quinta-feira, 3 de setembro de 2020

Façamos um close up ao apelo contra a mediocridade!

Quando somos estonteados por algo que, aparentemente, nos fere a alma impele-se-nos uma bruma que nos faz migrar pelos túneis dos falsaportes (na assunção miacoutiana do termo) sem nos darmos conta de que os ferimentos são mais passionais senão estomacais.

Nisso, embrulhamo-nos em nossas próprias ideias e não permitimos que o ornamento desse embrulho tenha um quê de regulação linguística, epistemológica e até mesmo de senso.
Vem-me isto à ribalta depois de ler um apelo efusivo contra a mediocridade no texto Feira do livro de Maputo: mediocridade não! (publicado no jornal Zambeze, edição de 20 de Agosto de 2020) que até pode ter razão de ser no contexto que lhe dera génese, todavia, como a maioria (senão todos) dos debates que se engendram nesta belíssima perola nas margens do Índico, os articulistas furtam-se ao debate de ideias e entijolam-se em debates de pessoas sem que tenham alicerçado a firmeza das paredes.
A apologia a uma sincronia do cânone, que parece nortear o articulista, numa altura em que a diacronia dessa normatização é já uma sentença é, no mínimo, extemporânea e reenvia-nos à assunção do seu próprio apelo, afinal, a mediocridade não pode ser só deslize de quem organiza uma feira como pode sê-lo de quem vê mediocridade na organização desse mesmo evento (talvez com alguma razão) e, na tentativa de endossar os seus argumentos, resvala por meandros sustentados por conclusões apressadas senão injustas.
Vejamos:
1 - O cânone literário não pode ser visto numa perspectiva fechada e inalterável, tal como se observa nas entrelinhas do seu texto;
2 - A alusão a escritores de gerações posteriores a "Charrua" em exames escolares e até universitários não é, em si, um processo de canonização dos mesmos no (nosso) sistema de ensino. Esse processo (o de canonização) tem "maratonas" próprias. É, então, curioso que se apele contra mediocridade e resvalar nessa encruzilhada;
3 - Na questão dos exames, há sim uma incultura. Essa é mais de quem elabora os manuais de ensino e, mais ainda, de quem lida com os estudantes no processo lectivo porque é a este que cabe a selecção de textos para leccionação. Ora, culpabilizar este último é arrastar toda uma franja da sociedade (incluindo o articulista) para quem só são escritores dignos de realce os mesmos "elefantes brancos" cujos trabalhos (de alguns), pelas vantagens da releitura, é possível dizer de cor.
Portanto, é, decerto, infeliz esta negação do contributo estético de autores pós-charrua e revela, quiçá, um saudosismo vil pior que a mediocridade.
Final embora não unicamente, cabe-me dizer que este conhecimento fechado e inalterável da literatura moçambicana é duma gravidade de atiçar "a voz das minhas entranhas" senão de declarar "a febre dos deuses" que norteiam o engenho criativo desta não tão estreante geração de escritores que, mesmo sem querer, os olhos vêem.

3 comentários:

  1. Este comentário foi removido pelo autor.

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  2. Curioso e intrigante, pois parece haver uma estaticidade no que diz respeito ao reconhecimento dos artistas literários. Aliás, parece-nos que não há critérios claros que norteiam este processo, o que deixa de fora relevantes figuras da arte.

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    1. É uma postura desnecessária e infeliz. Há perguntas que só o tempo responde. Tentar precipitar esse processo é, no mínimo, um erro de juízo.

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