quarta-feira, 3 de julho de 2019

A Função da Personagem como Paradigma Interpretativo da Narrativa Africana

O estudo das literaturas africanas de língua portuguesa tornou-se num desafio a que todos se entregam, pese embora o facto de muitos estudiosos alertarem à necessidade de se ter um certo grau de atenção e ponderação
devido à natureza complexa destas literaturas (gerada pela relação intertextual que mantêm com a tradição oral) e o risco eminente que é o de analisá-las sempre numa perspectiva linear.

Este fenómeno é de ocorrência recorrente nos estudos pós-coloniais, quando os estudiosos assumem a premissa de haver uma inegável influência da literatura oral na literatura escrita dos países africanos, em geral, e dos de língua portuguesa, em particular, em que, por mais que haja o reconhecimento da autenticidade destas literaturas através do recurso aos modelos de codificação literária típicos da literatura oral, nota-se que estas literaturas são sempre vistas num sentido de ruptura com os cânones europeus no que normalmente se apelida de “marcas da oralidade” pura e simplesmente do ponto de vista linguístico.

Esta postura revela uma abordagem muito redutora do texto literário produzido em países africanos, sobretudo os de expressão portuguesa pois entendemos que esta migração da literatura oral para a escrita ocorre sobretudo do ponto de vista estrutural e de conteúdo numa espécie de rebusca de valores. 
Esta opção de estudar a forma e conteúdo das narrativas surge da assumpção da premissa de Lévi-Strauss segundo a qual “forma e conteúdo são de mesma natureza, sujeitos à mesma análise. O conteúdo tira sua realidade da estrutura, e o que se chama forma é a "estruturação" das estruturas locais que constituem o conteúdo.”

No entanto, este estudo da forma (estrutura) e conteúdo (discurso) da narrativa oral com base na função da personagem guia-nos implicitamente à reflexão teórica acerca das diversas teorias de análise textual que se dedicaram ao estudo das narrativas, entre as quais destacaríamos o formalismo, o estruturalismo e pós-estruturalismo.

Refira-se que a preocupação com aspectos inerentes à narrativa iniciou na Poética de Aristóteles (335 a. C), e foi retomada mais recentemente por Vladimir Propp (1928/1983) que em “Morfologia do conto maravilhoso” estabeleceu diversos aspectos que constituem bases da actual narratologia. Um dos aspectos a destacar é que com base na comparação e análise da distribuição dos motivos em diversos contos, Propp descobriu que, “muitas vezes os contos emprestam as mesmas acções que se resumem numa mesma acção na qual o que muda são os nomes e os atributos das personagens, mas não suas funções. VIEIRA (1997: 10)

Propp tem o mérito de ter sido o primeiro a implementar a abordagem morfológica das narrativas orais, a partir do isolamento do enredo (conteúdo) e da composição (forma), dando à última uma irrefutável primazia, restando para o conteúdo uma função meramente acessória. Com esta proposição, Propp pretendia elaborar leis abstractas e universais que resultariam no que chamaríamos de metanarrativa.

Assim, “em posse dessas leis, seria sempre possível determinar qual era a relação que ia da narrativa modelo para cada narrativa considerada derivada, bem como teoricamente se adquiria a competência de reinvenção de uma infinidade de narrativas, bastando para isso aplicar as leis.” ROSÁRIO (1989: 62)

Contudo, por serem formalistas, as conclusões de Propp têm as limitações a que foram sujeitas as concepções formalistas e tiveram como um dos maiores críticos professor Lévi-Strauss que numa carta endereçada a Propp traçou as suas críticas à esta teoria.

O primeiro aspecto a destacar neste processo, é a separação que Propp faz em relação à forma e ao conteúdo, que em si constituem unidades indivisíveis, que é, segundo Lévi-Strauss, o ponto que resume toda a diferença entre o formalismo e estruturalismo:
 Para o primeiro, os dois domínios devem ser absolutamente separados, pois somente a forma é inteligível, e o conteúdo não é senão um resíduo desprovido de valor significante. Para o estruturalismo, esta oposição não existe: não há, de um lado, o abstrato e, de outro, o concreto. Forma e conteúdo são de mesma natureza, sujeitos à mesma análise.

Outro aspecto que é ressaltado como lacuna do formalismo, e por conseguinte da teoria de Propp, é a estipulação de regras rígidas que definem a combinação dos aspectos conteudísticos das narrativas. O que para os autores subsequentes à Propp será tomado como de grande importância é a abordagem funcional dos elementos do conto. Isto porque, o facto de se poder trabalhar com a função permitirá uma abordagem estrutural do conto. O que faz com que Propp seja, de alguma forma, um precursor do estruturalismo.

