“O último voo do Flamingo”,
romance de Mia Couto, é uma obra em que se aborda o período pós-guerra civil em
Moçambique. Uma ficção sobre os tempos em que estiveram neste país soldados da
ONU integrados na missão de manutenção de paz. O romance narra estranhos
acontecimentos de uma pequena vila imaginária “onde acontecimento era coisa que nunca sucedia” e que só “os
factos são sobrenaturais”.
O narrador conta que certo tempo depois de cessada
a guerra em seu país, alguns soldados da ONU explodiram. “Simplesmente,
começaram a explodir. Hoje, um. Amanhã, mais outro. Até somarem, todos
descontados, a quantia de cinco falecidos” em
circunstâncias que não são explicadas de forma plausível.
O livro começa com um facto inédito: um pénis é encontrado no meio da rua de
Tizangara. Mais um soldado das Nações Unidas havia explodido e o seu órgão
genital era o que havia restado dele. Desta forma, em todo o decorrer da narrativa prevalece o enigma. Subitamente,
corpos de soldados estrangeiros que começam a explodir. Um oficial das Nações
Unidas, o italiano Massimo Risi, é destacado para investigar o caso. Tudo é
contado pelo tradutor, que é também narrador do romance, destacado pelos
poderes oficiais da vila para acompanhar o italiano.
À
medida que os factos se sucedem o foco narrativo é dedicado à outras
personagens: Estêvão Jonas - o administrador da vila -, a velha-moça Temporina,
a prostituta Ana Deusqueira, a Dona Ermelinda (esposa do administrador da
vila), o Chupanga, o feiticeiro Zeca Andorinho e o velho Sulplício. Eles apresentam suas versões do facto (a súbita explosão dos soldados
das Nações unidas), mas nada é constatado. O mistério prevalece durante todo o
decorrer do romance, ficando assim, por parte do leitor, a seguinte pergunta:
quais os motivos das mortes havidas naquela vila?
No
entanto, diante de tanto mistério, após fazer a audição dos depoimentos gravados,
ler relatórios e conversar com os habitantes de Tizangara, Massimo Risi não
chega à conclusão nenhuma e, portanto, mostra-se descrente da credibilidade do
relatório que irá apresentar às Nações Unidas visto que este é recheado de
misticismo que é fruto das indagações feitas pelas “testemunhas” dos actos,
como se pode notar no seguinte excerto:
“Tenho consciência que o presente relatório
conduzirá à minha demissão dos quadros de consultores da ONU, mas não tenho
alternativa senão relatar a realidade com que confronto” (COUTO, 2000, p. 77)
Observa-se aqui que “O último voo do
flamingo” é uma obra cercada de dualidades entre o real e imaginário. A verdade e o misticismo presentes em todos aspectos trazidos à tona na obra
que são relatos fidedignos da situação político-social
vivida no período pós-guerra em Moçambique, independentemente do sentido
imaginário e/ou místico desta narrativa.
Estas situações políticas, sociais e
económicas do Moçambique pós-guerra são apresentadas com recurso a um discurso
revestido de ironia, modo de exprimir-se que consiste em dizer o
contrário daquilo que se está pensando ou sentindo (FERREIRA: 2004),
que tem até certo ponto um carácter sarcástico devido ao recurso a um certo
exagero no acto, como se pode notar em:
“Na véspera de cada visita, nós todos,
administradores, recebíamos a urgência: era preciso esconder os habitantes,
varrer toda aquela pobreza” (COUTO, 2000, p. 27)
Portanto,
nota-se aqui que, Mia Couto, ao serviço da ironia até certo ponto sarcástica,
faz uma denúncia daquilo que são os mandos e desmandos da classe política. Na
íntegra o romance aborda o enigma das explosões dos soldados da ONU que
estavam em Moçambique em missão de paz e, portanto, no meio de tal facto as
personagens que ganham voz ao longo da narrativa fundamentam os acontecimentos
de acordo com a sua percepção que por sua vez esta cercada de certo misticismo,
note-se:
”A casa de Hortênsia era
importante para a missão. Tinham usado o grande casarão para alojar os soldados
das Nações Unidas. Foi o administrador que decidiu contra vontade de todos. A
casa era um lugar de espíritos. Não importava o que os soldados fizessem. Importava,
sim, o que o lugar ia fazer aos inautorizados visitantes” (COUTO, 2000, p. 23)
No
entanto, a partir deste excerto, nota-se que paira na vila de Tizangara uma
“crença” segundo a qual a casa de Hortência era um lugar de espíritos e tais
espíritos são portadores de certo poder e, cogita-se, por isso, a possibilidade
de as explosões dos soldados ser obra de tais espíritos. Portanto, esta
percepção é partilhada por todos moradores da vila, inclusive os mais
instruídos, como ilustra o seguinte excerto, no qual o administrador da vila
deixa transparecer a ideia de depositar alguma crença no misticismo partilhado
pelos restantes moradores:
“há
muita coisa escondida nestes silêncios africanos. Por baixo da base material do
mundo devem de existir forças artesanais que não estão à mão de serem pensadas” (COUTO, 2000, p. 27)
Desta forma, dentro deste quadro de credibilidade
dada ao místico, as personagens do romance procuram desmitificar o enigma que
cerca a narrativa baseando-se em argumentos “fundamentados” pelo misticismo que domina em todo o romance, note-se no seguinte excerto em que Ana Deusqueira,
afirma conhecer a razão das explosões:
“Os
soldados estrangeiros explodem, sim, senhor. Não é que pisam em minas, não.
