Este título faz cócegas na alma para que me dedique a um ensaio possível de fazer acerca do ofício a que possivelmente se reservem os nossos mestres da palavra que já não andam entre nós. Seria um texto e tanto, tasaver. Daqueles que só sairiam em circunstâncias tais em que a aura atinge um estado zen. Imagine-se, caro leitor: neste Setembro. A pensar. Não no amarelo. Mas no azul do mar. Descalço. Sentado na praia. Os pés das calças dobrados até ao joelho e as mangas da camisa ao cotovelo. Os sapatos pousados à esquerda.
Ou sandálias. Sei que és mulher. Aliás, todo homem já foi mulher. Por 9 meses, para ser mais preciso. Imagine-se, ainda, com o paladar degustando a água de coco. A imagem de um sol que se põe como se estivesse a nascer. O livro de Lahissane à mão, com o indicador marcando a página 21 desta estreia “Os Pores-do-sol” em que é possível ler: escrever um poema/ é palpar os pores-do-sol.Experimente, caro leitor, melhor forma de mandar a burocracia da vida às favas não há!
Agora,
volta. Voltarás a pensar nisso em breve. Para já, voltemos àquela ideia dos
poetas mortos. É, na verdade, uma ideia do Lahissane. Nos últimos tempos anda
cheio dessas ideias de escrever na terra porque acredita que nos céus a vida o
reserve outros ofícios. Mas, acredite, o tipo escreve. Escreve maningue. Não
sei se sabe, caro leitor, mas existem muitos significados para a palavra
escrever. Os poetas são exímios criadores de sentidos para as palavras que já
conhecemos com significados já padronizados. Mas sempre o fazem no bar. O bar é um templo sagrado, disse a poeta
dos cães à estrada. Mas, peço um minuto, caro leitor, acabei a tinta na caneta.
_
Por favor, encha-me a caneta com aquela tinta à nossa maneira, na conta do Lahissane.
Quero escrever.
Então,
dizia que...
_ Sim, na conta dele.
Referia-me,
então, ao título que inaugura este texto. Com um pouco mais de zelo, trocaria a
preposição "em" pela "sobre". Porque é sobre a terra que
Lahissane escreve no seu “Os pores-do-sol”.
É daqueles livros de leitura proibida quando se estiver na diáspora numa missão
diplomática, por exemplo. E, mais ainda, se se tiver "nilava kumuka kaya" de Elsa Mangue ao fundo.
Ouvir
"nikala kumuka kaya hiyini?/ Por que não vou para casa?/ Niholovile
namani lekaya?/ Com quem
estou desavindo em casa?/ Nilava kumuka kaya kamamani!/ Quero ir para casa da minha mãe!” enquanto
se lê “vim de uma terra chamada África/
onde o batuque é uma bandeira/ que adeja ao sabor dos ares/ uma terra cheia de sabores: massala, malambe
(p. 45)” seria a mesma experiência dramática que tingiu os poetas da
“Claridade” em Cabo Verde: querer ficar e
ter de partir/querer partir e ter de ficar. Mas, partir para onde? Lembra-te:
falamos de alguém que esteja na diáspora!
Os Pores-do-sol é um livro cheio de África. Não a África do clichê de quem cultiva um adâmico lócus mas uma África real. Com as suas flores, suas mazelas, sua(s) rapariga(s) fogosa(s) (título do meu poema preferido, vide página 69), seus pores-do-sol e suas copas de coqueiros. Seria, por isso, difícil ler este livro sem que te espectasse a flecha da nostalgia. Do amor telúrico. E, já agora, aqui está um objecto para um ensaio académico sobre este livro.
Os pores de sol é tão híbrido quanto o processo editorial que o origina. A Ethale Publishing, de Jessemusse Cacinda, e a Associação Cultural Xitende, de Deusa d'Africa, unem os deuses do norte e do sul de Moçambique para editar este livro cujo design é de quem parece querer competir consigo mesmo como se já não soubéssemos da sua excelência no acto. Digam ao designer da Ethale que já percebemos. Chega! És bom, puto!
Ainda
sobre o hibridismo a que me referia, engana-se quem pense que o compromisso estético
dispensa a dimensão semântico-pragmática do texto. É comum nos dias de hoje.
Textos há (e não são poucos) que desenham uma linda mangueira mas, inda que a
abanemos, dela não cai uma manga sequer. Com Os Pores-do-sol é diferente.
Asseguro-te. O compromisso com a imagem situa Lahissane na sua geração de
poetas mas as nutritivas mangas que caem das mangueiras lindas que desenha o
tornam único. Um poeta, de facto. Que vive na/da/ sobre/a poesia. Leia-se:
“meu rumo/ é esmagar com os dentes dos olhos/ as
letras que florescem no ventre dos livros/ esmagá-las até lacrimejarem pétalas/
e com elas irradiar o cosmo que há em mim/” (p. 38)
“quando os meus olhos/mergulham no mar/ esqueço-me dos
hinos de dor/ canto os mais belos e cheios de amor/ (p. 41)
“o chão era verde como as algas do Limpopo/ de imensas
garrafas partidas/ (p. 23)
Repare,
caro leitor, é poesia moçambicana do século XXI: esta mescla de um quê panfletário
dos fundadores, um outro quê lírico dos vanguardistas e mais um quê imagético
dos surrealistas filhos mimados dos últimos que não lhes foi explicada a real
essência daquela revolução. Tasaver, é mais um objecto para outro ensaio
académico. Mas sobre isso falaremos com os ensaístas permanentemente cientes
dessa condição. Eu tenho cá os meus episódios de luz e de neblina. Hoje, por
exemplo, a neblina é meu mister. Mas a culpa é tua, caro leitor: andas maningue
distante daquelas cenas que a malta escreve.
Pronto!
Acabou-se a tinta. Mas ainda quero escrever. Dê-me outra caneca. Digo, caneta.
Mas, não se esqueça, leia Os Pores- de-sol. É obra!
Este comentário foi removido pelo autor.
ResponderEliminarEstou inundado nas tuas palavras. Elas sabem muito bem. Não me canso de ler e ler este ensaio. Motiva. O pecado é não deixar os contactos para localizar "Os Pores-de-sol", porém nutro muita admiração pela dedicação (e não egoísmo) e entrega pela publicação dos trabalhos dos outros (amigos). Isso é bom. Confesso. És um poço de talentos.
ResponderEliminarPeço, igualmente o vasilhame da tua, se não do Lahissane, para poder enchê-la de tinta para mais palavras. Aliás, elas têm sabor de África. Disseste-o.
Saudações, caro!
ResponderEliminarFico feliz que tenha gostado do texto e pela apreciação que faz dele. É por isso que continuamos nesta missão de difundir e discutir saberes.
Quanto ao contacto, julgo que seja mais fácil procurar pelo Lahissane no Facebook ou pela Ethale Publishing.