, em certa medida, aplicar-se ao que se observa em Moçambique, e passo a citar:

no final do século XX, depois do fim das certezas clássicas, das grandes utopias políticas e das vanguardas artísticas, os poetas ficaram sozinhos, atomizados, por sua conta, cara a cara com o confuso mundo contemporâneo, esvaziado de todas as referências, tanto temáticas quanto formais. As duas principais reacções foram o retorno a um eu lírico apequenado, a uma poesia centrada no próprio poeta e em seu cotidiano, uma reacção fácil, autoexplicativa, e explicativa também do facto de a poesia actual interessar quase que somente aos próprios poetas, e uma nova poesia engajada, aquela que “se desengaja da linguagem poética para servir à mensagem de uma causa” (hoje, o politicamente-correcto). Ambas alicerçadas em certo retaguardismo formal, que no limite não passa de prosa cortada aleatoriamente e margeada à esquerda.

Há muitas zonas de penumbra que Dolhnikoff levanta mas o que vai ao encontro do que me proponho abordar é o aludido “retaguardismo formal” que muitas vezes faz com que tomemos uma prosa margeada à esquerda como prosa poética propriamente dita.

No âmbito dos consensos, a que já me referi, é cada vez mais destacado que (1) a prosa poética é prosodicamente sempre prosa; (2) O que a diferencia das duas formas de segmentação discursiva que a originam é o facto de a ética narrativa perder o protagonismo para dar lugar ao devaneio poético que toma nuances equivalentes a um aporte no texto dramático; (3) Há na prosa poética um interesse, ainda que não expresso, de dar primazia à forma e ao ritmo em detrimento da semântica como elementos constituintes do discurso literário; (4) há uma atenção à subjectividade e ao mundo dos objectos ao redor resultando disso uma mescla imagética que dá muita primazia à experiência sensorial podendo, por vezes, interferir na coerência lógico-semântica; (5) alto grau de reflexão sobre questões bastante peculiares mas partindo de um mote aparentemente corriqueiro.

Portanto, a prosa poética surge no meio do binómio _ prosa & poesia _ e guarda algumas características dos dois princípios de segmentação discursiva que a originam. Longe da mera disposição do texto em parágrafos e períodos, há neste princípio de segmentação do discurso elementos semânticos e pragmáticos que devem ser levados em conta para que não tomemos o verso livre em parágrafos/períodos ou prosa margeada à esquerda por prosa poética.

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