porque aquilo que cada um é de melhor
deve sê-lo
necessariamente para si mesmo”
Arthur
Schopenhauer
Originalmente publicada em 1964 com o título “The Voice”, Gabriel Okara estreou-se neste livro como ficcionista quando até então era conhecido como “poeta de muita sensibilidade” conforme refere Arthur Revenscroft na introdução desta reedição.
“A Voz”
revela-se-me como um enredo local mas global, circunstancial mas actual e,
acima de tudo, revigorante cada vez que se lê nas sociedades actuais
(africanas, se quisermos) o mesmo mote que terá norteado o enredo alegórico
criado por este escritor nigeriano.
O
que me faz epigrafar a frase de Schopenhauer neste texto é o pano de fundo
deste romance que decorre entre a aldeia de Amatu (aldeia natal de Okolo) e a
cidade de Sologa, onde o jovem é “exilado” devido à sua busca por algo que não
chega a revelar de forma clarividente. Esta sua busca chega a ser tão ferrenha
quanto incómoda para os anciãos e, sobretudo para o chefe Izongo.
Iluminado
pelos estudos que o permitem vislumbrar o que poucos da sua aldeia conseguem
aceder devido à baixa senão inexistente escolaridade, Okolo indaga aos seus
semelhantes e ao poder estabelecido sobre a pertença de algo que não especifica
com a sua recorrente questão: pussuí-lo-ão?
Pela dedução, os membros da aldeia inferem que as indagações de Okolo são em si
uma afronta ao establishment vigente em
Amatu numa busca por uma vida política e socialmente melhor tendo, então,
granjeado simpatias por parte de alguns membros da aldeia, o que para o Chefe
Izongo tornou-se num perigo pessoal.
Não
faltaram, portanto, apelos de gente que embora não tivesse lido tantos livros
quanto Okolo encontraram na escola da vida, argumentos para sugerir que este
vergasse aos ditames vigentes em Amatu:
“neste mundo tudo se modificou. O mundo já não é
recto. É por isso que se vejo alguém virar as palmas das mãos, viro também as
minhas para baixo. Se, ao contrário, vejo que abrem as mãos e as elevam ao céu,
faço o mesmo com as minhas. Põe isso a parte e procede como nós: terás a alma
tranquila como nós temos.” (p. 57)
Amatu,
torna-se, no universo temporal deste romance, numa terra em que “as almas das pessoas estão cheias de
dinheiro, carros e casas de cimento; por todo o lado só se vê a procura do
dinheiro”(p. 58) relegando todo e qualquer valor à insignificância.
Movido
pelo princípio altruísta assente na crença do valor individual do ser em
relação à vida dos outros, Okolo
insurge-se contra o paradigma vigente e acaba por ser expulso da sua terra
natal para Sologa, uma cidade vizinha cujo elo de ligação é um rio. Ao longo da
viagem no barco, Okolo vivencia, novamente, o peso do seu sentido altruísta:
“A rapariga que ia ter com o marido encostou-se a
Okolo. Tinha o corpo molhado. Okolo olhou para ela. Não possuía qualquer
agasalho. Okolo tornou a levantar-se, afastou o impermeável com os cotovelos
para tapar a rapariga e sentou-se. A rapariga fitou Okolo, hesitou e depois
chegou-se mais para ele para se tapar melhor” (p.
69)
Esta
acção altruísta e quiçá ingênua de Okolo associada ao passado que deixava em
Amatu (que também o perseguia) tornaram a sua vida imaterializável em Sologa,
tendo sido, enfim, mandado de regresso à sua terra natal pelas autoridades
locais.
Ao
longo da viagem de regresso a Amatu
“Okolo ia sentado com os joelhos encostados ao queixo,
procurando não tocar em ninguém. Pelo menos isso tinha aprendido. No seu
íntimo, sorriu. Seria possível que o nosso corpo nunca tocasse no corpo de
outra pessoa, que a nossa alma nunca contactasse com outra, nos bons e maus
momentos?” (p. 117)
Okolo
debruça-se sobre estas questões durante os três dias e as três noites que a
viagem durou para concluir que “cada pessoa
deve ter um objectivo na vida, para além de criar filhos, e que a paz de
consciência reside precisamente na realização desse objectivo”. (p. 119)
Já
em Amatu, encontra a aldeia em alvoroço porque “Izongo rigozijou-se por Okolo ter deixado a aldeia. Ficou com o
coração cheio de doçura, sentiu-se possuído de bondade e convocou toda a
população de Amatu: homens, mulheres, crianças, coxos, surdos, mudos e cegos”(p.
