terça-feira, 9 de novembro de 2021

Close up: para limar possíveis vícios de uma leitura apressada

É comum que a emoção se evidencie em momentos em que o equilíbrio da razão é mais recomendado. Um desses momentos é a leitura crítica de um livro ou de um fenómeno  literário, em geral. Quando Sigmund Freud no seu estudo da psicanálise sentenciou: "o que João diz de Pedro diz mais de João que de Pedro”, talvez não tenha imaginado que esta proposição se enquadrasse perfeitamente no exercício da interpelação crítica que um hermeneuta possa fazer (e deve) sobre os textos que lhe passam pelas mãos e que os tenha lido com alguma profundidade e, sobretudo, munido de ferramentas que o permitem fazê-lo. Afinal, tal como anteviu a Professora Sara Jona no seu “Entre o Índico e o Atlântico: ensaios sobre literatura e outros textos[1],

o importante é que o crítico dedique algum tempo a munir-se dos instrumentos de análise necessários, isto porque, a análise que se faz de uma obra literária contribui para a formação da cidadania dos seus leitores e para a melhoria da qualidade do trabalho do autor dessa mesma obra. (p. 174)

É, em síntese, um exercício elementar, nobre e equilibrado que o crítico literário (ou aspirante ao ofício) deve fazer antes de se propor a ilações valorativas sobre qualquer que seja a obra ou o autor, ainda que o faça sob o prisma de uma opinião pessoal.

Portanto, num meio como o nosso em que se regista um vazio da crítica literária, o melhor que se pode fazer é acarinhar as vozes que demonstram algum interesse e fôlego para o efeito. Ora, tal empatia não pode submeter-nos ao deslize do consentimento de tudo quanto é dito (por vezes com alguns vícios) e, pior, conduzir-nos ao abismo do patrocínio gratuito de desvios, sobretudo nestes tempos em que a volúpia do share nas redes sociais faz escola mesmo que não se tenha lido o conteúdo na íntegra.

Abro o texto com este intróito algo genérico para me desfazer de um incómodo que me acometeu ao ler um texto intitulado "o excedente estético: readymadezação da Nova Arte" cujo conteúdo pode ser lido aqui.

Movido, quiçá, por boas intenções, o seu autor descore sobre as nuances da escrita de autores que começam a publicar um pouco depois do ano 2000 e tece comentários a respeito do que julga serem ou não as valias dessa escrita. O que deve ter saltado à vista do articulista é que nos dias que correm não é fecundo fazer leituras dedutivas sobre um autor através de uma obra sua tanto sobre uma "geração" de autores através de uma amostra insignificante.

Ademais, ao fazer uma leitura de um fenómeno através das teorias surgidas e desenvolvidas num meio e tempo alheio ao objecto de análise, é preciso observar que esse exercício não é um fim em si mesmo mas um trampolim para contextualizar o essencial sob o risco de a abordagem resultar no que Schopenhauer no seu “a arte de escrever”[2] classificou como sendo o problema dos eruditos, nos seguintes termos:

quem lê muito e quase o dia todo, mas nos intervalos passa o tempo sem pensar nada, perde gradativamente a capacidade de pensar por si mesmo – como alguém que, de tanto cavalgar, acabasse desaprendendo a andar. (p. 60)

 

E, já agora, talvez este vício explique o porquê de volvidos tantos anos de formação em cursos de filosofia, literatura, linguística, ensino de línguas, jornalismo e outras áreas afins ainda se registe um deserto de crítica literária onde pouquíssimos cactos dão ares de sua graça. Ora, que despautério foi para mim ver a desqualificação de um cacto tão bem nutrido e florido neste texto. A busca pelos likes tornou-se tão antiética ou o articulista equivocou-se no nome que, cá entre nós, deve ter escrito parte dos manuais de que ele mesmo se serve no seu processo de formação?

Ainda no mesmo parágrafo, o autor do artigo com que dialogo vem reduzir o labor de um jovem escritor que, a despeito de ter sido agraciado com o Eugênio Lisboa 2017 é, inegavelmente, um dos nomes incontornáveis desta geração que começa a publicar um pouco depois de 2000 e que tem demostrado evidências do seu ecletismo literário que, ultimamente, espreita a edição de outros autores. Se, na sua opinião, há uma componente em falta numa das suas facetas (poeta, contista, romancista, etc), tal lacuna deve ser apontada com rectas letras e fundamentada ao longo do texto: essa sim seria uma crítica e não a polemização gratuita com recurso ao bom nome alheio.

Mais, já há muito que na leitura do fenómeno literário evita-se o rótulo da dedução porque se entende que a escrita é um exercício singular, embora haja vista, em alguns casos, aos alcances e necessidades de uma literatura comparada. Por isso, surpreendeu-me bastante a generalização de uma característica própria que, quanto a mim, não foi uma categorização acertada para a autora mencionada neste aspecto. E, ainda que fosse, deverá valer o argumento da diversidade de elementos que constroem a beleza textual. Só este deslize epistemológico, já nos é revelador de um perfil ainda por robustecer.

Salvo estes vícios por limar, o apelo à simbiose entre a forma e a matéria é muito oportuno e é uma perspectiva com a qual concordo. Ainda que o debate sobre este aspecto remonte as “clivagens” entre formalistas e estruturalistas, trata-se, igualmente, de uma colocação actual e actuante. Como já o disse repetidas vezes:

Mesmo que a literatura

Valha menos pelo dito

E mais pela forma como o dito é dito

É imperativo dar algo além do prazer

Aos que lêem os nossos ditos[3] (p. 60)



[1] JONA, Sara. Entre o Índico e o Atlântico: ensaios sobre literatura e outros textos. Maputo: Ndjira, 2013

[2] SCHOPENHAUER, A. A arte de escrever. Tradução de Pedro Sussekind. 2ª edição. Porto Alegre-RS: L&PM Pocket, 2013.

[3]MIAMBO, E. Retroalimentações do Ego. Maputo: Editora Kulera, 2020


4 comentários:

  1. Isto esta' pegando fogo, meu caro. Avante, a nossa literatura sai a ganhar.

    Com meus melhores abraços.

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  2. 😀

    Descredibilizar quem descredibizou a produção literária é o caminho certeiro para re-credibilizar a nossa arte!

    Podia simplesmente ter defendido a poesia, sem precisar aniquilar o homem!

    Parabéns aos dois e obrigado por nos brindarem com este diálogo.

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