Esta teoria (o estruturalismo) preconiza a existência de princípios universais e intemporais que estão por detrás da natureza literária de todos os textos. Nesta perspectiva, Bremond (1966) irá fazer uma profunda revisão dos trabalhos de Propp, propondo como modelo para os enunciados narrativos uma estrutura triádica. Sua proposta de esquema narrativo não mais se limitará ao conto foclórico, podendo ser expandida para as narrativas em geral e apresenta-se do seguinte modo: (1) Existe uma determinada situação que abre a possibilidade de o fluxo sequencial progredir; (2) A possibilidade é actualizada, ou não é actualizada; (3) Se é actualizada, o herói obtém sucesso; caso contrário, o sucesso não existe.

Portanto, segundo ROSÁRIO (1989), esta simplificação proposta por Brémond é, no fundo, uma propriedade intrínseca do discurso narrativo. Sendo que, as sequências encontram-se já elementarmente estruturadas no macrotexto condicionador da narrativa da oralidade; é assim que resta ainda ao narrador uma margem de manobra, onde pode pôr à prova o seu talento, na utilização dessa matéria-prima, que são as variáveis.

Ainda nesta óptica funcionalista da personagem inaugurada por Propp, no formalismo, Greimas, na óptica do estruturalismo, propôs substituir o conceito e o termo de personagem pelo conceito e pelo termo de actante, que representa uma certa inovação no estudo na narrativa, de forma geral, mas também apresenta as lacunas que recaem, também, sobre o estruturalismo como um todo. Pois, “a análise actancial conduz a um reducionismo muito forte da complexidade psicológica, sociológica, ética e religiosa das personagens dos textos narrativos literários, em particular do romance, e elimina, em virtude do seu acronismo intrínseco, a temporalidade irredutível da narrativa.” (AGUIAR e SILVA: 2011, 692)

Todavia, ressalte-se que o desenvolvimento da ciência da narratologia deve muito ao empenho dos teóricos estruturalistas, em particular Greimas, Genette, Barthes e Todorov, que “acreditavam que todas as narrativas possuem estruturas comuns, condição necessária para a fundação de qualquer teoria da narrativa.” (CEIA: 2010) Não obstante, tal como observa o mesmo autor, a preocupação do estruturalismo com os aspectos linguísticos foi radical e redutora, deixando de fora muitos aspectos importantes e igualmente inscritos do texto literário, tais como a sexualidade, o género, a ideologia, o poder político, as influências culturais, etc., ficando também de fora as questões da literatura como prática social, como forma de produção não necessariamente esgotada pelo próprio produto.

O primeiro a questionar a eficácia dos preceitos do estruturalismo foi Jacques Derrida, que aponta novos caminhos para diferentes níveis do saber, entre os quais está a literatura, através da desconstrução que faria surgir o pós-estruturalismo.
Na crítica ao estruturalismo, Derrida reclama uma textualidade dentro do texto e critica a crença na centralização das estruturas de sentido de um texto.

O filósofo francês reflecte sobre a complexidade do valor da interpretação de um texto literário, e afirma ser de dois tipos: “um tipo que procura decifrar a verdade original, presa a um jogo de regras obrigatórias” (que seria representada pelo estruturalismo) e “um outro tipo que não está dependente dessa procura original e condicionada, mas que é uma procura da verdade (para) além de, e que exige participar num jogo aberto, acrescendo que nenhuma interpretação está garantida em face da abertura do texto à pluralidade de leituras” (que seria representada pelo pós-estruturalismo).

O que é personagem?
Importa referir que na sua origem etimológica, persona, está subjacente um sentido de “ficção”, de modo que este conceito é aplicável, não só a pessoas, mas também a possíveis agentes narrativos como os animais, os objectos ou os conceitos.

A personagem constitui um elemento estrutural indispensável da narrativa romanesca. Sem personagem, ou pelo menos sem agente, como observa Roland Barthes apud AGUIAR e SILVA (2011: 687), “não existe verdadeiramente narrativa, pois a função e o significado das acções ocorrentes numa sintagmática narrativa dependem primordialmente da atribuição ou da referência dessas acções a uma personagem ou a um agente.” O que nos leva a crer que todo processo de construção formal e conteudística da narrativa subjaz na personagem e, por assim ser, é com base nesta que se pode descodificar a totalidade dos aspectos inerentes a uma narrativa literária escrita ou oral, tanto do ponto de vista formal assim como discursivo.