77): comemora-se então a sua expulsão de Amatu. Vendo a ocasião como sendo
propícia para a sua reaparição, faz-se pela multidão ao centro das atenções.
Antes que este dissesse uma palavra, Tuere pegou na mão de Okolo e saíram do
local, tendo sido, na manhã seguinte, afogados pelo rio abaixo a mando do Chefe
Izongo.
Em
“A Voz” a Gabriel Okara constrói esta
narrativa em XII capítulos caracterizados pela linearidade de um enredo que não
vem à superfície graças à poeticidade das narrações e descrições que além de endossar
a construção da cor local revigoram o pensamento de Spencer citado por Chklovski[1] para
quem “o mérito do estilo consiste em pôr
o máximo de pensamento num mínimo de palavras”.
De
facto, uma leitura apressada de “A Voz”
associada à dificuldade (por parte do leitor) de estabelecer uma relação
dialógica com a realidade extratextual pode conduzir à conclusão injusta deste
enredo, situando-o apenas na dialéctica de um conflito político. Contudo, o
leitor informado há-de proceder nesta aparente simplicidade e desinteressada
poeticidade de Okara uma mescla de saberes, perspectivas e insights, tal como
refere Stein (1981: 214) citado por JONA (2013: 51):
“the implied reader offers simultaneously an
interpretation of the history of the novel and a theory of the novel reading as
such; the act of reading enlarges upon letter, widening its perspective from
prose fiction (…) a beholder must create his own experience. And his creation
must include relations comparable to those which the original producer
underwent”
Esta
“cavalgada” pela poesia presente nesta narrativa de Okara faz-se necessária não
só para a interpretação do significado patente nas entrelinhas do significantes
mas para compreender o devir do estado de espírito de Okolo e por que não dos
restantes personagens senão dos objectos referidos porque, em geral, “o acto de percepção em arte é um fim em si
mesmo e deve ser prolongado; a arte é um meio de sentir o devir do objecto,
aquilo que já se tornou não interessa à arte.” É daí que ao descrever o
estado de espírito de Okolo, Gabriel Okara procede da seguinte forma:
“Okolo caminhava na noite escura, tropeçava,
continuava a caminhar. O seu interior estava em desordem, como uma sala onde os
ladrões tivessem deitado ao chão cadeiras, almofadas, papéis. Abria e fechava
os olhos, abria e fechava, esperando ver alguma luz sempre que os abria, mas
não viu ninguém naquela noite escura.”
(p. 82)
Assim,
Okolo torna-se em “A Voz” numa
metaforização de um discurso para além do enredo e fixa a sua textualidade no
questionamento do alheamento das pessoas às causas comuns, ao sentido de missão
e ao curso pelo qual pretendem conduzir as suas vidas. Ora, a busca incessante
e ingênua que ele engendra qual um peregrino destemido coloca-o numa posição de
busca de uma heroicidade (por lutar pelo bem dos demais descorando qualquer
risco à sua integridade física ou moral) ou o transforma no epíteto de uma
busca inglória porque não conseguira mais que o despertar de um e outro
personagem no enredo, embora se possa daí antever a possibilidade de a sua
“luta” ser continuada por outros. Ora, esta é uma inferência muito além do
texto que talvez não vingue porque tal como alerta-nos Tynianov[2] “onde a vida entra na literatura, torna-se
ela própria literatura e deve ser apreciada como tal”.
Para
todos efeitos, ler “A Voz” de Gabriel
Okara e criar um sistema de equivalências entre o que parece ter sido o mote da
sua criação com o que se vive pelo menos na sociedade moçambicana nos dias de
hoje, dá-nos ensejo de perguntar: pussuí-lo-ão?
Bibliografia
JONA,
Sara. Entre o Índico e o Atlântico:
ensaios sobre literatura e outros textos. Maputo: Ndjira. 2013;
OKARA,
Gabriel. A Voz. Tradução de Maria
Cristina Rocha. Lisboa: Edições 70. 1980.
TODOROV,
T. et al. Teoria da Literatura – I: textos dos formalistas russos apresentados por
Tzvetan Todorov. Tradução de Isabel Pacoal. Lisboa: Edições 70. 1999;
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