Somos nós, mulheres, os engenhos explosivos. Ou já esqueceu as forças da
terra?" (COUTO, 2000, p. 30).
Entretanto, Mia Couto, sendo um construtor
da palavra, preocupado com a linguagem poética, acabando assim por transferir
todo o seu potencial poético para a ficção (LARANJEIRA:
1995, p. 260), traz na sua obra o misticismo na voz de diferentes personagens,
ao serviço duma linguagem que espelha aquilo que é a realidade linguística
moçambicana (caracterizada pelo emprego de moçambicanismos e a sua própria estética
no seu inventar de palavras, note-se:
“O motor nhenhenhou-se em tentativas
sucessivamente frustradas. O representante do mundo, de janelas fechadas,
esperava certamente uma mão generosa para tchovar
a viatura.”
Note-se
ainda em: Jonas ria-se: ele não
abusava; os outros é que não detinham poderes nenhuns. E repetia: cabrito come onde está amarrado.
Ou
ainda: Tinha que chegar antes que ela desmundasse. (COUTO: 2000 p. 6, 11,17 )
Notavelmente, o autor usa vocábulos que, não existindo no português padrão
seguido em Moçambique, caracterizam as tendências do português moçambicano e
que se vão afirmando cada vez mais, pois segundo FIRMINO (2000):
Depois da
independência, o uso do Português alargou-se e os sinais da sua
«moçambicanização» expandiram-se. Enquanto o uso do português se alargava, os
mecanismos que haviam contribuído para a aprendizagem e reforço do padrão
linguístico se alteraram, dando origem à proliferação de novas formas
linguísticas. Por exemplo, com a saída massiva de colonos reduziu
significativamente a possibilidade de exposição dos aprendentes da língua
portuguesa à norma europeia.
Portanto, Mia Couto faz algumas inovações na língua portuguesa recorrendo a
certos processos lexicais, semânticos e retóricos como: Empréstimos das línguas
autóctones, Neologismos morfológicos (ex: tchovar), incorporação de imagens e
metáforas do sistema cultural moçambicano, para se aumentar a expressividade,
através do apelo às práticas e símbolos sócio-culturais tipicamente
moçambicanos (ex: cabrito come onde está amarrado).
Todavia, a busca estilística em “o
último voo do flamingo” revela-nos também que Mia Couto faz o uso de aforismos[2],
fazendo assim a desconstrução de provérbios e ditos populares (ex: “contra os
factos tudo são argumentos”) ou ainda (ex: Mudam-se
os tempos, desnudam-se as vontades). Ainda no domínio da linguagem, nota-se por
parte do autor o recurso a comparações e à ironia com tom, até certo ponto,
rude e humorístico. Note-se:
“ele se mostrava ainda
vaidoso, peito mais arredondado que o pombo em arrasto de asa.” (…)
“E logo despachou
mandamentos, em trejeitos militares, não fossem os estrangeiros pensar que o
martelo não tinha cabo” (COUTO: 2000 p. 9)
Duma forma geral, o romance “O Último Vôo do Flamingo”
discute, numa construção textual repleta de enigmas, o período pós-guerra civil
em Moçambique trazendo à tona todos os aspectos que lhe são inerentes, desde os
fenómenos políticos (que mereceram pouca abordagem nesta análise devido à linha
de análise definida) e sociais (que afiguraram-se o maior sustentáculo desta
análise, visto que o tema abordado esta eminentemente ligado ao factor social
da moçambicanidade e do próprio país no período histórico supracitado), numa
busca do demonstrar daquilo que é o desabrochar da cultura moçambicana (que por
motivos de ordem histórica foi submissa), sem deixar de lado as suas crenças,
as suas superstições que dum ou doutro modo constroem
o carácter híbrido da moçambicanidade.
Ao abordar o misticismo, Mia Couto revela-se
um autêntico inventor de palavras e conhecedor da realidade do “português
moçambicano”, no que concerne aos seus dialectos em geral mostrando de forma
clara as influências que as línguas autóctones têm sobre a língua portuguesa,
facto que distancia o português falado em Moçambique do português padrão
teoricamente seguido e leccionado nas escolas.
Portanto, diante deste facto inegável, torna-se pertinente para os
professores de língua portuguesa, em particular, a tomada de consciência desta
realidade que o português em Moçambique apresenta. Querendo isto significar que
deve se acautelar a qualquer tipo de alusão a um padrão que só existe na
teoria, visto que a realidade tende a ser outra, como afirma ROSÁRIO (1982:
65):
“O traumatismo do
«Pretoguês»
foi desaparecendo e hoje qualquer cidadão faz questão de se exprimir
correctamente em Português e quantos deles, sendo responsáveis de sectores, não
fazem brilhantes intervenções numa expressão recheada de neologismos de
momento, estruturas totalmente novas e alheias à língua…”
Oi, Elísuo. não me surpreende este ensaio, pois, isto é tua marca. Só quem não t conhece se pode espantar. Este atrevimento de discorar sobre Mia, é prova evidente da magnitude da tua capacidade de discutir não só a literatura (ao analisares o misticismo na obra) mas também a linguística em si (ao mencionares os neologismos e moçambicanismos trazidos por este brincriador que se chama choro do gato). Estás de parabéns, mano.
ResponderEliminarMeu irmão, por estes e outros dizeres sobre minhas "especulações" que por aqui páiram, preciso dizer nada mais, nada menos que um sincero OBRIGADO.
ResponderEliminarE, se é verdade que o coração tem fundo, receba os meus agradecimentos provindos do fundo do coração de mim. Abraço!
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