No entanto, AGUIAR e SILVA (2011: 687) acrescenta que “à designação e ao conceito de personagem subjaz um conteúdo psicológico-moral que explica a atitude suspeitosa ou hostil que alguns críticos contemporâneos têm adoptado a seu respeito, quer desvalorizando a relevância da personagem como elemento da narrativa, quer considerando as personagens apenas numa perspectiva funcional.

É, portanto, nestas duas formas de observar a personagem num texto literário que foram surgindo diversas formas de conceber a narrativa, na sua complexidade, tanto do ponto de vista oral assim como do ponto de vista escrito. Cite-se, por exemplo, Boris Tomaṣevskii apud (op, cit), um dos mais importantes formalistas russos, que escreveu: “o herói não é um elemento necessário da fábula, a qual, como sistema de motivos, pode dispensar inteiramente o herói e a sua caracterização.”

Em contrapartida, temos a análise funcional da personagem que, tal como observamos acima, foi teorizada e praticada sobretudo por Vladimir Propp, que é também um formalista russo cujas abordagens foram basilares para a reflexão em torno das narrativas orais assim como escritas, em pesquisas de estudiosos que o prosseguiram, quer do ponto de vista de concordância assim como de discordância com (dos) os seus preceitos.

Desta forma, percebe-se que a discussão sobre a narrativa como um todo e, sobre a personagem, em particular, foi sempre alvo de diversas reflexões e reformulações que tiveram o seu mérito para o actual conceito que se tem dos mesmos. Assim, as formulações funcionalistas iniciadas por Propp e reformuladas por Bremond, Greimas e outros estudiosos da escola estruturalista, tiveram o mérito de terem descoberto na narrativa o elemento no qual se resume todo um processo de construção ideológica no interior da narrativa, contudo, tal como a crítica de Derrida nos revela, observar a personagem pura e simplesmente do ponto de vista de “o que faz” é de certa forma inconsistente pois na análise da narrativa com base na função/sequência de acções da personagem interessa também saber “quem faz”, para daí extrair o significado simbólico de tal função/sequência acções, que se vai materializar diferentemente em diferentes leitores sem que isso implique uma arbitrariedade exacerbada, pois nesse processo de descodificação da narrativa, existe um eixo paradigmático de análise, pois a personagem enquanto signo narrativo, está evidentemente sujeita a procedimentos de estruturação que determinam a sua funcionalidade e significância.

É neste contexto que concordamos com Hamon: 1983, 20) apud REIS & LOPES (2007: 315) quando afirma que “uma personagem é, pois, o suporte das redundâncias e das transformações semânticas da narrativa, é constituída pela soma das informações facultadas sobre o que ela é e sobre o que ela faz.”

No entanto, porque o narrador é o sujeito do discurso narrativo, não está excluso deste processo de construção de sentidos a partir da personagem porque na materialização do enredo, vai desenvolvendo um diálogo implícito com a personagem, visto que “perante o perfil ideológico-cultural das personagens, as suas opções axiológicas e as suas atitudes sociomentais, o narrador pronuncia-se frequentemente em termos muito variados: afastamento, solidariedade, reserva discreta, crítica violenta, etc.”

Portanto, seja qual for o posicionamento do narrador, que se possa visualizar ou não no decorrer da narrativa, em relação à personagem ou à sua relação com os demais aspectos da narrativa (tempo e espaço, por exemplo), é certo que estes diálogos “constituem factores constitutivos do(s) sentidos(s) que na narrativa é possível ler” Reis & Lopes (2007: 317). É nesta óptica “e não com a suposta identificação de personagens do mundo possível da narrativa literária com figuras do mundo real” que se manifesta o significado da função da personagem, possibilitando “a fusão de dois horizontes, o do texto e o do leitor, e portanto a inserção do mundo do texto com o mundo do leitor” (Ricoeur: 1983, 120) apud Reis & Lopes (2007: 317)

E, parafraseando o autor (op. cit) notamos que é secundada a indispensabilidade da personagem como elemento a partir do qual se possa descodificar o sentido da narrativa, não só enquanto entidade funcionalmente indispensável para a concretização do processo narrativo, como suporte da acção que normalmente é, mas sobretudo como lugar preferencial de afirmação ideológica.

Ora, esta é uma visão que, de alguma forma, era antevista pela desconstrução de Derrida, o que denota que independentemente das lacunas que a desconstrução possa apresentar, como método de análise textual, remete-nos à ideia de que o texto, do ponto de vista geral, é uma permutação de textos, que, por sua vez, leva-nos ao conceito de intertextualidade, conceito válido ainda hoje por recordar-nos que vários enunciados, tomados a outros textos, cruzam-se formal e/ou conceptualmente.

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