segunda-feira, 30 de setembro de 2019

Da originalidade à (im)possibilidade de criação de textos inteiramente novos após séculos de produção artística


Não seria muita audácia escrever um texto e jurar com unhas e dentes que nele não permeiam outras vozes? Ora, se a humildade habitar-nos o peito e assumirmos a presença de tais vozes em nossos textos: haveria, em sã consciência, a (im)possibilidade de revindicar originalidades?

Estas e outras questões torneiam o exercício literário, senão artístico no seu todo, tanto que o mundo da arte e cultura está repleto de exemplos de mal-entendidos, acusações, evidências e até litígios decorrentes da reclamação da “magna” originalidade.
Ao retomar este exercício reflexivo, percebo que qualquer artista que se prese está condenado a estar ciente deste dilema e assumi-lo como ônus do qual não se pode fugir nem pela via da arrogância nem pela humildade pedante.
José Saramago foi um dos mil e um escritores cientes deste cenário de tal maneira que perante a insistência de Ricardo Soares (jornalista e documentarista da TV cultura) durante uma entrevista no programa Roda Viva (em 2003) ao referir que havia uma referência intencional de Kafka no conto Embargo do livro Objecto Quase, rematou a insistência afirmando que se nós procurarmos bem veremos que já havia romances kafkianos antes do Kafka. Ponto, encerra-se assim o assunto.
Esta assunção não reduz nenhum valor a qualquer criador seja ele de qual arte for mas acrescenta e evidencia uma maturidade que tem faltado muito nos nossos artistas (sobretudo os músicos).
Esta referência à (im)possibilidade de criação de textos inteiramente novos após séculos de produção artística é melhor percebida se compreendermos que, aqui, o texto é entendido como qualquer comunicação realizada através de um sistema de signos (quer se trate de um poema, quer de uma música, uma pintura, um filme, uma escultura, etc) GOUVÊIA (2007: 58).
Portanto, esta confluência de possibilidades de realização textual fez com que Julia Kristeva, através da teoria da intertextualidade, percebesse que o texto não é uma unidade solitária: está em permanente diálogo com outras unidades no seu entorno. 
Assim, podemos sentenciar: após séculos de produção artística é totalmente impossível a criação de textos inteiramente novos contudo essa impossibilidade não significa que o espaço para discutir originalidades inexiste. 
Este conceito (o de intertextualidade) foi cunhado por Kristeva sob o pressuposto de que todo texto se constrói como mosaico de citações e revela-nos que a identificação de vozes alheias no nosso próprio texto ou o inverso deve ser percebido de forma mais natural possível sem as proclamações histéricas que tem caracterizado muito os fazedores de arte.
Ademais, mesmo que houvesse a possibilidade de existência de uma obra artística num contexto alheio à intertextualidade, resulta que a mesma (obra) seria incompreensível durante o convívio com diferentes receptores pois só se apreende o sentido e a estrutura de uma obra artística se a relacionamos com seus arquétipos que são abstraídos de textos anteriores que constituem a constante BARBOSA (2005: 27), o que nos remete à ideia de que a intertextualidade não se manifesta unicamente a nível conteudístico, tal como frequentemente se supõe e se observa, como também pode ser verificada a nível estrutural da obra. 
Assim, esta relação intertextual não é, de forma alguma, um sintoma de crise cultural, mas resultado de um esporádico acaso ou das intenções comunicativas do autor textual. Deste modo, cabe ao leitor, a partir de sua cultura e memória, identificar o conteúdo intertextual.

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